26.3.16

“Os crimes contra a liberdade serão sempre descobertos”

Versão número 1:
“Depois de presa, do DOI-Codi de São Paulo foi mandada para o DOI-Codi do Rio de Janeiro, onde foi torturada, estuprada com um cassetete e mandada de volta a São Paulo, onde recebeu dois tiros.”

Versão número 2:
"Sônia e Antônio Carlos foram presos e levados para um sítio na Zona Sul de São Paulo onde ficaram de cinco a dez dias sendo torturados, até morrerem, dia 30 de novembro de 1973, com tiros pelo corpo, sendo colocados, no mesmo dia, à porta do DOI-Codi/SP, para servir de exemplo.

Versão oficial:
“Os dois militantes, Esmeralda e Antonio Carlos, morreram em tiroteio, na altura do número 836 da avenida Pinedo, na Capela do Socorro.”

Versão por versão por versão, ninguém sabe, ninguém viu. O que os jornais publicaram na época, atendendo à distribuição de informações feita pelo aparelho repressivo da ditadura militar, foi que Esmeralda  Siqueira de Aguiar havia morrido em troca de tiros com a polícia. Mais um dos tantos boletins de ocorrência de “resistência e morte”.

Ao lerem a notícia, João e Cleia de Moraes não tiveram a menor dúvida: era a filha de deles. Esmeralda era o nome usado na clandestinidade por Sonia Maria de Moraes Angel Jones, gaúcha de Santiago do Boqueirão, nascida em 9 de novembro de 1946 e morta não se sabe quando –o certificado de óbito indica 30 de dezembro de 1973.



Quando viram nos jornais a notícia da morte de “Esmeralda”, os pais foram direto para o apartamento onde a filha morava com Antonio Carlos Bicalho Lana. O prédio estava ocupado por policias. Seu João foi recebido a bofetadas; os policias ameaçaram jogá-lo da janela no terceiro andar; depois, encenaram uma execução por fuzilamento.

João Moraes finalmente identificou-se como tenente-coronel do Exército brasileiro, foi liberado, desde que se apresentasse no II Exército no dia seguinte.

Ele foi, e lá viu espalhados sobre uma mesa objetos que haviam pertencido a Sônia. Quando tentou fazer perguntas, em prantos, recebeu ordem de prisão. Ficou detido por quatro dias ali mesmo; ao ser solto, ouviu que a filha estava mesmo morta e que ele iria receber em breve o certificado de óbito.

Nem o documento nem o corpo.

Os restos mortais de Sonia foram despachados e enterrados em lugar incerto e não sabido  --mais uma forma de humilhar e torturar a família; ao mesmo tempo, mais uma demonstração da covardia dos algozes do povo.

Só quase dez anos depois do crime os pais de Sonia Angel Jones conseguiram descobrir a ossada de sua filha –estavam enterrados com outros 1.048 mortos pelo aparelho repressivo durante a ditadura militar. O despejo fora feito naquela que ficou conhecida como Vala de Perus, no cemitério Dom Bosco, na zona norte de São Paulo.

Rebatizado de Colina dos Mártires, o cemitério foi o destino da 33ª etapa da CORRIDA POR MANOEL, na manhã de hoje.

Foto Rodolfo Lucena


O sol mal tinha saído, ainda brigava com as nuvens para ver quem tomaria conta do dia, quando me postei na rua Oscar Freire, em frente à estação Sumaré do Metrô. Guilherme já estava lá, Gregório chegaria logo, assim como Claudia, Zita e Daniele.

Falei um pouco sobre o lugar de memória que visitaríamos e sobre o percurso, longo, cheio de pirambeiras e levando a um ponto quase escondido da cidade; para quem não tem carro, a movimentação de lá até o centro pode durar mais de duas horas.

Altimetria do percurso


A dificuldade de acesso à região era muito maior no início da década de 1970. Talvez por isso mesmo o prefeito Paulo Maluf resolveu instalar lá um cemitério para indigentes. Fazia parte do sistema de repressão do país: para lá também foram enviados corpos de homens e mulheres mortos pela polícia política.

O enterro dos cadáveres sem identificação, em vala comum, era apenas uma das etapas do plano. Pretendiam instalar ali um crematório, o que levantou suspeitas; as empresas consultadas para fazer o serviço se recusaram a executar o projeto.

Comunidades pobres no caminho para a Colina dos Mártires 


O crematório acabou sendo construído no cemitério de Vila Alpina. Para lá seria levada uma carga  as ossadas exumadas em massa, em 1975, de duas quadras de indigentes de Perus, onde estavam também os restos mortais de oponentes do regime. O projeto foi abandonado no ano seguinte, e as 1.049 ossadas jogadas em vala comum e clandestina do cemitério.

Neste ano, portanto, se completam 40 anos da escroqueria realizada com os restos de mais de mil vítimas da repressão –militantes políticos e gente comum, favelados, indigentes, gente que o mundo esquece (ou que os poderosos gostariam que o mundo esquecesse).



São 40 anos, assim como são 40 anos da morte de Manoel, da morte de Herzog, na morte de Zuzu Angel, da morte do tenente José Ferreira de Almeida.

Com nossas passadas, cruzando as marginais, passando por sobre a linha do trem, subindo rampas enormes ao longo do percurso, vamos revirando esses anos todos, refazendo a memória, pensando sobre esses mártires brasileiros dos tempos modernos.

A história da Vala de Perus foi descoberta aos poucos.

Vista do cemitério - Foto Eleonora de Lucena


Em 1973, familiares dos irmãos Iuri e Alex de Paula Xavier Pereira, militantes da Ação Libertadora Nacional, descobriram nos livros do cemitério Dom Bosco o registro do enterro de João Maria de Freitas, nome usado por Alex na clandestinidade.

Por causa do controle exercido pela repressão, pouco puderam fazer. Mas apresentaram relato da descoberta no 3º Encontro Nacional do Movimento de Anistia, em 1979, no Rio de Janeiro.


Os ares estavam menos soturnos, o movimento de reação á ditadura crescia, os familiares de mortos de desaparecidos atuavam abertamente. Uma comissão de parentes de integrantes de organizações guerrilheiras foram ao Cemitério de Perus, investigaram e descobriram que vários militantes havia sido enterrados lá com nomes falsos.

Luiz Eurico Tejera Lisbo foi sepultado sob o nome de Nelson Bueno, Gelson Reicher enterrado como Emiliano Souza.

Apesar das ameaças, os familiares de militantes de organizações revolucionárias assassinados pela ditadura seguiram na busca.




Encontraram. O livro “Vala Clandestina de Perus”, do Instituto Macuco, lista entre os mortos lá sepultados Alexandre Vannucchi leme, os irmãos Alex e Iuri Xavier Pereira, Antonio Carlos Bicalho Lana –que era companheiro de Sonia Angel quando ela foi morta--, Pedro Pomar e Angelo Arroio, para citar apenas alguns.

Em 1990, o jornalista Caco Barcellos, da Rede Globo, investigava a a venda clandestina de caixões. Descobriu algo muito maior: havia no cemitério de Perus uma vala clandestina, não registrada no departamento da prefeitura que cuida das plantas dos cemitérios de São Paulo.



A vala foi aberta, começaram as investigações sobre as ossadas não identificadas. Pelo menos sete ex-presos políticos lá estavam enterrados.

Então prefeita de São Paulo, Luiza Erundina determinou que fossem realizadas investigações oficiais. Criou em setembro de 1990 uma Comissão Especial de Investigação das Ossadas de Perus; no mês seguinte, a Câmara Municipal aprovou a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o caso.

“Das 1.049 ossadas encontradas na vala, aproximadamente 450 eram de crianças menores de dez anos de idade. Suas ossadas estavam de tal forma danificadas que não foi possível realizar o processo de identificação”, diz o livro do Instituto Macuco.



O corpo de Sonia Angel pode ser identificado bem antes disso, porque a família sabia o nome com que a filha havia sido enterrada –Esmeralda.

O translado dos restos mortais de Sonia foi feito em 16 de maio de 1981, depois de cerimônia na convento dos dominicanos de São Paulo. No Rio, ela foi enterrada no cemitério Jardim da Saudade, visitado todos os sábados pelos pais, João e Cléa.

Eles queriam, porém, saber mais, saber exatamente o que tinha acontecido com sua filha. Movem processo contra Harry Shibata, o médico do IML-SP que atestou a morte de Sonia. A Justiça determina que o cadáver seja exumado, e descobrem que ali estava enterrado um homem --a família de Sonia fora vítima de uma farsa..

Recomeça a via-crúcis dos pais. E da família Angel Jones: Sonia fora casada com Stuart Angel Jones, o jovem estudante torturado até a morte por se recusar a entregar o capitão Carlos Lamarca.


Só em 1991, como parte do trabalho decorrente da abertura da Vala de Perus, os restos de Antonio Carlos e Sonia foram exumados e identificados com segurança.

Muitos outros também foram identificados, mas ainda há centenas de ossadas sem nome. Em homenagem a todos, há um memorial da Colina dos Mártires, onde está pintada uma frase de Luiza Erundina:

“Aqui os ditadores tentaram esconder os desaparecidos políticos, as vítimas da fome, da violência do estado policial, dos esquadrões da morte e sobre tudo os direitos dos cidadãos pobres da cidade de São Paulo. Fica registrado que os crimes contra a liberdade serão sempre descobertos.”

Foi em frente a essa parede vermelha, erguida em meio ao gramado e às flores da Colina dos Mártires, que terminamos nossa corrida de hoje.



Pedi a cada um de nosso grupo que dissesse uma frase, algo que resumisse seuas emoções, suas sensações depois de nosso percurso de 23 quilômetros, mais de três horas subindo e descendo morro, para chegar àquele memorial, àquela testemunha das ações da ditadura militar.

“Não passarão!”, disse Gregório Gomes da Silva, 48, bancário e engenheiro: “Não vai ter golpe!”.

Daniele Barros, atriz, repetiu o #não vaitergolpe e acrescentou: Uma frase que me marcou, chegando aqui, foi essa, do memorial: Os crimes contra a liberdade serão sempre descobertos”.


Eu, Daniele, Ana Claudia, Zita, Guilherme e Gregorio

Dona de casa, Ana Claudia disse: “A violência não vai levar a gente a lugar nenhum”.

“Viva a democracia! Que ela prevaleça sempre”, foram as palavras da nutricionista Zita, nascida no ano do golpe militar.

O radialista Guilherme, 37, foi o último a falar: “Um país que não sabe rever sua história não vai ter muito futuro. Sua história precisa ser contada para não ser repetida”.

Enquanto falávamos, um casal de quero-queros se esganiçava em volta. Por certo, havíamos ultrapassado a área de exclusão, o perímetro de segurança com que protegem seus ninhos.



Gregório, filho de Virgílio Gomes da Silva, o comandante Jonas, primeiro assassinado pela Oban: "Mesmo ali, um lugar de tanta tragédia, espaço da morte, a vida teima em seguir seu curso".



CORRIDA POR MANOEL – 33ª etapa

Destino – Vala de Perus, na Colina dos Mártires, percurso de 23,25 km realizado em 3h18

Distância já percorrida: 355,66 km



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