9.3.16

No IML, dizem que Manoel passou mal no serviço e morreu no hospital

Passavam vinte minutos das oito horas da noite do dia 17 de janeiro de 1976 quando um automóvel grande, um Dodge Dart, estacionou em frente à casa da família Fiel, na zona leste de São Paulo.

Um sujeito alto e magro desceu do carro, bateu à porta do sobrado, falou com dona Thereza de Lourdes Fiel.

“Sou do Hospital de Clínicas”, disse o desconhecido, segundo registra o repórter Carlos Alberto Luppi em seu livro “Manoel Fiel  Filho – Quem Vai Pagar Por Esse Crime?”.

Entregou um embrulho para a já então viúva e falou: “Vim avisar que se marido se suicidou. Aqui estão suas roupas”.

Mais não disse nem lhe foi perguntado.

“Eu saí xingando!”, lembra hoje dona Thereza. “Vocês mataram meu marido!”, era o grito da ex-tecelã na ruela da zona leste.

No Dodge Dart, o homem se chispou. Em frente ao sobrado, dona Thereza ficou com um saco de lixo azul; nele estavam as roupas de Manoel: blusão, calça, sapatos, cinto e uma nota de Cr$ 10.

Dona Thereza tinha virado a noite anterior procurando por Manoel. “Ela foi atrás dele com um sobrinho do meu pai, que hoje mora em Quebrangulo, José de Lima. Ele que andou com a minha mãe a noite inteira, procurando em todas as delegacias”, conta Márcia, a filha caçula de Manoel.

Durante a noite, alguém havia dito que Manoel estava preso, incomunicável. Agora sabiam que ele estava morto, o corpo esperando no IML, o Instituto Médico Legal.


IML na década de 1970- Fotos Jurassaba
Bueno, Arquivo do Estado 
“O Instituto Médico Legal (IML) é o órgão 
técnico mais antigo da Polícia de São
Paulo, criado ainda durante o governo monárquico no Brasil em 1886”, ensina texto publicado pelo Memorial da Resistência no programa Lugares de Memória.

O texto prossegue: “O Instituto teve como origem o Serviço Médico Policial da Capital, instituído pela Lei nº 18 de 07 de abril de 1886 e foi regulamentado pouco tempo depois, no dia 20 de abril. A instituição funcionou a partir do atendimento de dois médicos que acumulavam as funções de médicos legistas e clínicos nas cadeias públicas. 

Eram atribuições do Serviço Médico Policial da Capital examinar indivíduos vivos e cadáveres encaminhados pelas autoridades, produzindo exames de corpo de delito e cadavérico a partir da análise de lesões e ferimentos das vítimas; realizar avaliação toxicológica de substâncias; conduzir exames em corpos exumados; ministrar os primeiros socorros em feridos conduzidos ao Serviço Médico Policial; e tratar clinicamente dos presos recolhidos em cadeias públicas”.


O IML foi meu destino de hoje, na 19ª etapa da Corrida Por Manoel.


Já fora lá várias vezes, no início da década de 1990. Nenhuma delas foi divertida. Como repórter de Cidades, acompanhei trabalhos investigativos de médicos legistas. Ouvi gente que esperava para receber de volta os corpos de parentes ou amigos.


Há quem caia em prantos, há quem chore em silêncio; outros ficam catatônicos, enquanto alguns explodem de raiva. Em todos se nota a dor da impotência, a consciência de que não podem fazer mais nada.

O IML fica na rua Enéas Carvalho de Aguiar número 600, na esquina com a Teodoro Sampaio. O bairro é Cerqueira César, região central da cidade. Fica numa espécie de superquarteirão médico.

Atravessando a rua, os cerca de 700 metros de extensão da Enéas Carvalho de Aguiar, no lado ímpar, é quase todo ocupado pelo complexo de prédios que integram o Hospital de Clínicas, o HC, que por nome completo é Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Na Teodoro Sampaio, o vizinho de frente do IML é a Faculdade de Saúde Pública.

O quarteirão mesmo onde está o IML é gigante, tendo por limites a Enéas Carvalho de Aguiar, a Teodoro Sampaio e as avenidas Doutor Arnaldo e Rebouças. Ali ficam a faculdade de Medicina, o Incor, o Hospital do Câncer e o Emílio Ribas, que trata de doenças infecciosas.

A volta no quarteirão tem 1.700 metros, que eu fiz repetidas vezes na manhã de hoje. Notei, por exemplo, as minilixeiras para baganas de  cigarro instaladas na cerca do Hospital do Câncer; ali funcionários se reúnem em horas de folga, aspirando baforadas rápidas do mesmo veneno que contamina os doentes que eles atendem. Vai entender.

Nas minhas voltas, pensava em Manoel, na família de Manoel, em como foram tratados e mal tratados.

No início da tarde do dia 17 de janeiro de 1976, o corpo do operário foi levado do DOI-Codi, onde fora morto, para o IML. O diretor do instituto, Arnaldo Siqueira, ordenou que os médicos legistas José Antonio de Mello e José Henrique da Fonseca fizesse exame de corpo de delito no cadáver de Manoel Fiel Filho.

O exame necroscópico deveria responder aos seguintes quesitos: Primeiro: Houve morte?; Segundo: Qual a causa?; Terceiro: Qual o instrumento ou meio que a produziu?; Quarto: Foi produzida por meio de veneno, fogo, explosivo, asfixia ou tortura, ou por outro meio insidioso ou cruel.

Instalações do IML na década de 1970
No laudo, reproduzido no livro de Luppi, os legistas descrevem assim o corpo que analisaram: “Cadáver de indivíduo adulto, do sexo masculino, de cor branca, aparentando a idade da qualificação, biotipo brevelíneo, cabelos pretos, grisalhos nas têmporas, supercílios pretos, bigodes grisalhos, olhos castanho escuros, equimoses subconjuntivas bilaterais, barba por fazer, dentes presentes e bem conservados em ambas as arcadas, panículo adiposo regularmente distribuído pelo corpo, de acordo com o sexo, musculatura bastante desenvolvida, pilosidade abundante, genitais externos sem alterações. 1) Notava-se extensa cianose tomando toda a pela visível da cabeça e da face, protusão da língua e líquido sanguinolento vertendo das narinas; 2) Região cervical: apresneta um laço constituído de duas meias, situado na região mediana do pescoço, circular, horizontal, não interrompido e duplo. Laço constituído de duas meias amarradas pelas extremidades correspondentes às pontas dos pés. Esse laço achava-se enrolado na região do pescoço com duas voltas e o nó corresponde às extremidades distais encontrava-se na região posterior juntamente com o primeiro que unia as pontas dos pés das meias. Esse laço formava dois sulcos paralelos em alguns pontos e unidos em outros, formando impressões cutâneas pálidas e isquêmicas, separadas por zonas de hipóstase tanto acima como abaixo desses sulcos. Na região da nuca notava-se também ligeira escoriação superficial da pele no pescoço entre os sulcos. 3) Tórax e abdômen, dorso e membros sem vestígios de soluções de continuidade recentes na pele. Notamos uma cicatriz antiga circular, hipocrômica de bordas pigmentadas no terço distal da perna direita, face externa; outra cicatriz de seis centímetros na região inguino-abdominal direita (Mac Burney). 4) Região perineal anterior e posterior sem sinais de violência”.

O repórter Carlos Alberto Luppi nota que as tais “equimoses subconjutivais bilaterais” significam a existência de rompimento de pequenas artérias; são resulta de ocorrência que agrida a vítima, como socos.

Os legistas, como se vê, não deram maior atenção a isso. Suas respostas aos quatro quesitos que investigaram foram as seguintes: ao primeiro, sim; ao segundo, asfixia mecânica por estrangulamento; ao terceiro, agente conscritivo contundente; ao quarto, não.

A farsa serviu para a rede de mentiras montada pela ditadura naquele momento, mas não resistiu ao exame da história. Os dois médicos legistas estão citados no relatório da Comissão da Verdade, responsabilizados por “ocultação de informação das causas da morte de Manoel Fiel Filho”. O médico legista Ernesto Eleutério também aparece no documento, acusado de “ocultação de informações do laudo preliminar induzindo à alteração da causa mortis de Gastone Lúcia de Carvalho Beltrão; Manoel Fiel Filho”.

Depois de examinado em maca de ferro, o corpo de Manoel foi colocado em uma das geladeiras em que os cadáveres até serem liberados para enterro. O destino do corpo de Manoel, na noite de 17 para 18 de janeiro de 1976, ainda era incerto.

O homem que apareceu na casa da família dissera ser do Hospital de Clínicas. Mas todos sabiam que o corpo deveria ser procurado no IML.

“Não podia ir mulher nenhuma para fazer reconhecimento”, diz Aparecida, a filha mais nova. Por isso, a família mandou parentes, um sobrinho e um irmão de Manoel, mais um cunhado.

“Foram os três, José de Lima, Paulo e o tio Osvaldo, irmão da minha mãe. Foram os três. Levaram a roupa, mas não puderam entrar”, lembra Aparecida, a filha mais velha, hoje com 60 anos.

Os funcionários do IML negaram que o corpo estivesse lá. Sabendo que era mentira, o irmão de Manoel insistiu. Tanto fez que afinal admitiram que o corpo estava lá, mas que tinha chegado havia pouco: “Ele passou mal no serviço e, levado para o HC, acabou de falecer”, disse alguém, conforme regsitra o repórter Carlos Alberto Luppi.

Para morte tão corriqueira, os cuidados no IML eram para lá de exagerados. Havia ordens para que ninguém visse o corpo. E tudo tinha de ser feito na surdina, sem aviso à imprensa nem divulgação do  velório.

“O enterro deve sair daqui mesmo e a família não deve ser avisada”, foi a determinação que os parentes de Manoel ouviram de policiais no IML.

E ai de quem tentasse fazer qualquer coisa. A ameaça era clara: se houvesse “escândalo”, dariam um fim no corpo de Manoel, o cadáver seria enterrado como indigente em vala comum e nunca mais seria descoberto.



CORRIDA POR MANOEL – 19ª etapa
Destino: “amarração” do IML, percurso de 10,33 km percorrido em 2h05min59
Distância total já percorrida: 195,37 km





No comments:

Post a Comment