Passavam vinte minutos das oito horas da noite do dia 17 de
janeiro de 1976 quando um automóvel grande, um Dodge Dart, estacionou em frente
à casa da família Fiel, na zona leste de São Paulo.
Um sujeito alto e magro desceu do carro, bateu à porta do
sobrado, falou com dona Thereza de Lourdes Fiel.
“Sou do Hospital de Clínicas”, disse o desconhecido, segundo
registra o repórter Carlos Alberto Luppi em seu livro “Manoel Fiel Filho – Quem Vai Pagar Por Esse Crime?”.
Entregou um embrulho para a já então viúva e falou: “Vim avisar
que se marido se suicidou. Aqui estão suas roupas”.
Mais não disse nem lhe foi perguntado.
“Eu saí xingando!”, lembra hoje dona Thereza. “Vocês mataram
meu marido!”, era o grito da ex-tecelã na ruela da zona leste.
No Dodge Dart, o homem se chispou. Em frente ao sobrado,
dona Thereza ficou com um saco de lixo azul; nele estavam as roupas de Manoel:
blusão, calça, sapatos, cinto e uma nota de Cr$ 10.
Dona Thereza tinha virado a noite anterior procurando
por Manoel. “Ela foi atrás dele
com um sobrinho do meu pai, que hoje mora em Quebrangulo, José de Lima.
Ele que andou com a minha mãe a noite inteira, procurando em todas as
delegacias”, conta Márcia, a filha caçula de Manoel.
Durante a
noite, alguém havia dito que Manoel estava preso, incomunicável. Agora sabiam
que ele estava morto, o corpo esperando no IML, o Instituto Médico Legal.
IML na década de 1970- Fotos Jurassaba Bueno, Arquivo do Estado |
“O Instituto
Médico Legal (IML) é o órgão
técnico mais antigo da Polícia de São
Paulo, criado
ainda durante o governo monárquico no Brasil em 1886”, ensina texto publicado
pelo Memorial da Resistência no programa Lugares de Memória.
O texto
prossegue: “O Instituto teve como origem o Serviço Médico Policial da Capital,
instituído pela Lei nº 18 de 07 de abril de 1886 e foi regulamentado pouco
tempo depois, no dia 20 de abril. A instituição funcionou a partir do
atendimento de dois médicos que acumulavam as funções de médicos legistas e
clínicos nas cadeias públicas.
Eram atribuições do Serviço Médico Policial da
Capital examinar indivíduos vivos e cadáveres encaminhados pelas autoridades,
produzindo exames de corpo de delito e cadavérico a partir da análise de lesões
e ferimentos das vítimas; realizar avaliação toxicológica de substâncias; conduzir
exames em corpos exumados; ministrar os primeiros socorros em feridos conduzidos
ao Serviço Médico Policial; e tratar clinicamente dos presos recolhidos em cadeias
públicas”.
O IML foi meu
destino de hoje, na 19ª etapa da Corrida Por Manoel.
Já fora lá
várias vezes, no início da década de 1990. Nenhuma delas foi divertida. Como
repórter de Cidades, acompanhei trabalhos investigativos de médicos legistas.
Ouvi gente que esperava para receber de volta os corpos de parentes ou amigos.
Há quem caia
em prantos, há quem chore em silêncio; outros ficam catatônicos, enquanto
alguns explodem de raiva. Em todos se nota a dor da impotência, a consciência de
que não podem fazer mais nada.
O IML fica na
rua Enéas Carvalho de Aguiar número 600, na esquina com a Teodoro Sampaio. O
bairro é Cerqueira César, região central da cidade. Fica numa espécie de
superquarteirão médico.
Atravessando
a rua, os cerca de 700 metros de extensão da Enéas Carvalho de Aguiar, no lado
ímpar, é quase todo ocupado pelo complexo de prédios que integram o Hospital de
Clínicas, o HC, que por nome completo é Hospital de Clínicas da Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo.
Na Teodoro Sampaio,
o vizinho de frente do IML é a Faculdade de Saúde Pública.
O quarteirão
mesmo onde está o IML é gigante, tendo por limites a Enéas Carvalho de Aguiar,
a Teodoro Sampaio e as avenidas Doutor Arnaldo e Rebouças. Ali ficam a
faculdade de Medicina, o Incor, o Hospital do Câncer e o Emílio Ribas, que
trata de doenças infecciosas.
A volta no
quarteirão tem 1.700 metros, que eu fiz repetidas vezes na manhã de hoje. Notei,
por exemplo, as minilixeiras para baganas de
cigarro instaladas na cerca do Hospital do Câncer; ali funcionários se
reúnem em horas de folga, aspirando baforadas rápidas do mesmo veneno que
contamina os doentes que eles atendem. Vai entender.
Nas minhas
voltas, pensava em Manoel, na família de Manoel, em como foram tratados e mal
tratados.
No início da
tarde do dia 17 de janeiro de 1976, o corpo do operário foi levado do DOI-Codi,
onde fora morto, para o IML. O diretor do instituto, Arnaldo Siqueira, ordenou
que os médicos legistas José Antonio de Mello e José Henrique da Fonseca
fizesse exame de corpo de delito no cadáver de Manoel Fiel Filho.
O exame
necroscópico deveria responder aos seguintes quesitos: Primeiro: Houve morte?;
Segundo: Qual a causa?; Terceiro: Qual o instrumento ou meio que a produziu?;
Quarto: Foi produzida por meio de veneno, fogo, explosivo, asfixia ou tortura,
ou por outro meio insidioso ou cruel.
Instalações do IML na década de 1970 |
No laudo,
reproduzido no livro de Luppi, os legistas descrevem assim o corpo que analisaram: “Cadáver de indivíduo adulto, do sexo masculino, de cor branca, aparentando a
idade da qualificação, biotipo brevelíneo, cabelos pretos, grisalhos nas têmporas,
supercílios pretos, bigodes grisalhos, olhos castanho escuros, equimoses subconjuntivas
bilaterais, barba por fazer, dentes presentes e bem conservados em ambas as
arcadas, panículo adiposo regularmente distribuído pelo corpo, de acordo com o
sexo, musculatura bastante desenvolvida, pilosidade abundante, genitais
externos sem alterações. 1) Notava-se extensa cianose tomando toda a pela
visível da cabeça e da face, protusão da língua e líquido sanguinolento
vertendo das narinas; 2) Região cervical: apresneta um laço constituído de duas
meias, situado na região mediana do pescoço, circular, horizontal, não
interrompido e duplo. Laço constituído de duas meias amarradas pelas
extremidades correspondentes às pontas dos pés. Esse laço achava-se enrolado na
região do pescoço com duas voltas e o nó corresponde às extremidades distais encontrava-se
na região posterior juntamente com o primeiro que unia as pontas dos pés das
meias. Esse laço formava dois sulcos paralelos em alguns pontos e unidos em
outros, formando impressões cutâneas pálidas e isquêmicas, separadas por zonas
de hipóstase tanto acima como abaixo desses sulcos. Na região da nuca notava-se
também ligeira escoriação superficial da pele no pescoço entre os sulcos. 3)
Tórax e abdômen, dorso e membros sem vestígios de soluções de continuidade
recentes na pele. Notamos uma cicatriz antiga circular, hipocrômica de bordas
pigmentadas no terço distal da perna direita, face externa; outra cicatriz de
seis centímetros na região inguino-abdominal direita (Mac Burney). 4) Região
perineal anterior e posterior sem sinais de violência”.
O repórter Carlos
Alberto Luppi nota que as tais “equimoses subconjutivais bilaterais” significam
a existência de rompimento de pequenas artérias; são resulta de ocorrência que
agrida a vítima, como socos.
Os legistas,
como se vê, não deram maior atenção a isso. Suas respostas aos quatro quesitos
que investigaram foram as seguintes: ao primeiro, sim; ao segundo, asfixia mecânica
por estrangulamento; ao terceiro, agente conscritivo contundente; ao quarto,
não.
A farsa serviu
para a rede de mentiras montada pela ditadura naquele momento, mas não resistiu
ao exame da história. Os dois médicos legistas estão citados no relatório da
Comissão da Verdade, responsabilizados por “ocultação de informação das causas
da morte de Manoel Fiel Filho”. O médico legista Ernesto Eleutério também
aparece no documento, acusado de “ocultação de informações do laudo preliminar
induzindo à alteração da causa mortis
de Gastone Lúcia de Carvalho Beltrão; Manoel Fiel Filho”.
Depois de
examinado em maca de ferro, o corpo de Manoel foi colocado em uma das
geladeiras em que os cadáveres até serem liberados para enterro. O destino do
corpo de Manoel, na noite de 17 para 18 de janeiro de 1976, ainda era incerto.
O homem que
apareceu na casa da família dissera ser do Hospital de Clínicas. Mas todos
sabiam que o corpo deveria ser procurado no IML.
“Não podia ir
mulher nenhuma para fazer reconhecimento”, diz Aparecida, a filha mais nova. Por
isso, a família mandou parentes, um sobrinho e um irmão de Manoel, mais um
cunhado.
“Foram os
três, José de Lima, Paulo e o tio
Osvaldo, irmão da minha mãe. Foram os três. Levaram a roupa, mas não puderam
entrar”, lembra Aparecida, a filha mais velha, hoje com 60 anos.
Os funcionários do IML
negaram que o corpo estivesse lá. Sabendo que era mentira, o irmão de Manoel
insistiu. Tanto fez que afinal admitiram que o corpo estava lá, mas que tinha
chegado havia pouco: “Ele passou mal no serviço e, levado para o HC, acabou de
falecer”, disse alguém, conforme regsitra o repórter Carlos Alberto Luppi.
Para morte tão
corriqueira, os cuidados no IML eram para lá de exagerados. Havia ordens para
que ninguém visse o corpo. E tudo tinha de ser feito na surdina, sem aviso à
imprensa nem divulgação do velório.
“O enterro deve sair daqui mesmo e a família não deve ser avisada”, foi a determinação que os parentes de Manoel ouviram de policiais no IML.
E ai de quem
tentasse fazer qualquer coisa. A ameaça era clara: se houvesse “escândalo”,
dariam um fim no corpo de Manoel, o cadáver seria enterrado como indigente em
vala comum e nunca mais seria descoberto.
CORRIDA POR MANOEL – 19ª etapa
Destino: “amarração” do IML, percurso de 10,33 km percorrido em 2h05min59
Distância total já percorrida: 195,37 km
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