Equiparação
salarial com os homens, tratamento digno no local de trabalho e redução da
jornada diária de 16 horas para dez horas –em nome dessas reivindicações, as
operárias de uma fábrica de tecidos de Nova York foram à greve.
Era o ano de
1857, e os direitos civis e democráticos estavam longe das mulheres na terra
que se dizia a maior democracia do planeta. A repressão foi violenta, feroz,
assassina: no dia 8 de março, a fábrica foi incendiada, todas suas saídas
trancadas.
Cerca de 130
tecelãs morreram queimadas.
Em uma
conferência na Dinamarca, em 1910, o 8 de Março passou a ser reconhecido como
Dia Internacional da Mulher. Mais de sessenta anos mais tarde, em 1975, a data
foi oficializada pela Organização das Nações Unidas.
Na delegação
brasileira presente no Primeiro Congresso Internacional da Mulher (esse da ONU,
de 1975) estava uma senhora de 83 anos, aposenta havia mais de dez.
Foto Reprodução |
Era Bertha
Lutz.
Zoóloga de
profissão, Bertha Lutz é reconhecida como a maior líder da luta pelos direitos
políticos das mulheres no Brasil.
É uma espécie de matriarca do feminismo
verde-amarelo.
Filha do
pioneiro da medicina tropical Adolfo Lutz e da enfermeira britânica Amy
Fowler, Bertha nasceu em 1984. Estudou na Europa –fez biologia na Sorbonne, de
Paris--, onde entrou em contato com as sufragistas britânicas.
Voltou ao
Brasil em 1918. Um ano depois, já atuando na sua profissão, botou fogo na
campanha pelo voto feminino, arregimentando apoiadoras e ativistas: com elas,
criou a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher, que foi o embrião da
Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF).
A página do
Senado Federal ensina: “Em 1922, Bertha representou as brasileiras na
Assembleia-Geral da Liga das Mulheres Eleitoras, nos Estados Unidos, sendo
eleita vice-presidente da Sociedade Pan-Americana. Somente dez anos depois do
ingresso das brasileiras na Liga das Mulheres Eleitoras, em 1932, por
decreto-lei do presidente Getúlio Vargas, foi estabelecido o direito de voto
feminino”.
Não bastava
para ela –nem apara as mulheres. Organizou o primeiro congreso feminista no
Brasil e ainda diversas associações: União Universitária Feminina, Liga
Eleitoral Independente, União Profissional Feminina e União das Funcionárias
Públicas. Foi deputada federal e, na Câmara, batalhou pelos direitos das
mulheres.
Chegando à rua Bertha Lutz, Gabriela, Yara e eu - Fotos Eleonora de Lucena |
Em homenagem
a ela e à luta das mulheres, o percurso de hoje, na 17ª etapa da CORRIDA POR
MANOEL, teve como destino a rua Bertha Lutz, uma vielinha na zona norte de São
Paulo, onde se chega depois de um monte de curva para cá e para lá, subidonas
e fortes descidas.
É uma rua de
família: não notamos nenhum estabelecimento comercial, nem barzinho de esquina.
Falo “não
notamos” porque estávamos em três: a promotora Gabriela Manssur e a jornalista
Yara Achôa participaram comigo dessa jornada dedicada às lutas femininas.
Começamos no
centrão, um pouco abaixo da praça da Sé, atrás do Solar da Marquesa de Santos,
em frente à Primeira Delegacia de Defesa da Mulher.
Pioneira no
Brasil, a DDM foi criada em São Paulo em 6 de agosto de 1985 pelo então
governador André Franco Montoro (1916-1999).
“A ideia era
oferecer um espaço diferenciado para a mulher, que seria atendida por outras
mulheres, para que ela ficasse mais à vontade para falar a respeito desse
assunto”, lembra Rosmary Correa, a primeira delegada da repartição, em entrevista
à EBC. Hoje há nove delegacias da mulher na capital e 130 no Estado de São
Paulo.
Pode parecer
muito bom –e é. Mas as delegacias da mulher funcionam em regime especial. Não
abrem à noite nem nos finais de semana; nesses dias e horários, as mulheres vítimas
de violência têm de buscar ajuda nas delegacias comuns, onde nem sempre são bem
atendidas.
Na corrida
de hoje, portanto, a largada foi em frente à uma casa fechada.
Tudo bem.
Saímos para
enfrentar um percurso bem acidentado, começando com um “mergulho” desde a Sé
até avenida do Estado, onde cruzamos o primeiro viaduto do trajeto.
O segundo
seria para chegar ao largo da Concórdia, que hoje estava mesmo em paz e
tranquilidade, mas que, nos dias de semana, ferve com vendedores ambulantes que
oferecem de um tudo aos passantes.
Enquanto
corríamos, Yara e Gabriela contaram um pouco de suas aventuras mais recentes.
As duas
estão trabalhando firme na promoção da corrida Movimento pela Mulher, que foi
idealizada por Gabriela em parceria com duas atletas-blogueiras, Deborah
Aquino e Paula Narvaez.
A prova
serve como propaganda e divulgação das lutas femininas, além de ser um estímulo
à atividade física. “A ideia é levar mulheres e homens a refletir e discutir
temas como empoderamento, igualdade e justiça e conscientizar a sociedade e o
poder público sobre o grave problema social que é a violência contra a mulher”
–assim diz o material de divulgação da corrida (saiba mais AQUI).
Pois falando
de corrida e maratona, da vida do dia a dia e das lutas femininas, acabamos
conseguindo chegar à rua Bertha Lutz sem nos perdermos muito.
É pouco mais de
uma viela, não chega a ter nem cem metros. Mas é uma lomba de respeito, que
nós tratamos de subir como se deve: correndo à toda, desafiando um ao outro
para ver quem chega no alto primeiro.
Chegamos
todos. E festejamos.
Depois de
baixados os batimentos cardíacos –subir a toda a lombinha da Bertha Lutz manda
o coração aos píncaros da glória, pode me acreditar--, conversei mais um pouco
com Gabriela Manssur sobre seu trabalho como promotora de Justiça.
Casada, mãe
de três filhos, ela tem 42 anos e é promotora há 13 anos; antes, atuou como
advogada. Trabalha em Taboão da Serra no
Núcleo de Combate à Violência contra a Mulher e é diretora da Associação
Paulista do Ministério Público – diretoria da mulher.
Eis a seguir
um resumo de nossa conversa.
RODOLFO
LUCENA - Começamos nossa corrida em frente à Delegacia de Defesa da Mulher. Por
que é preciso existir uma delegacia da mulher?
GABRIELA
MANSSUR - A DDM é imprescindível, porque ela tem um atendimento com um olhar
para essa mulher vítima de violência.
Se a mulher
chega numa delegacia comum e fala que foi vítima de violência, não é dada a ela
a atenção devida. É como se fosse um crime de menos importância; passam na
frente homicídio, tráfico de drogas, roubo, e aquela mulher fica esperando
horas e horas para ser atendida.
Às vezes ela
vai relatar uma ameaça, contar que levou um tapa, enfim, não é um crime
importante [para a delegacia comum]. A Delegacia da Mulher é própria para isso,
então ela recebe um atendimento muito mais humanizado, com esse olhar de
gênero.
Há um
atendimento mais confidencial, com mais habilidade; muitas vezes é feito por
mulheres. É um atendimento muito melhor para essa mulher abrir o coração dela,
falar, denunciar.
Por que a
senhora passou a atuar nessa área de combate à violência contra a mulher?
Eu sempre
gostei de trabalhar com o empoderamento da mulher. Antigamente não se falava de
empoderamento, mas de conquista de direitos, luta por direitos já conquistados.
Empoderamento
da mulher, para mim, nada mais é do que dar às mulheres consciência dos
direitos delas, para que elas exercitem esses direitos que já foram
conquistados.
Quando eu
ingressei no Ministério Público, percebi que as mulheres sofriam muita violência
física, muita violência psicológica, muita violência sexual, e que nós não
tínhamos um instrumento legal, jurídico, à altura do combate, do enfrentamento,
da prevenção dessa violência.
Isso me
trazia uma certa indignação, um certo inconformismo, próprio já aí dos
promotores de Justiça.
Comecei a
acompanhar já aí a evolução do texto da Lei Maria da Penha, que foi aprovado em
2006. Eu já era promotora de Justiça. E aí eu me interessei muito por todos os
institutos legais que estavam na Lei Maria da Penha, que é uma lei muito ampla,
de proteção integral à mulher vítima de violência, que prevê não só a parte
criminal e a parte da punição do autor de violência com também a parte
assistencial da vítima de violência doméstica, que é o que as mulheres mais procuram,
mais precisam.
Então passei
a me dedicar muito a isso: aplicar a lei, lutar por sua aplicabilidade e fazer
valer todos esses dispositivos que estão na lei.
A Lei Maria
da Penha é um legado que vamos deixar para nosso país e para o mundo, mas nós temos
ainda um alto índice de violência contra a mulher.
Então
precisamos identificar onde está essa lacuna. E é nisso que eu trabalho muito.
A lei deu a
visibilidade para esse tema, e hoje em dia nós falamos muito mais abertamente
sobre a violência contra a mulher.
Antes, era
como se estivesse entre quatro paredes. Hoje essas portas dessas quatro paredes
se abriram, e isso deixou de ser um problema particular.
Hoje em dia
a violência contra a mulher é uma causa pública, que deve ser encarada de frente
por todos e todas.
A mulher
está reagindo mais?
Muito mais.
Logo no começo da Lei Maria da Penha, eu percebi que as mulheres passaram a
denunciar mais, a procurar mais a Justiça. Ainda um pouco ressabiadas, com um
pé atrás, sem saber o que elas iriam encarar pela frente.
Mas elas
demoravam para denunciar. A gente pegava casos em que a mulher sofria violência
havia cinco anos, dez anos, vinte anos... Aquela lei foi como se tivesse sido
aberta a porta da liberdade, para sair daquele ciclo de violência. Eram
mulheres mais velhas, mais de 40 anos, mais de 30 anos.
Hoje em dia,
a procura pela Justiça, a denúncia feita por essas mulheres, elas partem de
jovens, que já estão conscientes de seus direitos e não aceitam a violência,
seja numa balada, seja num bar, seja no ambiente universitário, na escola...
Elas já procuram denunciar a situação de violência.
Eu vejo
também que as mulheres que estão em algum relacionamento abusivo, em que ainda
não existe uma violência explícita, elas já conseguem identificar que isso pode
se tornar um relacionamento violento e elas procuram ajudam mais rápido.
Isso é
importante por que é uma forma de prevenir a violência mais grave contra a
mulher. Porque nem sempre você consegue identificar e agir de forma segura para
a mulher; muitas vezes ela já está em um ciclo de violência forte, em que ele
está sofrendo violência física muito forte, ela está sofrendo tentativa de
homicídio, ela está sofrendo estupros constantes, e aquela mulher está tão
enfraquecida que ela não consegue mais se enxergar como sujeito de direitos e
perceber que ela consegue sair desse ciclo da violência.
Isso acaba
evoluindo para o feminicídio.
Hoje a gente
consegue identificar os fatores de risco em que ela está. É como se uma mulher
estivesse com câncer de mama, fosse a um médico e ouvisse do médico: “Você tem
de fazer uma quimioterapia porque senão você vai morrer”. E aquela mulher fala:
“Não quero fazer quimioterapia...”
É a mesma
coisa no caso da violência. Ela procura uma porta de entrada do acesso à
Justiça. A gente diz: “Você tem de denunciar, você tem de medir uma medida
protetiva”, e ela não quer, e aí você não consegue impedir que aquela “doença”,
a violência, se alastre de uma forma incontrolável, e a gente não consegue
salvar a vida dessa mulher.
É bem aí que
eu atuo: quebrando esse ciclo da violência.
O que a
senhora faz?
Trabalho com
a autoestima dessa mulher, as mulheres que chegam para mim nos processos no
Ministério Público e na sociedade em geral.
A gente
determina a instauração do inquérito policial e acompanha essa mulher por dois
pilares: um, fazendo o empoderamento dessa mulher, vendo o que essa mulher
precisa como sujeito de direitos –ela precisa trabalhar?, ela precisa estudar?,
ela precisa de saúde?, ela precisa de transporte?, ela precisa – uma
atendimento psicológico, ou psiquiátrico?.
Então a gente faz essa parte
assistencial.
O segundo
pilar é a parte da Justiça: a gente faz toda a parte do acompanhamento do caso
dela para que esses fatos sejam punidos.
A sensação
da punição do autor da violência daquela mulher é muito importante, porque ela
sente que o que ela falou tem valor e que alguém está preocupado com a vida
dela. E que o que foi feito contra ela é grave, é crime, e existe uma punição,
existe uma resposta da Justiça.
E eu criei
uma nova frente, que é trabalhar com o agressor.
Porque muito
embora a gente faça todo esse trabalho, a violência contra a mulher não
diminuiu.
Percebi que,
em muitos casos, o homem é reincidente. Ele cometeu aquela violência contra aquela mesma vítima
ou contra outras mulheres –filha, mãe, namoradas anteriores. Você percebe que o
comportamento dele está enraizado, ou culturalmente ou pela criação dele, por
aquilo que ele viu durante toda a sua vida, ou porque foi criado em ambiente
violento, porque viu a mãe ser agredida ou ele mesmo foi agredido.
Entende que
aquilo que ele pratica não é violência, acha que a mulher realmente merece ser
violentada porque ela estava com saia curta ou porque ela traiu ou porque ela
quer trabalhar ou porque ela quer ser mãe ou porque ela optou por não ser mãe.
Ou seja, ele não consegue respeitar as escolhas e a autonomia da mulher.
Comecei a
trabalhar com esses homens que estão sendo processados. Tentar transformar esse
comportamento deles ou, pelo menos, tentar conscientizá-los de que aquilo que
ele fez é errado. Buscar o comprometimento dele de que não vai se comportar
mais daquele jeito, o que também vai lhe dar um benefício legal.
Como as
mulheres enfrentam a violência institucional?
Toda a
mulher sofre a violência institucional. Não é uma violência física, que alguém
te agride ou te assedie; são as poucas oportunidades que a mulher tem para
ocupar espaço de liderança, espaços de poder dentro das instituições, dentro
das empresas, dentro dos escritórios de advocacia.
Existe uma
pesquisa que fala que o Brasil é o terceiro pior país do mundo em termos de
incentivo à participação das mulheres em cargos de liderança e poder. Está
atrás do Japão e da Alemanha, que são piores.
Como é um
aspecto cultural, as pessoas não percebem que não estão incentivando as
mulheres a participar. Simplesmente não tem mulher [em cargos de liderança] e é
como se isso não fosse uma meta a ser cumprida em termos de igualdade entre
homens e mulheres nos cargos de liderança em empresas públicas e privadas.
Hoje em dia,
o ingresso na carreira [de promotor público] é equilibrado, ou seja, não existe
uma vedação para a mulher ingressar no Ministério Público. Não: é concurso
público. Mas o que eu vejo é o seguinte: a mulher tem aquela dupla ou tripla
jornada de trabalho, em que via de regra ela não pode abrir mão da sua vida
pessoal, familiar, para ir para determinadas promotorias ou comarcas no
interior, e isso acaba atrasando um pouco a carreira dela.
Isso também
afasta a mulher profissional da vida institucional. Ela não consegue, além de
dar conta da casa, cuidar de filho, cuidar da vida pessoal, trabalhar –e o
nosso trabalho é muito sacrificante, é muito duro, são vários processos com
pouca estrutura, o que é próprio dos órgãos públicos—e ainda fazer parte da
vida institucional. Participar de reuniões, de projetos, de movimentos de
política institucional. Isso é muito difícil para a mulher conseguir. Então ela
acaba se afastando dessa vida política.
Para os
homens, é bem mais fácil. E eles acabam dominando esses espaços de poder, que
poderiam, sim, ser ocupados por mulheres.
Eles estão
vedando as mulheres de participar? Não. Mas também não estão enxergando que nós
não estamos participando. E precisam ser desenvolvidas políticas de
participação das mulheres, com flexibilização de horários, adotando algum tipo
de meta a ser alcançada, mas que sejam de alguma forma abertas as portas para
nossa participação.
E o esporte?
Qual o papel do esporte nisso tudo?
É total. Dá
uma sensação de liberdade, de conhecer pessoas novas, compartilhar histórias,
saber que você faz parte da história.
É bom para a
autoestima, dá uma sensação de que você pode, você consegue se relacionar com
pessoas que não conhecia antes, entender a história dessas pessoas. Isso de
alguma forma te acrescenta. Você se sente importante por isso, você se sente
parte dessa sociedade.
Você
transfere isso para sua vida profissional, você também quer mudar a realidade
dentro de sua vida profissional.
Empreendedorismo social, liderança,
desenvolvimento de projetos que atinjam a sociedade mais carente. Você acaba
construindo metas e transferindo isso para sua vida pessoal.
Fora a
sensação de liberdade, a saúde, que é muito importante ter saúde física e mental
para lidar com todo esse tipo de violência de que você acaba indiretamente
sofrendo, quando você atende casos de violência muito graves, violência contra
criança, pedofilia, abusos sexuais, violência muito forte contra a mulher.
O esporte é
uma satisfação pessoal. Você começa a ver que existe felicidade, existe vida
fora daquele relacionamento ruim, daquele trabalho ruim, daquela situação em
que você está infeliz.
Quando você
corre você enxerga isso de uma forma diferente. Você vê isso como uma possibilidade
de mudar a sua vida, seja na parte profissional seja na parte pessoal seja na
sua forma física , na sua saúde.
Muita gente
começa a correr para parar de fumar, para emagrecer, para melhorar a
autoestima.
Eu comecei a
correr há anos, corro há muito tempo, e o esporte sempre me clareou as ideias.
Quando você começa a atingir objetivos dentro do esporte, você fala: poxa, eu
consigo mudar de vida, eu também quero isso na minha vida pessoal.
Essa
sensação de felicidade, de liberdade, de autonomia, você quer ter para sempre.
CORRIDA POR
MANOEL – 17ª etapa
Destino: Rua
Bertha Lutz, com largada em frente à 1ª Delegacia de Defesa da Mulher, percurso
de 10,46 km, realizado em 1h20min
Distância
total já percorrida: 163,29 km
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