3.4.16

Crianças, pais e professores da escola Manoel Fiel Filho caminham pela democracia e pela paz

“Pela vida e pela paz, ditadura nunca mais!” foi o brado que ecoou na manhã de sábado pelas ruas do Parque São Rafael, distrito pobre da periferia de São Paulo, no extremo sudeste da cidade, divisa com os municípios de Santo André e Mauá.

Era o canto de vozes risonhas de meninos e meninas que ainda nem chegaram à escola primária e precisam andar na cidade de mãos dadas com seus pais e mães, professores e avós –como estavam durante a caminhada que surpreendeu quem saía para fazer a feira da semana ou já trabalhava em algum conserto doméstico, aproveitando esperada folga.

Ao coro das crianças se somava o tom agudo e cristalino das mulheres, poderosa maioria entre as dezenas de pessoas que participavam da caminhada. Por contraste, das profundezas de gargantas masculinas vinha cantochão puxando palavras de ordem: “Manoel Fiel Filho, presente!”

Fotos Eleonora de Lucena


Passa por vielas, tangencia barracos, cruza sobre água suja escorrendo pelas encostas, marcha em subidões, aumenta o ritmo na descida, para o tráfego na principal avenida do bairro: a escola municipal de educação infantil Manoel Fiel Filho se levantava e diz, ela também, presente nas jornadas democráticas que vêm tomando conta de nosso país.

A manifestação marca a última etapa do projeto CORRIDA POR MANOEL e a conclusão de várias semanas de atividades pedagógicas com crianças de três a cinco anos e com seus pais.



Com a ajuda dos professores, ao longo do último mês a comunidade do Parque São Rafael –pelo menos, a que gira em torno da escola pré-primária—fez um mergulho na história do metalúrgico Manoel Fiel Filho, “o operário que derrubou a ditadura” no dizer do documentário de Jorge Oliveira que revisita a tragédia do militante sindical e as consequências políticas do assassinato de Fiel Filho.

O motor do projeto foi a orientadora pedagógica Lilian Cangussu, uma loiríssima jovem de 37 anos, quase metade deles dedicados à educação de crianças e jovens, a pensar e a estudar o ensino.



Neste ano bissexto, conversei com ela na tarde do dia 29 de fevereiro, uma segunda-feira.

Eu preparava o projeto CORRIDA POR MANOEL, traçava planilhas, construía agenda, tentava vislumbrar uma possível ordem na série de 40 percursos de modo a que pudesse contar, com minhas passadas, não só a história de Fiel Filho mas também a das lutas pela democracia ao longo dos anos 1970 (e mais e sempre).

Minha caminhada me faria mergulhar em muita dor e sofrimento, violência, brutalidade, na desumanidade que brota e transborda quando os poderosos se veem ameaçados pelo amanhecer democrático.
Também traria à tona os atos de heroísmo, desprendimento e generosidade de que só os lutadores do povo são capazes –foi o que vi e procurei mostrar ao longo dos mais de quatrocentos quilômetros dessa jornada.

Ela não tem fim, eu sei, mas para onde o caminho aponta, para onde vamos, o que fazer? Não há respostas para isso, mas, se temos compromisso com o futuro, há que pensar nas crianças, conversar com elas sobre o presente, desde sempre.

“Mas precisa ser correndo?”, me pergunta Lilian.  “Pois é, são crianças de até seis anos”, respondo eu, deixando transparecer na voz –segundo me disse a professora—uma certa decepção. De certo, eu esperava adolescentes vibrantes, com quem pudesse trocar ideias inflamadas para sairmos todos em barulhento movimento desafinando o coro dos contentes.



A conversa entre os dois desconhecidos, apresentados apenas naquela conversa por telefone, seguiu aos solavancos, cada um tentando descobrir o que o outro estava pensando, propondo.

A professora parecia curiosa, interessada, mas desconfiada; eu queria mobilizar a escola, a única da cidade de São Paulo nomeada em homenagem a Manoel Fiel Filho.

De pedregulhosa, a conversa foi se azeitando, ganhando corpo, se transformando em projeto conjunto. A professora calcula os dias que tem para o trabalho, analisa possibilidades, promete estudar o assunto, vai conversar com a diretoria: “Dá para fazer”, me assegura Lílian.

De lá para cá, conversamos mais uma ou duas vezes; eu cheguei a ir até a escola para uma conversa preparatória com pais e professores. Fui recebido pela simpatia generosa da diretora da escola, Miriam de Cássia Valério.



A orientadora pedagógica, porém, não estava: só no dia da nossa caminhada fui conhecer a organizadora da CORRIDA POR MANOEL na EMEI Manoel Fiel Filho.

Com outra professora, ela tomou a frente do grupo. As duas seguraram a faixa que foi o abre alas das quase sessenta pessoas que participaram do encontro, da passeata pela vida e pela paz.

Havia muitas crianças, algumas buscavam o colo dos pais enquanto outras valentemente enfrentavam o asfalto.



Homens, mulheres, pais, professores, vizinhos e funcionários da escola, representantes da Delegacia Regional de Ensino de São Mateus e do CEU Parque São Rafael, todos tinham dados gargalhadas enquanto brincavam, no aquecimento para a jornada, dando pulinhos, rebolando um pouco, espreguiçando os músculos, preparando o corpo para a marcha cívica que viria a seguir.

No espírito da energia, o grupo de adolescentes Dance Stars, que se reúne no CEU São Rafael, fez uma demonstração de sua arte, dançando ritmo de rua, apresentando a todos o ragga, alegrando a manhã e mandando seu recado de luta por livre expressão.



Foi nessa batida que nos ajeitamos, arrumamos e subimos a rampa até a calçada –construída na encosta de um dos morros do bairro, a escola fica num platô vários metros abaixo do nível da rua. Olhando por sobre seus muros, dá para ver outras colinas do Parque São Rafael, cravejadas de casas simples, inacabadas, amontoadas umas sobre as outras.



Assim nos fomos todos, aos gritos de “Viva a Escola Manoel Fiel Filho!” e de “Ditadura nunca mais!”

“Muito legal participar”, me diz um pai que carrega nos ombros o filho pequeno, os dois usando na cabeça viseiras construídas na escola especialmente para a caminhada.



“É uma coisa nova para mim, nunca tinha participado de nada na escola”, afirma ele que, com a esposa, havia sido um dos primeiros a chegar na manhã de sábado..

Adolescentes e funcionários transformavam a caminhada numa grande brincadeira, algumas ensaiando passos de samba, outras jogando os braços para o alto como se estivessem na avenida, transformando em hino as palavras cantadas de forma ritmada, como se pergunta e resposta: “Pela vida e pela paz, ditadura nunca mais!”



De porta-bandeira, as professoras carregavam a faixa que apresentava à comunidade nossa jornada: “CAMINHADA POR MANOEL”, dizia em letras vermelhas, seguidas pela explicação: “Homenagem a Manoel Fiel Filho, o operário que derrubou a ditadura”.

De um dos lados da faixa, a foto de Manoel que se tornou ícone em todas as manifestações em sua memória. Tirada da carteira profissional do operário, mostra o homem de terno, engravatado, rosto imberbe.



Na outra lateral, um desenho feito por criança. De traços simples, colorido, a figura humana tem o rosto redondo como o de Manoel, e a gravata se destaca no conjunto.

A pintura é dos resultados dos trabalhos que as professoras desenvolveram com a criançada e com a comunidade ao longo das semanas que antecederam nossa caminhada.



Para os educadores, o momento foi uma oportunidade de mergulhar na história do personagem e ainda consolidar a presença da escola na comunidade, afirmar sua identidade, como a coordenadora pedagógica me contou em relatório que fez sobre as atividades:

“Inicialmente verificamos a necessidade de construir a identidade da escola, pois qualquer pai ou pessoa da comunidade a ela se referia como “o prezinho ao lado do posto de saúde”; “a escolinha do lado do Osaka”.  Assim, nos horários de formação dos professores, fizemos uma pesquisa mais acirrada acerca da história do operário Manoel Fiel Filho e discutimos a didática a ser empregada para tratar o tema com crianças de três a cinco anos de idade.”


Decidiram fazer o trabalho em duas etapas, buscando primeiro envolver a comunidade, fazendo numa abordagem histórica para apresentar aos pais dos alunos a história do patrono da escola e o contexto em que ele viveu, o período da ditadura militar.

Com as crianças, a ideia foi buscar que elas relacionassem o nome da escola à pessoa que foi Manoel. Houve desdobramentos, com discussões sobre a profissão do operário, as profissões dos pais dos alunos e o que as crianças queriam ser quando crescessem.



Os resultados foram sensacionais, como qualquer um que visite a escola pode ver: nas paredes estão montados murais com os desenhos das crianças, mostrando claramente o caminho da atividade pedagógica.

Mas me adianto. Melhor deixar que Lilian siga com seu relatório:

“Nas rodas de conversa sobre o Patrono, um dado inusitado foi a descoberta, pelas crianças, de Manoel ter sido uma pessoa. As crianças estavam acostumadas a falar o nome da escola, porém sem refletir sobre quem é Manoel, e ao se deparar com o retrato em mãos passado na roda, com a história contada pela professora de que Manoel foi um homem de verdade, um Operário, e que também já tinha sido padeiro e cobrador de ônibus, ficaram impressionadas. Surgiram relatos ricos e significativos como:
“-Professora então Manoel era um homem de verdade?”
“-Nossa, meu pai também é padeiro.”
“-Padeiro é quem faz o pão! (numa pequena conversa paralela entre dois alunos que divergiam sobre a profissão de padeiro: padeiro faz o pão ou vende, e no final da conversa concluem que padeiro faz o pão, porque vender pode ser qualquer pessoa. ”
-Quem é o cobrador de ônibus ?
Essas questões impressionaram a equipe como um todo. Uma professora relata:
“... O que me chamou a atenção nesse trabalho com o Patrono da Unidade foi o fato das crianças se admirarem por Manoel ter sido real, pra gente que é adulto é tão natural, que sabemos da história, mas como muitas vezes não resgatamos o verdadeiro sentido do tema trabalhado, por julgarmos que é sabido por todos, ou que não é necessário. Esse trabalho me fez refletir sobre isso...” 



As discussões com as crianças renderam muitas aulas sobre as profissões, pesquisas em jornais e revistas sobre profissões conhecidas, e discussões sobre algumas profissões que estão desaparecendo no contexto da pós-modernidade, como é o  caso do cargo de cobrador, muitas crianças nem conheciam que profissão era essa, pois muitos só utilizam lotações que em sua maioria só há a existência do motorista.

Outro desdobramento do trabalho das profissões foi o trabalho com o sonho, os projetos para o futuro, o que as crianças pensam sobre isso,  que profissão desejam ter em seu futuro e muitas foram as respostas: motorista de helicóptero, bailarina, professora, pedreiro, cantor, cantora, advogado, comprador.”

As famílias também ficaram profundamente envolvidas, e não só porque a escola fez reuniões com pais em que trouxe palestrantes como Marcos Ahlers, historiador da região, e encontros onde foram passados vídeos sobre o projeto CORRIDA POR MANOEL.



As próprias crianças levavam para casa as discussões tidas em classe, “aprendendo e ensinando uma nova lição”, como mostram relatos de pais citados por Lilian Cangussu:

“Eu estou orgulhosa do trabalho realizado com as crianças, pois meu filho chegou em casa contando com detalhes que sua escola chama-se Manoel Fiel Filho, um homem operário, houve realmente o envolvimento das crianças, eles agora conhecem o nome da escola, a pessoa que foi o Manoel, que nem eu mesma conhecia”, disse uma mãe.

Outra contou: “Eu estou muito feliz em ouvir a história do Patrono da Escola, é um orgulho saber que meu filho estuda numa escola que leva o nome de um homem justo e digno, uma pena ter sido injustamente morto, mas um orgulho ser o responsável pelo fim das mortes da Ditadura.”


A satisfação também tomou conta dos professores e da coordenação da escola: 

“Ele foi uma pessoa importante para nosso país”, afirma dona Miriam, diretora da escola. “Fazemos essa homenagem porque é importante valorizarmos uma pessoa que lutou pela democracia, pela liberdade, pelos direitos de todos.”

Ela não usa a frase consagrada pelo Núcleo Memória –“conhecer o passado, entender o presente, construir o futuro”--, mas sua fala traz o mesmo sentido de rememorar para prosseguir: “No momento em que a sociedade vive hoje, é importante valorizar esse pessoal”.



Por isso, ela era toda alegria ao longo da caminhada, conversando com pais e professores, incentivando crianças. No meio das dezenas de pessoas, Miriam dava orientações sobre o percurso –surpreendendo muita gente, fez com que a caminhada enveredasse pela avenidona Baronesa de Muritiba, a principal do bairro.

“Estou com o coração satisfeito”, resumiu Miriam Valério.

Era o sentimento evidenciado nos rostos de todos os participantes da última etapa da CORRIDA POR MANOEL, um mergulho na história de nosso povo, uma jornada pela vida e pela paz.

Que a última palavra, porém, não seja minha, do autor, do corredor , do jornalista, mas sim de uma de nossas caminhantes, senhora de vestidão azul e sandálias, pele crestada, longos cabelos grisalhos. É dona Elizabete Siqueira, mais conhecida na escola como “vó do Antônio”. 




Ela faz sua força virar voz, mensagem de sabedoria e movimento: “Eu gostei muito, muito, muito de participar dessa caminhada. Eu participei de algumas reuniões, gostei muito e sempre vou estar envolvida com vocês aqui. Nós precisamos lutar pelos nossos direitos, pela nossa liberdade”.



CORRIDA POR MANOEL – 40ª e última etapa

Destino: Escola Municipal de Educação Infantil Manoel Fiel Filho, no Parque São Rafael, percurso de 1,72 km realizado em 39min55

Distância total percorrida: 417,83 km
  



   




1.4.16

Praça da Sé acolhe e aquece o coração dos brasileiros

Correr chorando é difícil.

O choro mexe com as entranhas do vivente, remexe a musculatura, estressa os sentimentos, cavoca o estômago, retorce a boca, faz o nariz correr, avermelha os olhos. Parece que quer transformar o corpo todo em lágrima.

A corrida puxa o sangue para as pernas, cobra atenção do olhar, exige controle do abdômen, sacoleja as coxas, exaure a disposição, vaza gordura em suor, avermelha os olhos. Quer transformar o corpo todo em movimento.

Cada um, choro e corrida, quer o corpo todo para si mesmo, ciumentos que são de músculos, entranhas, esqueletos, pensamentos e emoções. Donde, como se conclui, correr chorando é difícil.

Na Paulista, na manhã de hoje, corri chorando. Devia ser uma peça uma tanto assustadora de ver –curiosa, pelo menos--, cabeludo, barbudo, com esgar de sofrimento, nariz pingando, olhos vazando, garganta fazendo um som que nem sei bem qual é.

Também não sei por que chorava: “São tantas emoções”, diria o meu amigo Roberto Carlos.

De fato.


Às 6h30 de hoje fiquei sabendo que tinham fracassado os meus planos para o dia de hoje, a 39ª etapa da CORRIDA POR MANOEL, penúltima das quarenta homenagens corridas e reportadas ao operário metalúrgico assassinado pela ditadura militar e ao combate pela construção da democracia no Brasil.

Meu convidado não poderia caminhar comigo, eu precisava criar outros planos.

Já tinha imaginado essa possibilidade –afinal, a noite anterior fora de luta no Brasil inteiro, manifestações gigantescas contra a tentativa golpista de impeachment da presidente Dilma se espalharam pelo Brasil como rastilho de pólvora incendiando os corações dos homens e mulheres de bem deste país.



Militante das causas do povo, meu convidado provavelmente tinha varado a noite nos eventos e reuniões pós-mobilização. Então saí para correr, proto para trazer outras histórias, mas disposto a deixar o coração solto, os pensamentos voarem, a imaginação se espraiar pelo asfalto, como é próprio das corridas de longa distância.

Logo de início, descansado, parei para admirar colorido grafite num murão da Doutor Arnaldo. E queimei o chão, partindo para correr como cachorro solto no campo.



Só quando cheguei à avenida Paulista comecei a botar meus pensamentos em ordem, tratando de montar na minha cabeça o mapa para chegar a um lugar que lembrasse a trajetória de meu homenageado.

Seria legal passar pela Sé, calculei. E a praça foi se agigantando na minha mente, as lembranças da manifestação da noite anterior ocupando minhas passadas, o Hino Nacional cantado por 60 mil vozes reverberando ainda nos meus ouvidos, arroucando minha voz, arrancando de mim lágrimas de alegria.

Pois a gente chora por tudo: de alegria, de dor, de esperança, de saudade, de ver o tempo passar. Eu choro mais ainda pela emoção do heroísmo, de ver o povo se levantar, estar ao lado de gente que faz a hora, não espera acontecer, como diz a canção.

E me vieram à mente as muitas Sés, a de Herzog e do Movimento Contra a Carestia, a da Anistia e de Alexandre Vannucchi Leme, a Sé onde foi acolhida a família de Manoel Fiel Filho.

Assim, a praça da Sé, da catedral transformada em casa do povo pelo arcebispo dom Paulo Evaristo Arns, virou o personagem dessa jornada de hoje, de quase-despedida da CORRIDA POR MANOEL.

Enquanto me decidia, corria. Já quase no fim da avenida Paulista –de fato, o começo, mas é o fim para quem vai daqui para lá--, passei por um boteco que me avivou recordações de outro campeão da lutas populares, agitador do campo, guerrilheiro na cidade, diplomata nos gabinetes.

Várias vezes cheguei àquela esquina podre e suado, depois de quilômetros pelo centro da cidade, pelo Cambuci e pela Liberdade. Para mostrar –a quem, me pergunto sempre?—que não fraquejava, completava o treino com uma das subidonas que leva até a Paulista.

“Ué, que você tá fazendo por aqui”, me perguntava Nélson Chaves dos Santos nas nossos raros encontros –já se iam longe os tempos em que tínhamos militado os dois no extinto MR-8, produzindo o "Hora do Povo" e usando o jornal para infernizar a vida da ditadura militar.


Com a redemocratização, eu segui meu caminho, ele continuou firme e forte no partido.

Conheci Nélson muito antes de saber quem era ele. Nosso encontro na vida foi a prova de um filosófico ditado que me acompanha desde os tempos de ginásio, ensinado pelo professor de português: “Se não me tivesses encontrado, não me estarias procurando”.

Nélson Chaves entrou na minha vida pelo jornal. Em 1979, eu era redator na rádio Continental, escrevia textos para o jornal “1120 é notícia” (o número se referia à posição da emissora no dial) e tinha criado o boletim “Brasil-il-il”, que acompanhava o andamento do projeto de anistia.

Muitas das notícias que escrevia tinham Nélson como personagem, pois ele havia sido preso em março, numa evidente contradição aos rumos de redemocratização que o Brasil tomava.

Não era a primeira prisão daquele magricelo irrequieto, militante das causas do povo desde os 14 anos, apesar de ter nascido em berço esplêndido, filho de fazendeiro.

Logo depois do Golpe de 1964, com 19 anos, foi processado por causa de seu trabalho na organização de sindicatos rurais e grupos de camponeses.

Não deu em nada. Seguiu buscando organização com quem trabalhar. Ligou-se à Polop, em busca de ação, mas saiu frustrado, como disse em entrevista a Eleonora de Lucena:

“Entrei em 65 e fiquei seis meses. Fui expulso. Descobri que era um bando de charlatões; falavam em luta armada, mas não faziam porra nenhuma. O meu negócio era ir para o cacete. Já vim do interior com essa ideia. Do meu grupo do interior, éramos 20, 17 foram para a luta armada.”

Ajudou a construir a VPR do capitão Carlos Lamarca, embarcou em muitas ações, foi preso, torturado quase até a morte –salvou-se porque saiu com o grupo de presos políticos trocados, em 1971, pelo embaixador suíço.

Rodou alguns anos no exterior, mas não aguentou ficar longe do Brasil. Apesar dos tempos bicudos, voltou bem antes da abertura democrática e se somou ao Movimento Revolucionário 8 de Outubro.

No mesmo ano em que foi personagem de meu programete de rádio tornou-se também uma espécie de padrinho espiritual de meu casamento.

Libertado na anistia, imediatamente se somou à luta contra a ditadura e passou a trabalhar na ampliação do MR8 –era um dos que fazia contato para atrair a Organização Comunista do Sul, onde eu militava.

Adora jogar conversa fora, se meter na vida dos outros, tomar umas pingas. Certa feita, estava fazendo tudo isso depois de algum encontro clandestino entre 8 e OCS, e calhou de eu ser o parceiro de bate-papo.

Quando soube que eu estava de casa montada com minha parceira, perguntou logo para quando era o casório. Instituição falida, lhe disse eu, ao que ele me deu um sermão em regra, desmontando argumentos e apontando o caminho da concórdia com a família da companheira.

Chegando em casa, mal abri a porta e fui logo dando a notícia: “Eleonora, vamos nos casar!” Estamos aqui até hoje, com papel passado, comunhão de bens e filhas batizadas.

Nélson morreu menino, com 68 anos, em 2014. Sempre que, como hoje, passo naquele bar no nascedouro da avenida Paulista, lembro-me dele com carinho e sinto orgulho de ter tido como amigo um herói brasileiro.

Reconfortado pelas lembranças, desci a Vergueiro rumo à praça da Sé; numa esquina, encontro pichação bem linda, poesia concreta pintada nos muros paulistanos.



Reviver verde rever verdade ou qualquer outra combinação, tudo é permitido pelas sílabas que servem como blocos de armar edifícios –os tijolinhos que foram por décadas alegria das crianças construtoras.

Vista por trás, a praça da Sé é em primeiro lugar a catedral. Que, vista por trás, de quem sobe da Liberdade para a praça João Mendes, em primeiro lugar é torre, bico fino no alto do prédio monumental. Por dentro, a igreja é serena, sisuda; por fora, é generosa, amazônica.



Rodei o contorno inteiro da praça, abracei a catedral com minhas passadas, lembrei a multidão que tomava a praça na noite anterior, me lembrei das outras multidões.

Muitas delas, multidões, foram replicadas na minha terra. No Rio Grande do Sul, o Movimento Contra a Carestia teve minha mãe como militante ativa, motivadora de lutas.

Dona Cecília Reckziegel de Lucena (1930-2014) disse presente, aliás, em tudo quanto foi luta popular que lhe passou pela frente, foi motor e coração na campanha da anistia, andava pelas favelas e, do mesmo jeito amorável, encontrava alguns dos campeões da liberdade, como o senador Teotônio Vilela.

“Ela estava entregando as flores como uma homenagem nossa, do 2º Zonal do PMDB, ao Teotonio”, conta Jussara Cony, que então era vereadora e dirigente daquele zonal.

“Numa articulação política ampla, eu me tornei presidenta e o Caio Lustosa vice, com apoio do Andre Foster, do Lauro Hagemann, da Gladis Mantelli, do MR8 e dos comunistas como eu. Cecília fazia parte da direção que elegemos, e trouxemos o velho, amado e guerreiro Teotônio para uma grande atividade, parte da Caravana da Democracia para impulsionar a luta redemocratização.”









Jussara, que mais tarde se elegeu deputada estadual, lembra das atividades de Cecília. Ao ver a foto, escreveu mensagem para mim:

“Tua mãe era uma das principais militantes na luta comunitária, das mulheres e na luta política maior. Tua irmã Teresa também. Tua mãe conseguia unificar, ampliar, numa dedicação cotidiana. A gente militava tri bem junto. Lembro de que nos momentos de embates, a gente conversava muito pra encaminhar da melhor forma. Me ensinou muito!”

O encontro de Cecilinha com Teotônio foi uma das últimas jornadas da andança nacional do Menestrel das Alagoas, que morreu meses depois, no final de 1983.

Latifundiário, fundador da UDN nas Alagoas –o mesmo estado de Manoel Fiel Filho—e apoiador do Golpe de 64, Teotônio Vilela aos poucos encontrou o caminho do bem. A partir de 1974, tornou-se ativista do processo de abertura democrática; depois, da redemocratização e da anistia.

O Menestrel das Alagoas foi figura empolgante em palanques montados na Sé, que também tiveram as presenças gloriosas, enormes, retumbantes de carinho de Therezinha Zerbini e Margarida Genevois.


A catedral só fez humana, porém, pela mão e pela palavra de Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo de 1970 a 1998. 

“As coisas no Brasil teriam sido muito piores se não fosse dom Paulo, porque ele era um homem de coragem, enfrentava os militares, não tinha medo e apoiava aqueles que se comprometiam com a paz e com a justiça”, me diz Margarida, que trabalhou durante 25 anos com o cardeal, pioneira e liderança da Comissão de Justiça e Paz.

Dom Paulo ia aos presídios, acolhia militantes clandestinos, soltava o verbo quando era preciso, conclamava ao silencia quando era prudente, mas não deixava nunca vaga a trincheira de luta. 

“Ele era como uma estrela, mostrando o 
caminho para todos que se aproximavam dele”, resume Genevois, ela também uma luminosa estrela.

Pensando nelas todas, Margarida, Cecília, Therezinha, lembrando dom Paulo e a multidão que toma a Sé nos dias de hoje para combater o novo golpe que se arma contra o povo, segui minha jornada.

Parei no largo São Francisco, em frente às arcadas da Faculdade de Direito.



Ali, em oito de agosto de 1977, Goffredo Telles Júnior leu a “Carta aos Brasileiros”, documento assinado por emérito juristas que pôs a nu a ilegalidade dos poderes ditatoriais.

“Queremos dar o testemunho, para as gerações futuras, de que os ideais do Estado de Direito, apesar da conjuntura da hora presente, vivem e atuam, hoje como ontem, no espírito vigilante da nacionalidade”, diz o texto.

Afirma também: “Como cultores da Ciência do Direito e do Estado, nós nos recusamos, de uma vez por todas, a aceitar a falsificação dos conceitos. Para nós a Ditadura se chama Ditadura, e a Democracia se chama Democracia”.

E conclui: “O que queremos é ordem. Somos contrários a qualquer tipo de subversão. Mas a ordem que queremos é a ordem do Estado de Direito. A consciência jurídica do Brasil quer uma cousa só: o Estado de Direito, já”.

Lamentável notar que alguns que assinaram a Carta estão hoje do lado da ilegalidade e participam de manobras que tentam golpear governo eleito pelo povo, conspiram contra o Estado de Direito. São as voltas que no mundo dá.

Um punhadinho de vira-casaca não atrapalha minha jornada, que logo é iluminada pela força de jovens militantes entrincheirados em barracas na praça do Patriarca. Fazem ali vigília cívica, rodeados por faixas e cartazes que trazem consignas como “Não vai ter golpe, vai ter luta” e “A justiça não pode ter um lado”, sem falar na placa onipresente que diz “Fora Gllobo!”.



É apenas uma amostra da disposição de luta que se espraia pelos sindicatos, entidades estudantis, movimentos populares. Enche de alegria o peito de um brasileiro corredor.

Com mais de doze quilômetros no lombo, sigo direto e reto para meu destino final da jornada de hoje, o prédio da Cúria Metropolitana, no elegante bairro de Higienópolis.

É lá que estão guardados os arquivos da igreja, ficam lá os registros que constroem a memória. Que também é vida e é corrida.


CORRIDA POR MANOEL – 39ª etapa

Destino: praça da Sé, percurso de 13,91 km, percorrido em 2h09

Distância percorrida até agora: 416,11 km