28.7.17

Professora Leda Paulani explica propostas econômicas do Projeto Brasil Nação


Depois de duas semanas, finalmente fui autorizado pelos especialistas a dar alguns trotinhos pela cidade. No dia 8 de julho, sofri agudas e doloridas pontadas no joelho esquerdo, que continuaram  por horas a fio e fizeram com que eu buscasse ajuda no pronto socorro.
Não houve, como eu temia, fratura por estresse –seria a quarta na minha curta vida de corredor--, mas as cartilagens do joelho estão bem desbagaçadas.
Fiquei alguns dias de molho e, depois, passei a fazer caminhadas diárias para não perder a contagem de quilômetros; afinal, pretendo percorrer, até o final deste ano de meu sexagenário, distância equivalente à de sessenta maratonas. Não posso deixar muitos dias passarem em branco porque daí a coisa desanda e pode se tornar muito difícil alcançar a meta.
Na segunda-feira última, dei minha primeira corrida nesta etapa de recuperação. Foi um trote aos soluços, às golfadas, digamos assim: pequeníssimos duzentos metros de trote intercalados com oitocentos metros de caminhada, termina e repete, termina e repete até completar seis míseros blocos.
Melhor do que nada. Mais que isso: alvissareiro, quiçá entusiasmante. Os bloquinhos de duzentos metros me fizeram acreditar que posso correr, que não esqueci como fazer uma corrida, ainda que uma corridinha.
Agora é descansar, recuperar e voltar à luta; essas palavras de ordem são minha versão particular da consigna do MST “Ocupar, resistir, produzir”. Em que o “produzir” é o correr.
Resistir é manter as caminhadas enquanto não dá para correr.
E foi caminhando que cheguei até a Cidade Universitária, nesta última quarta-feira, para conversar com uma pessoa sensacional, a economista Leda Paulani.

Percurso até a Faculdade de Economia da USP
Eu já a conhecia de nome e pelas suas obras, textos analíticos rigorosos e compreensíveis até mesmo para mim. Há intelectuais que fazem do hermetismo uma barreira, uma paredão de proteção de sua torre de marfim; Paulani é o contrário: se joga para a sociedade, vai às ruas falar com quem quiser lhe ouvir.
Foi na rua, por sinal que a vi ao vivo e em cores pela primeira vez, em uma aula pública na avenida Paulista. Fiquei impressionado com seu jeito simples de transmitir ideias e conceitos complexos, a clareza de raciocínio.
Mais recentemente, tive a oportunidade de conhecê-la um pouco melhor porque nós dois participamos do grupo que discutiu a formulação do manifesto do Projeto Brasil Nação, uma proposta produzida por “um grupo de brasileiros preocupados com a crescente divisão da sociedade brasileira”, como diz o professor Luiz Carlos Bresse-Pereira, que atuou como patrono dos trabalhos.
Ao lado de Bresser e de Celso Amorim, ex-ministro dos governos Lula e Dilma Celso, Paulani teve papel importante no aprimoramento da proposta econômica que é o coração do manifesto.
Esse foi o tema de nossa conversa na manhã ensolarada de quarta-feira, no seu espartano escritório na área dos professores da FEA-USP (Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo). O resultado está neste vídeo:



O texto integral do MANIFESTO DO PROJETO BRASIL NAÇÃO é este:

"O Brasil vive uma crise sem precedentes. O desemprego atinge níveis assustadores. Endividadas, empresas cortam investimentos e vagas. A indústria definha, esmagada pelos juros reais mais altos do mundo e pelo câmbio sobreapreciado. Patrimônios construídos ao longo de décadas são desnacionalizados.
Mudanças nas regras de conteúdo local atingem a produção nacional. A indústria naval, que havia renascido, decai. Na infraestrutura e na construção civil, o quadro é de recuo. Ciência, cultura, educação e tecnologia sofrem cortes.
Programas e direitos sociais estão ameaçados. Na saúde e na Previdência, os mais pobres, os mais velhos, os mais vulneráveis são alvo de abandono.
A desigualdade volta a aumentar, após um período de ascensão dos mais pobres. A sociedade se divide e se radicaliza, abrindo espaço para o ódio e o preconceito.
No conjunto, são as ideias de nação e da solidariedade nacional que estão em jogo. Todo esse retrocesso tem apoio de uma coalizão de classes financeiro-rentista que estimula o país a incorrer em deficits em conta corrente, facilitando assim, de um lado, a apreciação cambial de longo prazo e a perda de competitividade de nossas empresas, e, de outro, a ocupação de nosso mercado interno pelas multinacionais, os financiamentos externos e o comércio desigual.
Esse ataque foi desfechado num momento em que o Brasil se projetava como nação, se unindo a países fora da órbita exclusiva de Washington. Buscava alianças com países em desenvolvimento e com seus vizinhos do continente, realizando uma política externa de autonomia e cooperação. O país construía projetos com autonomia no campo do petróleo, da defesa, das relações internacionais, realizava políticas de ascensão social, reduzia desigualdades, em que pesem os efeitos danosos da manutenção dos juros altos e do câmbio apreciado.
Para o governo, a causa da grande recessão atual é a irresponsabilidade fiscal; para nós, o que ocorre é uma armadilha de juros altos e de câmbio apreciado que inviabiliza o investimento privado. A política macroeconômica que o governo impõe à nação apenas agravou a recessão. Quanto aos juros altíssimos, alega que são “naturais”, decorrendo dos déficits fiscais, quando, na verdade, permaneceram muito altos mesmo no período em que o país atingiu suas metas de superávit primário (1999-2012).
Buscando reduzir o Estado a qualquer custo, o governo corta gastos e investimentos públicos, esvazia o BNDES, esquarteja a Petrobrás, desnacionaliza serviços públicos, oferece grandes obras públicas apenas a empresas estrangeiras, abandona a política de conteúdo nacional, enfraquece a indústria nacional e os programas de defesa do país, e liberaliza a venda de terras a estrangeiros, inclusive em áreas sensíveis ao interesse nacional.
Privatizar e desnacionalizar monopólios serve apenas para aumentar os ganhos de rentistas nacionais e estrangeiros e endividar o país.
O governo antinacional e antipopular conta com o fim da recessão para se declarar vitorioso. A recuperação econômica virá em algum momento, mas não significará a retomada do desenvolvimento, com ascensão das famílias e avanço das empresas. Ao contrário, o desmonte do país só levará à dependência colonial e ao empobrecimento dos cidadãos, minando qualquer projeto de desenvolvimento.
Para voltar a crescer de forma consistente, com inclusão e independência, temos que nos unir, reconstruir nossa nação e definir um projeto nacional. Um projeto que esteja baseado nas nossas necessidades, potencialidades e no que queremos ser no futuro. Um projeto que seja fruto de um amplo debate.
É isto que propomos neste manifesto: o resgate do Brasil, a construção nacional.



Temos todas as condições para isso. Temos milhões de cidadãos criativos, que compõem uma sociedade rica e diversificada. Temos música, poesia, ciência, cinema, literatura, arte, esporte – vitais para a construção de nossa identidade.
Temos riquezas naturais, um parque produtivo amplo e sofisticado, dimensão continental, a maior biodiversidade do mundo. Temos posição e peso estratégicos no planeta. Temos histórico de cooperação multilateral, em defesa da autodeterminação dos povos e da não intervenção.
O governo reacionário e carente de legitimidade não tem um projeto para o Brasil. Nem pode tê-lo, porque a ideia de construção nacional é inexistente no liberalismo econômico e na financeirização planetária.
Cabe a nós repensarmos o Brasil para projetar o seu futuro – hoje bloqueado, fadado à extinção do empresariado privado industrial e à miséria dos cidadãos.
Nossos pilares são: autonomia nacional, democracia, liberdade individual, desenvolvimento econômico, diminuição da desigualdade, segurança e proteção do ambiente – os pilares de um regime desenvolvimentista e social.
Para termos autonomia nacional, precisamos de uma política externa independente, que valorize um maior entendimento entre os países em desenvolvimento e um mundo multipolar.
Para termos democracia, precisamos recuperar a credibilidade e a transparência dos poderes da República. Precisamos garantir diversidade e pluralidade nos meios de comunicação. Precisamos reduzir o custo das campanhas eleitorais, e diminuir a influência do poder econômico no processo político, para evitar que as instituições sejam cooptadas pelos interesses dos mais ricos.
Para termos Justiça precisamos de um Poder Judiciário que atue nos limites da Constituição e seja eficaz no exercício de seu papel. Para termos segurança, precisamos de uma polícia capacitada, agindo de acordo com os direitos humanos.
Para termos liberdade, precisamos que cada cidadão se julgue responsável pelo interesse público.
Precisamos estimular a cultura, dimensão fundamental para o desenvolvimento humano pleno, protegendo e incentivando as manifestações que incorporem a diversidade dos brasileiros.
Para termos desenvolvimento econômico, precisamos de investimentos públicos (financiados por poupança pública) e principalmente investimentos privados. E para os termos precisamos de uma política fiscal, cambial socialmente responsáveis; precisamos juros baixos e taxa de câmbio competitiva; e precisamos ciência e tecnologia.
Para termos diminuição da desigualdade, precisamos de impostos progressivos e de um Estado de bem-estar social amplo, que garanta de forma universal educação, saúde e renda básica. E precisamos garantir às mulheres, aos negros, aos indígenas e aos LGBT direitos iguais aos dos homens brancos e ricos.
Para termos proteção do ambiente, precisamos cuidar de nossas florestas, economizar energia, desenvolver fontes renováveis e participar do esforço para evitar o aquecimento global.
Neste manifesto inaugural estamos nos limitando a definir as políticas públicas de caráter econômico. Apresentamos, assim, os cinco pontos econômicos do Projeto Brasil Nação.
1 Regra fiscal que permita a atuação contracíclica do gasto público e assegure prioridade à educação e à saúde
2 Taxa básica de juros em nível mais baixo, compatível com o praticado por economias de estatura e grau de desenvolvimento semelhantes aos do Brasil
3 Superávit na conta corrente do balanço de pagamentos que é necessário para que a taxa de câmbio seja competitiva
4 Retomada do investimento público em nível capaz de estimular a economia e garantir investimento rentável para empresários e salários que reflitam uma política de redução da desigualdade
5 Reforma tributária que torne os impostos progressivos
Esses cinco pontos são metas intermediárias, são políticas que levam ao desenvolvimento econômico com estabilidade de preços, estabilidade financeira e diminuição da desigualdade. São políticas que atendem a todas as classes exceto a dos rentistas.
A missão do Projeto Brasil Nação é pensar o Brasil, é ajudar a refundar a nação brasileira, é unir os brasileiros em torno das ideias de nação e desenvolvimento – não apenas do ponto de vista econômico, mas de forma integral: desenvolvimento político, social, cultural, ambiental; em síntese, desenvolvimento humano. Os cinco pontos econômicos do Projeto Brasil são seus instrumentos – não os únicos instrumentos, mas aqueles que mostram que há uma alternativa viável e responsável para o Brasil.
Estamos hoje, os abaixo assinados, lançando o Projeto Brasil Nação e solicitando que você também seja um dos seus subscritores e defensores."
30 de março de 2017  

Bresser-Preira discursa no ato de lançamento do manifesto  do Projeto Brasil Nação; Leda Paulani está à dir., de blusa branca


Subscritores originais
  • LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA, economista
  • ELEONORA DE LUCENA, jornalista
  • CELSO AMORIM, embaixador
  • RADUAN NASSAR, escritor
  • CHICO BUARQUE DE HOLLANDA, músico e escritor
  • MARIO BERNARDINI, engenheiro
  • FERNANDO BUENO, empresário
  • ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE, físico
  • ROBERTO SCHWARZ, crítico literário
  • PEDRO CELESTINO, engenheiro
  • FÁBIO KONDER COMPARATO, jurista
  • KLEBER MENDONÇA FILHO, cineasta
  • LAERTE, cartunista
  • JOÃO PEDRO STEDILE, ativista social
  • WAGNER MOURA, ator e cineasta
  • VAGNER FREITAS, sindicalista
  • MARGARIDA GENEVOIS, ativista de direitos humanos
  • FERNANDO HADDAD, professor universitário
  • MARCELO RUBENS PAIVA, escritor
  • MARIA VICTORIA BENEVIDES, socióloga
  • LUIZ COSTA LIMA, crítico literário
  • CIRO GOMES, político
  • LUIZ GONZAGA DE MELLO BELLUZZO, economista
  • ALFREDO BOSI, crítico e historiador
  • ECLEA BOSI, psicóloga
  • LUIS FERNANDO VERÍSSIMO, escritor
  • MANUELA CARNEIRO DA CUNHA , antropóloga
  • FERNANDO MORAIS, jornalista
  • LEDA PAULANI, economista
  • ANDRÉ SINGER, cientista político
  • PAUL SINGER, economista
  • LUIZ CARLOS BARRETO, cineasta
  • PAULO SÉRGIO PINHEIRO, sociólogo
  • MARIA RITA KEHL, psicanalista
  • ERIC NEPOMUCENO, jornalista
  • CARINA VITRAL, estudante
  • LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO, historiador
  • ROBERTO SATURNINO BRAGA, engenheiro e político
  • ROBERTO AMARAL, cientista político
  • EUGENIO ARAGÃO, subprocurador geral da república
  • ERMÍNIA MARICATO, arquiteta
  • TATA AMARAL, cineasta
  • MARCIA TIBURI, filósofa
  • NELSON BRASIL, engenheiro
  • GILBERTO BERCOVICI, advogado
  • OTAVIO VELHO, antropólogo
  • GUILHERME ESTRELLA, geólogo
  • JOSÉ GOMES TEMPORÃO, médico
  • LUIZ ALBERTO DE VIANNA MONIZ BANDEIRA, historiador
  • FREI BETTO, religioso e escritor
  • HÉLGIO TRINDADE, cientista político
  • RENATO JANINE RIBEIRO, filósofo
  • ENNIO CANDOTTI, físico
  • SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES, embaixador
  • FRANKLIN MARTINS, jornalista
  • MARCELO LAVENERE, advogado
  • BETE MENDES, atriz
  • JOSÉ LUIZ DEL ROIO, ativista político
  • VERA BRESSER-PEREIRA, psicanalista
  • AQUILES RIQUE REIS, músico
  • RODOLFO LUCENA, jornalista
  • MARIA IZABEL AZEVEDO NORONHA, professora
  • JOSÉ MARCIO REGO, economista
  • OLÍMPIO ALVES DOS SANTOS, engenheiro
  • GABRIEL COHN, sociólogo
  • AMÉLIA COHN, socióloga
  • ALTAMIRO BORGES, jornalista
  • REGINALDO MATTAR NASSER, sociólogo
  • JOSÉ JOFFILY, cineasta
  • ISABEL LUSTOSA, historiadora
  • ODAIR DIAS GONÇALVES, físico
  • PEDRO DUTRA FONSECA, economista
  • ALEXANDRE PADILHA, médico
  • RICARDO CARNEIRO, economista
  • JOSÉ VIEGAS FILHO, diplomata
  • PAULO HENRIQUE AMORIM, jornalista
  • PEDRO SERRANO, advogado
  • MINO CARTA, jornalista
  • LUIZ FERNANDO DE PAULA, economista
  • IRAN DO ESPÍRITO SANTOS, artista
  • HILDEGARD ANGEL, jornalista
  • PEDRO PAULO ZALUTH BASTOS, economista
  • SEBASTIÃO VELASCO E CRUZ, cientista político
  • MARCIO POCHMANN, economista
  • LUÍS AUGUSTO FISCHER, professor de literatura
  • MARIA AUXILIADORA ARANTES, psicanalista
  • ELEUTÉRIO PRADO, economista
  • HÉLIO CAMPOS MELLO, jornalista
  • ENY MOREIRA, advogada
  • NELSON MARCONI, economista
  • SÉRGIO MAMBERTI, ator
  • JOSÉ CARLOS GUEDES, psicanalista
  • JOÃO SICSÚ, economista
  • RAFAEL VALIM, advogado
  • MARCOS GALLON, curador
  • MARIA RITA LOUREIRO, socióloga
  • ANTÔNIO CORRÊA DE LACERDA, economista
  • LADISLAU DOWBOR, economista
  • CLEMENTE LÚCIO, economista
  • ARTHUR CHIORO, médico
  • TELMA MARIA GONÇALVES MENICUCCI, cientista política
  • NEY MARINHO, psicanalista
  • FELIPE LOUREIRO, historiador
  • EUGÊNIA AUGUSTA GONZAGA, procuradora
  • CARLOS GADELHA, economista
  • PEDRO GOMES, psicanalista
  • CLAUDIO ACCURSO, economista
  • EDUARDO GUIMARÃES, jornalista
  • REINALDO GUIMARÃES, médico
  • CÍCERO ARAÚJO, cientista político
  • VICENTE AMORIM, cineasta
  • EMIR SADER, sociólogo
  • SÉRGIO MENDONÇA, economista
  • FERNANDA MARINHO, psicanalista
  • FÁBIO CYPRIANO, jornalista
  • VALESKA MARTINS, advogada
  • LAURA DA VEIGA, socióloga
  • JOÃO SETTE WHITAKER FERREIRA, urbanista
  • FRANCISCO CARLOS TEIXEIRA DA SILVA, historiador
  • CRISTIANO ZANIN MARTINS, advogado
  • SÉRGIO BARBOSA DE ALMEIDA, engenheiro
  • FABIANO SANTOS, cientista político
  • NABIL ARAÚJO, professor de letras
  • MARIA NILZA CAMPOS, psicanalista
  • LEOPOLDO NOSEK, psicanalista
  • WILSON AMENDOEIRA, psicanalista
  • NILCE ARAVECCHIA BOTAS, arquiteta
  • PAULO TIMM, economista
  • MARIA DA GRAÇA PINTO BULHÕES, socióloga
  • OLÍMPIO CRUZ NETO, jornalista
  • RENATO RABELO, político
  • MAURÍCIO REINERT DO NASCIMENTO, administrador
  • ADHEMAR BAHADIAN, embaixador
  • ANGELO DEL VECCHIO, sociólogo
  • MARIA THERESA DA COSTA BARROS, psicóloga
  • GENTIL CORAZZA, economista
  • LUCIANA SANTOS, deputada
  • RICARDO AMARAL, jornalista
  • BENEDITO TADEU CÉSAR, economista
  • AÍRTON DOS SANTOS, economista
  • JANDIRA FEGHALI, deputada
  • LAURINDO LEAL FILHO, jornalista
  • ALEXANDRE ABDAL, sociólogo
  • LEONARDO FRANCISCHELLI, psicanalista
  • MARIO CANIVELLO, jornalista
  • MARIO RUY ZACOUTEGUY, economista
  • ANNE GUIMARÃES, cineasta
  • ROSÂNGELA RENNÓ, artista
  • EDUARDO FAGNANI, economista
  • REBECA SCHWARTZ, psicóloga
  • MOACIR DOS ANJOS, curador
  • REGINA GLORIA NUNES DE ANDRADE, psicóloga 
  • RODRIGO VIANNA, jornalista
  • LUCAS JOSÉ DIB, cientista político
  • WILLIAM ANTONIO BORGES, administrador
  • PAULO NOGUEIRA, jornalista
  • OSWALDO DORETO CAMPANARI, médico 
  • CARMEM DA COSTA BARROS, advogada
  • EDUARDO PLASTINO, consultor
  • ANA LILA LEJARRAGA, psicóloga
  • CASSIO SILVA MOREIRA, economista
  • MARIZE MUNIZ, jornalista
  • VALTON MIRANDA, psicanalista
  • MIGUEL DO ROSÁRIO, jornalista
  • HUMBERTO BARRIONUEVO FABRETTI, advogado
  • FABIAN DOMINGUES, economista
  • KIKO NOGUEIRA, jornalista
  • FANIA IZHAKI, psicóloga
  • CARLOS HENRIQUE HORN, economista
  • BETO ALMEIDA, jornalista
  • JOSÉ FRANCISCO SIQUEIRA NETO, advogado
  • PAULO SALVADOR, jornalista
  • WALTER NIQUE, economista
  • CLAUDIA GARCIA, psicóloga
  • LUIZ CARLOS AZENHA, jornalista
  • RICARDO DATHEIN, economista
  • ETZEL RITTER VON STOCKERT, matemático
  • ALBERTO PASSOS GUIMARÃES FILHO, físico
  • BERNARDO KUCINSKI, jornalista e escritor
  • DOM PEDRO CASALDÁLIGA, religioso
  • ENIO SQUEFF, artista plástico
  • FERNANDO CARDIM DE CARVALHO, economista
  • GABRIEL PRIOLLI, jornalista
  • GILBERTO MARINGONI, professor de relações internacionais
  • HAROLDO CERAVOLO SEREZA, jornalista e editor
  • HAROLDO LIMA, político e engenheiro
  • HAROLDO SABOIA, constituinte de 88, economista
  • AFRÂNIO GARCIA, cientista social
  • IGOR FELIPPE DOS SANTOS, jornalista
  • JOSÉ EDUARDO CASSIOLATO, economista
  • JOSÉ GERALDO COUTO, jornalista e tradutor
  • LISZT VIEIRA, advogado e professor universitário
  • LÚCIA MURAT, cineasta
  • LUIZ ANTONIO CINTRA, jornalista
  • LUIZ PINGUELLI ROSA, físico, professor universitário
  • MARCELO SEMIATZH, fisioterapeuta
  • MICHEL MISSE, sociólogo
  • ROGÉRIO SOTTILI, historiador
  • TONI VENTURI, cineasta
  • VLADIMIR SACCHETTA, jornalista 
  • ADRIANO DIOGO, político
  • MARCELO AULER, jornalista
  • MARCOS COSTA LIMA, cientista político
  • RAUL PONT, historiador
  • DANILO ARAUJO FERNANDES, economista
  • DIEGO PANTASSO, cientista político
  • ENNO DAGOBERTO LIEDKE FILHO, sociólogo
  • JOÃO CARLOS COIMBRA, biólogo
  • JORGE VARASCHIN, economista
  • RUALDO MENEGAT, geólogo
  • PATRÍCIA BERTOLIN, professora universitária
  • MARISA SOARES GRASSI, procurador aposentada
  • MARIA ZOPPIROLLI, Advogada
  • MARIA DE LOURDES ROLLEMBERG MOLLO, economista
  • LUIZ ANTONIO TIMM GRASSI, engenheiro
  • LIÉGE GOUVÊIA, juíza
  • LUIZ JACOMINI, jornalista
  • LORENA HOLZMANN, socióloga
  • LUIZ ROBERTO PECOITS TARGA, economista
  • ANTONIO CARLOS DE LACERDA, economista
  • FRANCISCO WHITAKER, ativista social
Além desses subscritores originais, fundadores –pessoas que participaram das discussões para a elaboração do texto e/ou que foram diretamente convidadas por elas--, mais de dez mil brasileiros já manifestaram seu apoio a essas ideias. Se você também quer assinar o MANIFESTO, CLIQUE AQUI.
VAMO QUE VAMO!!!


Percurso do dia 28 de julho de 2017 (150° dia de corrida/caminhada no ano)
8,90 quilômetros percorridos em 1h31

Percurso acumulado no projeto 60M60A
1.600, 81 quilômetros percorridos em 282h38min49






18.7.17

Inferno, areão ardente e paixão na mais antiga corrida do mundo

Só em Paris percebi quão terrível e aterrorizante pareceu o Inferno para o poeta Dante Alighieri. As paredes de uma estação de trem século dezenove transformada em sofisticado museu exibem a imagem do delírio dantesco.
Data de 1850 a pintura de William Bouguereau que retrata a passagem de Dante pelo Reino das Trevas.
Assustado, talvez enojado, o poeta italiano (de barrete vermelho na imagem) busca proteção e arrimo no seu guia, Virgílio, enquanto arrisca olhar para a terrível cena, que ele mesmo descreve com propriedade em sua “Divina Comédia”, dizendo nunca na história da humanidade, nem Tebas nem em Tróia,  terem sido vistas...

“...fúrias em alguém tão cruas

contra animais e mesmo gente humana,

como em duas sombras vi, pálidas, nuas,

perseguindo-se, com o estardalhaço

de porcos soltos das pocilgas suas.

Uma alcançou Capocchio, e no cachaço

agarrou-o e, em seguida, assim o arrastando,

fez-lhe o ventre coçar no solo crasso.”

Ao fundo, monstros de todos os coturnos, diabinhos voando para lá e cá, almas penadas de estelionatários e falsários, rufiões, aduladores, hipócritas, ladrões e aduladores.
Era o oitavo círculo do Inferno; antes dele, no sétimo, onde são punidos os que pecaram por violência contra si mesmos, contra os outros e contra Deus, Dante vislumbrou ao longe coisa terrena que nos interessa a todos: uma corrida de rua.
A tal corrida já era velha de quase cem anos quando entrou para a história nos versos da “Divina Comédia”. Por artes da burocracia e do engenho italiano, seguiu por séculos afora até os nossos dias. No último quatro de junho, tive o prazer e a honra de participar, nos arrabaldes de Verona, da mais antiga corrida do mundo ainda em realização. É essa a história que conto a seguir.


A mais antiga 

corrida do mundo


Corrida é coisa dos infernos.

Afirmo sem pejo, não por motivo de fé religiosa, crença esotérica ou convicção profunda. Tenho provas, documentos, depoimentos registrados datados de quase mil anos. Está tudo por escrito.
As testemunhas são nada menos que Dante Alighieri, florentino até hoje considerado o poeta-mor em língua italiana, e o não menos artista das letras Virgílio, que nos deu o épico “Eneida”, a poesia completa da história da fundação de Roma.
Se já não bastassem declarações de gente assim gabaritada, há ainda a palavra de um condenado à danação eterna, o filósofo e líder político de Florença Brunetto Latini, que foi tutor de Dante, espécie de pai adotivo do autor de “A Divina Comédia”.
Para que não restem dúvidas sobre a veracidade dos fatos, eis a história como Dante a registrou na sua obra máxima.
Quando já passava dos trinta anos, por volta do que era naquela época a meia-idade, Dante estava meio perdido na vida, buscando o sentido da própria existência e as razões do mundo. Enfrentava turbilhão de emoções e sentimentos, sentia-se oprimido por dúvidas cruéis: estava em uma “selva selvagem” –expressão que usou para descrever as sensações que vivia então.
Pois foi aí que lhe apareceu o poeta Virgílio, assumindo o posto de guardião e guia de Dante no outro mundo, pelas profundezas do Inferno e o infinito de expectativas do Purgatório –nos caminhos do Céu, Dante teria outros orientadores.
O relato da viagem monumental se transformou na obra máxima de Dante –“A Divina Comédia”. Nela ficou o registro: na visita ao Inferno, o poeta viu ao longe corredores participando de uma famosa prova dos tempos medievais.
Para ser mais preciso, a visão se deu no sétimo círculo do Inferno, andar destinado à punição dos que em vida pecaram por violência e bestialidade --assaltantes, assassinos, suicidas, sodomitas, tiranos e blasfemos ali pagam suas penas caminhando, deitando ou ficando eternamente sentados em areão ardente, sob chuva de chispas de fogo.

Conduzido por Virgílio, Dante vê o sofrimento das almas danadas e, em meio àquela confusão de gritos de dor e turvas imagens, reconhece enfim alguém que lhe foi próximo: ninguém menos que Brunetto, seu antigo mestre entre os viventes.
Os dois batem um papo, lembram antigos amigos e inimigos na vida florentina, falam de traições e perfídias e, quando a conversa já se encaminha para o final, Brunetto olha para um lado e vê ao longe outra poeira que se levanta no areão ardente.
O registro está no final do décimo quinto canto, a partir da linha 115, quando o mestre de Dante vai se despedindo (a tradução para o português é de Italo Eugenio Mauro na ótima versão bilíngue publicada pela editora 34):

“Mais eu diria, mas o andar e o sermão

não podem se alongar, porque o começo

vejo de outra poeira no areão:

gente vem lá, à qual não tenho acesso.

Que meu `Tesouro` para mim tuteles,

no qual ainda eu vivo, e mais não peço.”

Ao que Dante assume a narrativa, completando o relato da visão que ambos tiveram:

“Então voltou-se, e um pareceu daqueles

que correm em Verona o pano verde

pela campanha, e pareceu ser, deles,

o tal que vence, e não o que perde.”

Dante e o trecho da "Divina Comédia" que cita a corrida do pano verde


Historiadores do mundo das corridas e especialistas na interpretação de “A Divina Comédia” não têm dúvidas de que o poeta ali se referia a uma competição já centenária na época em que Dante produziu sua obra.
É a “Palio del Drappo Verde” (Corrida do Pano Verde), afirma sem medo de errar o jornalista, editor e escritor florentino Indro Neri, apaixonado por corridas e por comida.
Ele é autor de um guia sobre a maratona de Nova York –com foco, por certo, na presença e participação de corredores italianos—e de um compêndio de receitas de substanciosos pratos tendo tripas como base, a chamada “peça de resistência”.
Esses volumes são encontráveis em livrarias virtuais pela internet afora; mais interessante para o corredor, porém, é um livreto editado pelo próprio autor, simples brochura, pouco mais do que um panfleto disponível apenas para poucos e só em italiano: “Dante Era Um Podista”, publicado originalmente em 1995 como suplemento da revista mensal italiuana “Podismo”.
Com bom humor, trata de provar que o poeta era um corredor ou, pelo menos, entusiasta das corridas a pé. Revisita a monumental “Divina Comédia” para encontrar referências outras ao pedestrianismo. Da garantida, a “Drapo Verde”, registra uma história completa, baseada em pesquisas em documentos catalogados em museus e arquivos históricos italianos.
Desde a Antiguidade as corridas a pé fazem parte de celebrações mundanas, pagãs e religiosas. Foi uma corrida de cerca de cem metros, por sinal, a única competição realizada na primeira Olimpíada na Antiguidade, no ano de 776 antes de Cristo, na cidade grega de Olímpia.
Que gire a roda do tempo!
Edifício multimilenar, a Arena de Verona está no coração do centro histórico da cidade

Quase dois mil anos depois, no que hoje é o norte da Itália, o feudalismo começa a sofrer fissuras. Barões e duques, senhores da guerra, perdem forças para a burguesia nascente; cidades-estados emergem, e o comércio passa a ser gerador de fortunas e poder político.
Na região do Veneto, a segunda metade do século 12 é marcada por conflitos, os poderes locais se aliando para enfrentar o imperador de Roma, cidades buscando se manter independentes. Depois de armistício assinado em 1176, o povo de Verona sonha em chegar ao novo século em paz, registra Alethea Weil em “The Story of Verona”, obra publicada em Londres em 1907.
Sonho vão, por certo. Passam as décadas, e as intrigas entre os poderosos se transformam em conflito armado a partir de meados de 1206: de um lado ficam o conde de San Bonifazio e a família Montecchi, que tinham sido aliados do poder romano, integrando a turma dos gibelinos; de outra, a orgulhosa Cidade de Verona, dominada pelo “partido” dos guelfos.
Comandados por Azzo VI, marquês de Ferrara, os independentistas vencem e consolidam a paz em 1207. Para celebrar o primeiro aniversário da vitória, o governante determinou que fosse realizada uma corrida a pé pelas ruas de Verona. O vencedor ganhava um pano verde de seda, prêmio de grande valia na época e origem do nome da corrida.
Ponte fortificada é herança da Verona medieval

Realizada no primeiro domingo da Quaresma, a prova passou a ser parte da vida da cidade, e sua realização virou obrigatória, registrada em lei de papel passado pelos poderes locais. Giraram os séculos, Verona sofreu várias ocupações, mudaram os mandantes e as leis, mas o Palio seguiu firme e forte, com pequenas modificações de regras e percurso.
Além dos regulamentos, leis e estatutos falando da corrida e determinando suas regras e as modificações delas ao longo dos séculos, registros mais mundanos servem para atestar a perenidade do Palio Del Drappo Verde.
Quem nisso ajuda os historiadores é um sargento, Jacometo de Patulia, que em 1710 visitava Verona ou lá morava.
Indícios apontam que seria um turista, pois fez questão de deixar a marca de sua presença, gravando com seu canivete uma inscrição nas paredes do palácio Carlotti, no início do Corso Cavour, no que hoje se chama de centro histórico de Verona.
Apesar de pouco legível, com algum esforço dá para entender as palavras encravadas abaixo da quarta janela do térreo do palácio: “Em 2 de março de 1710 –o dia do pálio—o sargento Jacometo de Patulia esteve neste lugar.
A competição só foi suspensa no final do século 18, em 1797, quando o  Império Veneziano –do qual Verona fazia parte—foi conquistado por Napoleão. Os prepostos do grande guerreiro francês acharam por bem acabar com as festas religiosas do território ocupado, e a coitada da corrida entrou de cambulhão, passando ao ostracismo e ao esquecimento.
Esquecida ficou por mais duzentos anos, até que, no início deste século, apaixonados por corridas redescobriram a obra de Dante. Andy Milroy, historiador britânico do mundo das ultramaratonas e entusiasta de história medieval, mergulhou na obra de pesquisadores italianos e motivou um grupo de corredores italianos a retomar o fio da meada.
Com base nas pesquisas históricas, a equipe de corridas Gruppo Sportivo Dilettantistico MOMBOCAR, já então transformada em organizadora de provas, tratou de reativar a Palio Del Drappo Verde em 2008, para o que seria o 800º aniversário da prova. Até aquela data, calculam os historiadores, a prova havia tido nada menos do que 590 edições efetivamente realizadas --a diferença se deve ao período de suspensão iniciado na tomada da região pelo Exército napoleônico.
Vai daí que, neste ano da graça de 2017, a Drappo Verde chega à sua sexcentésima edição –múltiplo perfeito de minha comemoração particular: eu chego aos sessenta anos, a corrida chega à sua edição número seiscentos. Participar do evento foi uma espécie de prêmio que me autoconcedi como comemoração da passagem da primeira metade de meu projeto de correr, ao longo deste ano, distância equivalente à de sessenta maratonas.
E assim me tornei, nos arrabaldes de Verona, o primeiro brasileiro –segundo me afirmaram os organizadores—, a participar da mais antiga corrida do mundo. Minha digníssima e amantíssima esposa, por sua vez, é a primeira brasileira ter tal subida honra. Detemos, pois, o recorde verde-amarelo na Palio Del Drappo Verde, eu na meia maratona, Eleonora na corrida de dez quilômetros.
Recordistas mundiais e interplanetários, em suas respectivas categorias, como representantes brasileiros na mais antiga corrida do mundo ainda em realização

Apesar de Indro Neri, em suas pesquisas, ter conseguido resgatar o que se supõe tenha sido o trajeto original da Drappo Verde, questões legais e o próprio desenvolvimento urbano ao longo dos séculos impediram até agora que a prova voltasse a um percurso mais semelhante ao desenho histórico.
Organizadores da prova e historiadores apaixonados por corrida sonham com o dia em que ele volte à área urbana de Verona, no centro histórico da cidade em que Shakespeare ambientou “Romeu e Julieta”, o dramalhão de amor mais romântico de que se tem notícia.
O amor está no ar até nas medalhas conquistadas pelo casal recordista
A cidade, aliás, respira a paixão dos jovens retratados pelo dramaturgo britânico. Para atrair a atenção e o dinheiro dos turistas, vale tudo: há a casa de Julieta, a tumba de Julieta, a tumba de Romeu, caminhos shakespearianos e milhões de lembrancinhas, livros, artefatos os mais diversos inspirados na paixão adolescente e proibida.
Não faltará quem jure quem é tudo verdade, pois o romance teria sido inspirado em figuras que realmente existiram, caminharam e se amaram nas ruas de Verona. Os Montecchios, por exemplo, seriam baseados na já citada linhagem Montecchi, traidores de Verona na batalha de 1207 –aquela mesma, cujo fim foi tão festejado pela cidade que passou a ser comemorada com a corrida do Pano Verde.
Corrida que, afirma o historiador britânico Wiliam Vernon, foi várias vezes presenciada por Dante durante seu exílio em Verona, onde viveu por muitos anos depois de expulso de sua Florença natal.

A cidade, por sua vez, também presta homenagem ao poeta. Há passeios turísticos pelos “Caminhos de Dante” e não faltam ruas e ruelas, bustos e estátuas do escritor que desceu aos infernos e subiu aos céus, protegido e inspirado por sua amantíssima Beatriz.
Hoje a prova é realizada nos surbúbios de Verona, em uma área rural produtora de vinhos e de cerejas estupendas. Passamos todos por grandes pomares em que viceja a deliciosa frutinha vermelha e por enormes parreirais. Tudo tem como base as instalações de uma cooperativa fabricante de vinhos, a Valpantena, que congrega mais de duas centenas de pequenos produtos locais.
É nos galpões da empresa que acontece, na véspera da prova, o equivalente ao que conhecemos por jantar de massas. Trata-se, na verdade, de uma celebração orgiástica da comida e da bebida.
A simpática turma de cozinheiras encarregadas da comilança para os corredores

A estrela das comilanças é um fabuloso risoto de cerejas, levemente adocicado. É precedido por entradas em profusão, pães, queijos e saladas, tudo regado a vinhos brancos e tintos especialmente rotulados em homenagem à edição 600 da Palio Del Drappo Verde.
Sai o risoto e entra o segundo prato, “os segundos pratos”, de fato: embutidos, conservas, queijos de várias procedências, que preparam o terreno para a sobremesa, colomba pascal com gotas de chocolate. Para finalizar, taças de espumante para todo mundo.
Com essa festança toda, eu já estava até dispensando a corrida, mas a manhã de domingo nasce ensolarada, e lá vamos nós de volta aos galpões da vinícola, agora preparados para receber os corredores. Num dos cantos do salão, acumulam-se os prêmios, as medalhas, troféus e caixas de presentes recheadas de bebidas e comidas locais.
Numa outra plataforma, uma grande gaiola serve de prisão para um gordo galo que pareceu ser da raça legorne, pelo pouco que me lembrava da criação que meu avô mantinha no quintal de sua casa em Porto Alegre.



A inusitada presença também tem razões históricas. Quando criada a corrida, lá em 1208, foi instituído o pano verde como prêmio ao vencedor. Com o peculiar humor italiano e com o passar do tempo, criou-se também presente para o último colocado, que recebia um galo como prêmio de consolação.
Melhor dito: prêmio de humilhação, como ressalta Neri em “Il Palio Podistico di Verona”. Isso porque o coitado do premiado tinha por obrigação desfilar pelas ruas da Verona medieval levando o galo por uma cordinha. Com era época de festas, o público entusiasmado aplaudia e vaiava o coitado do corredor; quem quisesse podia cortar a cordinha, obrigando o atleta a empreender nova corrida atrás do galináceo.
Havia também prêmio de consolação/humilhação na corrida de cavalos que acontecia em paralelo ao Drappo Verde. O cavaleiro perdedor ganhava um quarto de porco. A peça era amarrada ao pescoço da montaria, e o cavaleiro desfilava por Verona, sendo permitido ao público tirar nacos do pernil para consumo próprio.
Enquanto me preparava para a largada, meditava sobre o assunto: quem haveria de levar a galo dos derrotados nesta edição comemorativa, realizada na ensolarada manhã do dia quatro de junho?
Os pensamentos foram atrapalhados pela balbúrdia da largada. Melhor: das largadas, pois são múltiplas provas realizadas sob o manto verde. Há uma caminhada nórdica e corridas de trilha em duas distâncias, todas com largada minutos antes do evento principal, a corrida nas distâncias de 21 quilômetros e dez quilômetros.

De certa forma e guardadas as proporções, a multiplicidade de modalidades também lembra um pouco a evolução da Drappo Verde que, ao longo de sua história, ganhou variedades diversas depois das primeiras décadas, em que houve apenas a corrida a pé.
O Statuto Albertino, código de leis compilado em 1271 por Alberto della Scala, estabelecia que duas corridas deveria ser realizadas no primeiro domingo da Quaresma, a prova a pé e um carreira de cavalos. O tal prêmio de consolação/humilhação também é determinado por lei: registro feito em 1328 especifica e ratifica a entrega do galo ao último colocado e o pano verde para o campeão.
No final do século 14, novos regulamentos determinaram que mulheres também poderiam participar da prova –ironia extrema, pois cinco séculos depois as mulheres não podiam dizer presente em alguma competições olímpicas e ficaram de fora da maratona até 1984.
Legislação estabelecida no “Statuto” de Giangaleazzo Visconti, aprovado em 1393, criava a prova feminina. Havia um porém: a corrida era aberta apenas para mulheres “honestas” –supostamente as casadas. Se, no entanto, não houvesse mulheres honestas interessadas, a participação seria liberada para as prostitutas.
Para completar a bagunça geral, o último regulamento da Verona medieval de que se tem notícia, datando de pouco depois de 1450, muda a data das corridas, passando da Quaresma para a Quinta-feira Gorda (o dia seguinte à Quarta-feira de Cinzas”) e institui ainda uma corrida em lombo de burros, na qual o vencedor seria premiado com um pano branco.
O regulamento não determina o vestuário feminino; ao que tudo indica, até então os homens costumavam correr pelados, apesar do clima em geral ameno na época em que a Drappo Verde era disputada.



Na sua edição número 600, porém, o clima esteve longe de ameno. Quentura brava neste final da primavera europeia, com o sol tostando o lombo dos corredores. Depois de dois quilômetros eu já estava pedindo água, mas o refresco só veio bem mais tarde; os postos de hidratação são colocados a cada cinco quilômetros.
Em parte do percurso –o trajeto de ida, digamos assim--, o piso é de asfalto e gozamos da sombra de altos muros de pedra que protegem pequenas propriedades rurais onde são produzidas uvas e cerejas.
O caminho de volta, porém, atravessa belíssimo parreiral, e o que tem de belo tem de quente, pois não há proteção contra o solaço –a sensação é de que a temperatura estava em torno dos trinta graus. Sem proteção, o solo de terra batida, pedregulhos e areia fina se torna rima ao areão ardente visto por Dante no sétimo círculo do Inferno.



Os que correm dez quilômetros fazem uma vez o percurso. Nós, os poucos meio maratonistas na brincadeira, engatamos uma segunda rodada, uma quilômetros mais longa que a primeira, mas, como ela, com apenas dois postos de água.
Por isso, quando a sede apertou, decidi não sofrer. Tal como muitos antes de mim, ataquei as cerejeiras que vicejavam à beira da estrada, e o suculento fruto me ajudou a completar feliz a prova mais antiga do mundo.
Com ela, totalizei no dia quatro de junho último 1.128,34 quilômetros percorridos desde o dia primeiro de janeiro neste ano em que, para celebrar meu sexagésimo aniversário, pretendo percorrer distância equivalente à de sessenta maratonas, 2.532 quilômetros.

Ao longo do caminho, venho discutindo também questões de saúde, qualidade de vida e inserção social dos mais velhos, o povo que atinge a chamada Terceira Idade.
Não tem sido uma jornada fácil, especialmente por causa de lesões e do fato de que, nos mais velhos, a recuperação costuma ser mais lenta. Em compensação, venho aprendendo muito sobre a vida, as corridas e o  envelhecimento, além granjear apoios e solidariedade especiais, como da clínica Força Dinâmica, que organiza meu treinamento e preparação física, e do Instituto Vita, que colabora nos trabalhos de conserto e recuperação de músculos, ossos e tendões, a chamada carne fraca.
Tudo isso me dá força e aumenta minha determinação, mas a velocidade continua não sendo grande coisa: ganha um doce quem adivinhar quem ganhou o galo na sexcentésima edição da Palio Del Drappo Verde, a mais antiga corrida do mundo ainda em disputa nos tempos modernos. O que só reforça minha crença esperançosa no popular ditado que, ao arrepio da lógica, afirma: “Os últimos serão os primeiros”.
VAMO QUE VAMO!!!



Percurso caminhado no dia 18 de julho de 2017
3,22 quilômetros percorridos em 37min24
Percurso acumulado no projeto 60M60A
1.533,98 quilômetros percorridos em 269h24min36

PS.: Uma versão condensada deste texto foi publicada na edição de julho da revista “O2