29.2.16

Sindicato dos Metalúrgicos interpela ditadura pela morte de Fiel Filho

Notícia publicada em uma coluna, no alto da primeira página da “Folha de S. Paulo”  de 20 de janeiro de 1976, uma terça-feira, informa: “II Exército tem novo comandante”.

O texto começa assim: “O Palácio do Planalto anunciou ontem, em Brasília, que o general Dilermando Gomes Monteiro é o novo comandante do II Exército (com sede em São Paulo). O atual comandante, general Ednardo D`Avila Melo, foi nomeado para a chefia do Departamento de Ensino e Pesquisa do Exército”.

Não há na chamada de capa menção à morte de Manoel Fiel Filho, ocorrida três dias antes nas dependências do DOI-Codi do II Exército. 

O caso também não é citado em nenhum dos quatro textos que, na página três do primeiro caderno, complementam a cobertura do caso.

“Dilermando assumirá esta semana”, diz o título do texto principal. A seguir, as notícias relacionadas: “No QG, nenhum comentário”,  “Brasília chama o governador”, “Surpresa na Arena e MDB” e “Novo comandante é velho amigo de Geisel”.

Nenhum dos textos especula sobre causas da mudança. No alto da mesma página, em uma coluna, separado do restante das notícias por um fio –como a dizer que uma coisa nada tem a ver com a outra--, está publicado texto em que o jornal reproduz comunicado dos militares.

“Morte no DOI: II Exército emite nota” é o título da notícia em três parágrafos. O primeiro deles apresenta a nota oficial, que começa assim: “O comando do II Exército lamenta informar que foi encontrado morto, às 13 horas do dia 17 do corrente, sábado, em um dos xadrezes do DOI/CODI/II Exército, o sr. Manoel Fiel Filho”.

Logo abaixo, notícia com título sem verbo, sem ação: “Comentário de Prudente de Morais”. O jornalista, presidente da Associação Brasileira de Imprensa, lembra a recente morte de Vladimir Herzog –ocorrida em outubro de 1975—e pede “apuração rigorosa das causas e pormenores dos fatos”.

Em São Paulo, a notícia cai como uma bomba sobre os movimentos populares e, especialmente sobre o movimento sindical. A rádio-peão já funcionava. Alguns sabiam da morte: José Francisco Campos e Miguel Huertas, representando o sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, foram até a casa da família de Manoel levar a solidariedade da categoria.

Era preciso mais. Depois da publicação da nota do II Exército, a diretoria do sindicato se reúne e decide não ficar calada. Resolve interpelar o general Ernesto Geisel, que ocupava na época a Presidência da República.

Apesar da censura e do controle que havia sobre o mundo sindica e sobre a sociedade, o sindicato manda a Geisel o seguinte telegrama, com cópia para os ministros do Trabalho, da Justiça e do Exército:

“Sindicato Trabalhadores Metalúrgicos SPaulo tomando conhecimento através imprensa nota oficial Comando II Exército informando morte operário Manoel Fiel Filho vg seu associado desde 1956vg matricula 50.355 vg ocorrida último dia 17 corrente mês dependências xadrezes destacamento de operações de informações daquela unidade militar repetindo assim lamentável episódio registrado mês de outubro de 1975 morte jornalista Wladimir (sic) Herzog vg devido respeito pede vânia  comparecer presença Vossência a fim manifestar veemente protesto pelo ocorrido vg impondo-se enérgica e imediatas providência sentido apuração dos fatos e punição rigorosa seus responsáveis vg bem como impedir presos políticos continuem ser submetidos constrangimento  e violência vg a fim de prevenir novas ocorrências da mesma gravidade pt Circunstâncias desconhecidas causa morte ocorrida cárceres Polícia Militar provoca  insegurança et intranquilidade ppt Se motivada morte violência pretesto ...defesa Segurança Nacional vg merece repudio povo brasileiro pt Garantias constitucionais e respeito direitos humanos não constitue previlégio mas representa conquista civilização pt Trabalhadores metalúrgicos cientes providências já determinadas pelo Ilustre Presidente vg no sentido investigações para esclarecimento ocorrido vg sejam seus resultados trazidos conhecimento público.”

O documento é assinado pelo então presidente do sindicato, Joaquim dos Santos Andrade, que hoje é nome de uma rua íngreme colada à antiga sede da entidade, na rua do Carmo, no centrão de São Paulo.

“O Joaquinzão enfrentou muitas vezes o regime militar, um exemplo disso foi esse telegrama que ele mandou na época, questionando, pedindo investigação sobre a morte do Manoel Fiel Filho”, diz Miguel Torres, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo.

Caminhada com dirigentes e ativistas do Sindicato dos Metalúrgicos na região central de São paulo - Fotos Paulo Segura/Divulgação



Miguel comandou hoje uma caminha dos metalúrgicos em homenagem a Manoel, na 11ª etapa da CORRIDA POR MANOEL. Mais de duas dezenas de dirigentes e militantes do sindicato participaram dessa jornada, que foi da sede atual da entidade até a antiga sede, na rua do Carmo, onde Manoel militou e que hoje abriga o Sindicato Nacional dos Aposentados.

Alguns sindicalistas da velha guarda ainda lembram da presença de Manoel Fiel Filho nos encontros da categoria. Campos, de 71 anos, na época era o responsável por abonar as novas filiações ao sindicato. Foi quem assinou a carteirinha de do operário assassinado em 1976 no DOI-Codi de São Paulo.

“O Fiel Filho tinha uma pastinha preta, vinha nas assembleias. Era do PCB, segundo dizem”, comenta o sindicalista.

“As assembleias tinham umas cadeiras estreitas, eram mais ou menos umas 300 pessoas. Eu lembro dele, de chapéu. Eu lembro de algumas pessoas que se tornavam quase personagens. Pessoas que iam sempre na assembleia. Ele ficava junto com o Pernambuco, um cidadão chamado Teófanes Roberto, está com noventa e poucos anos, foi meu assessor.”

Concentração em frente ao Palácio do Trabalhador, na rua Galvão Bueno, Liberdade


Relembrar o passado não significa ficar com reminiscências saudosistas. Ao longo dos cerca de dois quilômetros de nossa caminhada de hoje, Miguel Torres destacou a importância de resgatar a memória das lutas sindicais e das figuras dos combatentes pelos trabalhadores. O que não é exatamente a coisa mais fácil do mundo neste momento.

“O nosso sindicato, acho que o movimento sindical como um todo, ele não preserva muito a memória. Isso é um grande problema que nós temos aqui. Criamos um departamento de memória sindical que o Campos [José Francisco Campos] está tocando. Mas ainda é pouca coisa. Temos participado do Centro de Memória Sindical, também com uma atuação muito forte, está recuperando, mas o dirigente sindical, as entidades sindicais, têm um problema, ela quer contar a história a partir do dirigente que está na direção. Você não consegue mostrar a história como deve ser. Isso é uma batalha”, diz Torres.

Apesar dos percalços, é preciso ter a 
história como ferramenta de luta e conscientização, aponta o dirigente dos metalúrgicos:

“As novas gerações que estão entrando do mercado de trabalho hoje não têm a noção para que serve o sindicato. Qual a importância do movimento sindical na época, na vida do trabalhador, principalmente brasileiro. Não sabe que as conquistas que têm hoje, os benefícios foram conquistas de alguém que participou da luta sindical. Não existe nada que não tenha sido fruto de reivindicação dos trabalhadores. Nenhuma lei no Brasil, ou no mundo, não passou primeiro por uma construção, por uma reivindicação, protesto, por uma mobilização. No movimento sindical é a mesma coisa. O jovem não tem noção disso. Não sabe porque tem o 13º, férias, 1/3 de férias, 40% do FGTS [Fundo de Garantia por Tempo de Serviço], não sabe porque a jornada de trabalho é 44 e não 48 [horas]. Essa ideia de a gente puxar e resgatar, até para mostrar que todo mundo tem que participar para melhorar. Hoje o trabalhador que vai numa empresa já encontra cesta básica, convênio médico, a maioria tem transporte. Mas aquilo foi fruto de mobilização no sindicato. Não veio de graça. Se fosse pelo patronato isso não existia. A ideia de resgatar a memória é para mostrar a necessidade de continuar essa luta, para avançar nos direitos, melhorar a vida do trabalhador.”

Isso é feito na luta no dia a dia e também em cerimônias e homenagens: o sindicato celebra, por exemplo, o Dia do Delegado Sindical Metalúrgico a 17 de janeiro, data do assassinato de Manoel Fiel Filho.

“Essa é uma categoria guerreira, que já passou por inúmeras dificuldades e situações de grandes desafios, venceu e se fortaleceu”, lembra o presidente Miguel Torres.

É uma categoria que lembra e celebra seus lutadores e também participa das campanhas para que os crimes do passado não fiquem impunes.

O Sindicato dos Metalúrgicos esteve representado, por exemplo, na Comissão Nacional da Verdade e ajudou a elaborar o capítulo sobre os movimentos dos trabalhadores.

O texto denuncia: “A classe trabalhadora e o movimento sindical foram alvos primordiais do golpe de Estado de 1964, das ações antecedentes dos golpistas e da ditadura civil militar.”

Lembra que as organizações sofreram ataques desde as primeiras horas do golpe militar, na madrugada de 1º de abril de 1964: “Intervenções em direções sindicais, depredação de sedes de entidades, prisões, torturas, execuções foram acontecimentos reiterados e sistemáticos”.

Somente entre março e abril de 1964, a ditadura nomeou 235 interventores nos sindicatos, segundo afirma texto disponível no site do Sindicato dos Metalúrgicos. “No total, o ano de 1964 somaria a intervenção do ministério do trabalho em 409 sindicatos e 43 federações. Entre 1964 e 1970, o número de sindicatos atingidos pela repressão chegou a 536, e a estimativa de dirigentes cassados neste período é de dez mil. Na base do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, por exemplo, foi estimado em 1.800 o número de delegados denunciados pelos interventores após o golpe.”

É bem verdade que a entidade já estava com a casca grossa, acostumada a enfrentar o poderio do estado e dos patrões desde o seu nascimento em 27 de dezembro de 1932.

“Os primeiros meses de vida do Sindicato foram bastante duros. Os empregadores continuavam a demitir líderes trabalhistas e os metalúrgicos não se arriscavam a filiar-se a entidade, temendo represálias políticas e policiais”, diz texto sobre a história do sindicato publicado no site.

E prossegue: “Com o pequeno número de filiados, a entidade enfrentava enormes dificuldades financeiras que comprometiam sua própria sobrevivência. “Os diretores e sócios eram obrigados a tirar dinheiro do próprio bolso para pagar as pequenas despesas do sindicato,” recorda Armando Suffredini, um dos fundadores e ex-presidente da entidade. “Os que acreditavam na nossa entidade iam trabalhar à noite na sede, depois de batalhar o dia inteiro dentro das fábricas.””.

No período da ditadura militar, porém, a perseguição redundava em prisões, tortura e morte de sindicalistas. O livro em que o repórter Carlos Alberto Luppi relata o caso Manoel Fiel Filho traz uma lista de mais de 20 trabalhadores, muitos deles metalúrgicos, assassinados por agentes do regime militar.

A morte de Manoel foi um marco, um ponto de ruptura. No governo, o general responsável pelo DOI-Codi é substituído; no movimento sindical, as lideranças parecem decidir que não dá mais para suportar o torniquete imposto à sociedade.

Metalúrgicos caminham por Manoel; o presidente Miguel Torres está ao meu lado, mais ou menso no meio do grupo;


“Foi o grande alicerce para a retomada”, me disse Miguel Torres durante nossa caminhada de hoje. Lembrou as greves de 1978 e 1979, e a decisiva participação dos trabalhadores nas lutas democráticas ao longo da década de 1980, culminando na campanha pelas eleições diretas.

“O sindicato sempre teve essa atuação em defesa da cidadania”, resume ele quando encerramos nossa jornada, na rua do Carmo, palco de históricas reuniões do movimento sindical brasileiro.

CORRIDA POR MANOEL – 11º dia

PERCURSO entre a sede atual e a antiga sede do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e Mogi, 1,9 km percorrido em 25min

QUILOMETRAGEM ACUMULADA: 108,92 km



28.2.16

Viagem até o sobrado onde Manoel vivia quando foi sequestrado

Manoel Fiel Filho foi sequestrado no dia 16 de janeiro de 1976. Dois homens o pegaram na fábrica onde ele trabalhava, a Metal Arte, e o levaram para o DOI_CODI, onde foi torturado até a morte. Antes, passaram pela casa onde o metalúrgico morava com a esposa, dona Thereza de Lourdes, e a filha caçula, Márcia.

Com 16 anos, a menina trabalhava e estudava, passava o dia fora. Só dona Thereza estava no sobrado da rua Coronel Rodrigues, número 155, quando Manoel chegou de surpresa, trazido por aqueles dois desconhecidos.

Hoje, 40 anos depois, a viúva ainda se emociona quando descreve aqueles momentos. Sentada no sofá da casa de Márcia, em Bragança Paulista, onde a família vive atualmente, dona Thereza conta o momento da despedida.

Era hora do almoço. Eu comecei a chorar, ele falou assim: `Não chora, não, nêga, eu vou voltar logo`. Me deu um beijo na testa e foi embora. Era uma sexta-feira; no sábado, na hora do almoço, ele já estava morto.”

O sobrado da rua Coronel Rodrigues, número 155, último local em que o operário metalúrgico foi visto com vida e em liberdade, foi o meu destino no décimo dia da CORRIDA POR MANOEL.


Como em outras jornadas deste mergulho na história de Manoel, o percurso cortou a cidade. 

A família Fiel Filho era consistentemente zona leste: lá morava, lá Manoel trabalhava, lá a filha mais nova, Márcia, estudava. Aparecida, a mais velha, já estava casada na época, mas também vivia na região.

Para quem sai do centro, um dos acessos à zona leste é pela rua da Mooca. Partindo da Sé, do Marco Zero da cidade, na praça da Sé, há que descer a rua Tabatinguera, passar por baixo do viaduto do Glicério e cruzar o viaduto Abreu Sodré.


Foto Ayrton Vignola Jr., repórter fotográfico que correu comigo neste domingo

É uma região pobre e cinzenta; sob o viaduto, convivem moradores de rua, coletores de material reciclado e homens e mulheres que pensam apenas na próxima tragada ou na cheirada seguinte em alguma droga qualquer.

Do alto do viaduto, veem-se esqueletos de antigos armazéns da Mooca, os trilhos do trem que separam a periferia da região central da cidade. No início da manhã deste domingo, as avenidas lá embaixo estavam quase vazias; destacava-se um grupo de velhos Fuscas, talvez rumando para um encontro de colecionadores...



As primeiras centenas de metros da rua da Mooca são as mais carentes. Nas transversais, como nos baixios dos viadutos, moradores de rua. Algumas fachadas, por certo, dão acesso a cortiços em que se acotovelam várias famílias. 

Numa entrada de estacionamento, uma placa avisa: “Aluga-se cômodo para boliviano”.




Depois do primeiro quilômetro zona leste adentro, a rua da Mooca parece ganhar mais movimento, mesmo no domingão preguiçoso. Ficaram para trás os esqueletos de antigas fábricas, os armazéns de paredes pichadas. Há igrejas, padarias, restaurantes.

Com meu amigo Ayrton Vignola Júnior, repórter fotográfico, ciclista e ultramontanhista –veterano de provas cabulosas em montanhas, como a Ultramaratona dos Anjos--, seguimos descobrindo mistérios da Mooca.

Um deles deixa este gremista gaúcho de queixo caído. É a churrascaria Gre-nal Grill, que está fechada na hora quase madrugadeira quando passamos por lá.


Na sua propaganda, convivem em paz os símbolos do Grêmio e do Internacional, os times que tomam conta do coração e das emoções da gauchada –já deu até morte em choques das duas torcidas.

Na rua da Mooca, não. Ali, Grêmio e Inter convivem em harmonia à beira da churrasqueira.


Um pouco mais adiante, encontramos a escola André Xavier Gallicho

onde Márcia Fiel estudou. Parece indício de que estamos perto do destino, mas não; apenas adentramos a “região Fiel”, há ainda muito a percorrer.

A próxima etapa é subir a grandiosa avenida Sapopemba, marco da zona leste, que se vai embora por 26 quilômetros e chega até o vizinho município de Mauá.

Três horas de subidas e descidas saindo da zona oeste da cidade para chegar à rua Coronel Rodrigues



Há dois anos, percorri cada um dos encabritados metros da Sapopemba. Agora, porém, vamos parar bem antes. Passamos pelo ponto em que uma adutora serve de divisa da rua e desculpa para instalação de uma longa praça. Fazemos uma parada no bar do Pagé para hidratação e seguimos subindo.

A rua Coronel Rodrigues nasce em um dos pontos mais altos da Sapopemba, quase 800 metros acima do nível do mar.

E segue subindo por três quarteirões, depois forma um platô e desce um pouquinho. Mesmo assim, do final da rua, a 832 metros de altitude, dá para ver os confins da zona leste, imagem aberta que dá ideia das mastodônticas dimensões da cidade.



A casa onde viveu a família Fiel fica na parte inicial da rua, quase no final da primeira subidona. A julgar pelo que dona Thereza e as filhas contam pelo que disseram à imprensa os vizinhos na época do sequestro, é bem possível que Manoel jamais tenha ido até o ponto final de sua rua, jamais tenha visto a cidade que se espalhava na distância.

O sobrado em que a família morou por cerca de quatro ou cinco anos fica na parte inicial da Coronel Rodrigues, quase no alto da primeira subida. Tem cerca de seis metros de frente, e a casa começa pela garagem.


Foto Ayrton Vignola Jr.


Caseira, a família não tinha grande vida social. “Bom dia”, “boa tarde”, cumprimentos formais era o máximo que trocavam com os vizinhos, segundo texto publicado em 1976 na “Folha de S. Paulo”.

“É uma boa freguesa, paga sempre direitinho”, disse alguém à reportagem, referindo-se à dona Thereza. Também sobre ela foi dito: “É uma boa dona de casa”.

Os homens que chegaram com Manoel por volta do meio-dia de 16 de janeiro de 1976 bagunçaram a casa toda. Chegaram armados, com “arma grande”, embrulhada em jornal, como nos disse a viúva de Manoel.

Na época, ela contou mais detalhes ao repórter Carlos Alberto Luppi, conforme o livro “Manoel Fiel Filho – Quem Vai Pagar Por Este Crime?”:

“Logo antes do almoço, ele passou por aqui com dois homens em trajes civis, que se diziam funcionários da Prefeitura. Estava muito branco, e eu observei logo que os homens eram policiais. Estavam com duas metralhadoras embrulhadas num papel de jornal. Eu esbarrei numa delas e um dos homens gritou: “Não mexa nisso aí. Saia daí!’ “

Os dois homens reviraram a casa toda, mexeram em tudo: livros, armários. “Ainda bem que não encontramos prova alguma, hein, Manoel!”, disse um deles, conforme o relato de dona Thereza.

Ela quis saber de que prova estavam falando. “Estamos procurando um jornalzinho”, disse um polícia.

Dona Thereza disse então que tinha o jornal do Sindicato dos Metalúrgicos, e Manoel pediu para ela ser deixada em paz.

A conversa já estava chegando ao fim. Um dos homens ordenou: “A senhora não vai abrir a boca nem avisar pra vizinho algum que estivemos aqui”.

Dona Thereza perguntou para onde estavam levando o marido, o que seria dele: “Se ele não voltar hoje, volta amanhã”, respondeu-lhe um dos policiais.

Ela não se deu por achada, não calou a boca. Seguiu questionando os policiais, conforme registra o livro de Luppi.

 “O que vou dizer para minha filha quando ela chegar e perguntar pelo pai?”, interpelou.

“A senhora diz pra ela que o Manoel teve que fazer um trabalho extra na fábrica à noite e por isso vai chegar tarde”, disse um agente.

Dona Thereza contra-ataca: “Mas meu marido não faz hora extra à noite. Nunca fez e a menina não vai acreditar”.

“Então a senhora fale para ela o que bem entender.”

Ela não se calou: “Os senhores estão dizendo que são da Prefeitura, que ele vai assinar uns papeis, mas quem cuida dos assuntos dele com a Prefeitura sou eu”.

Não tinha mais nada a ser dito, os policias já lhe carregavam o marido.

Manoel ainda teve tempo para tentar consolar a mulher: “Não chora, não, nêga, eu vou voltar logo”. Deu-lhe um beijo na testa e se foi.



CORRIDA POR MANOEL – décimo dia
Destino: Rua Coronel Rodrigues, 155, percurso de 18,77 km realizado em 2h26min16


Distância acumulada: 107,02 km

27.2.16

Caminhada em Bragança Paulista reúne família de Manoel Fiel Filho

Dona Thereza estava feliz –e emocionada. 

Na manhã deste sábado, a viúva de Manoel Fiel Filho tinha à sua volta toda a família: duas filhas, três netos e dois bisnetos, mais genro e a esposa de um dos netos. Esperavam todos o início de uma caminhada em homenagem ao patriarca, nona etapa da CORRIDA POR MANOEL.

“É difícil reunir todo mundo assim”, comentou alguém. Como em todas as famílias, cada um tem seus horários de trabalho, seus compromissos, vontades e desejos. O encontro foi na casa da filha caçula de Manoel e Thereza, Márcia, em Bragança Paulista, onde todos moram atualmente.


De pé, a partir da esq.: Gabriel e sua mãe, Márcia; Thadeu, Thiago e sua esposa, Luciene; Aparecida e o marido, Osvaldo; sentados, dona Thereza e os bisnetos Maria Beatriz e Vinícius Augusto - foto Rodolfo Lucena


A filha mais velha, Aparecida, foi a desbravadora, a primeira que se mudou de São Paulo. Depois de viver por mais de 15 anos no mesmo sobrado de onde o pai foi levado, em 1976, para nunca mais voltar, decidiu que era hora de mudar de ares.

Ela e o marido, Osvaldo, já costumam levar os filhos para um sítio de lazer em Bragança. Resolveram se transferir de mala e cuia para a “Capital da Linguiça”.

Depois foi a vez da mais nova, que morava com mãe em São Vicente, para onde as duas tinham ido logo depois do assassinato de Manoel Fiel Filho.

 “A situação na época era meio estranha”, lembra Márcia. A família não chegou a ser perseguida, mas costumava haver gente rondando a casa em que moravam, na zona leste de São Paulo.

A pressão foi maior depois que dona Thereza entrou com processo para responsabilizar a ditadura militar pela morte do marido.

A família foi representada pelos advogados Marco Antonio Rodrigues Barbosa e Samuel Mac Dowell de Figueiredo. Na manhã deste sábado, quase vinte depois da última vez em que estiveram juntos, Marco Antonio esteve também na casa de Márcia para participar da caminhada com a família de Manoel Fiel Filho.


Dona Thereza mostra xícara de conjunto de porcelana que ganhou de presente de casamento - Fotos Eleonora de Lucena


“Vocês estão me fazendo lembrar de coisas que eu não queria lembrar”, disse, emocionada, dona Thereza, quando viu Marco Antonio subindo as escadas da casa. Os dois se abraçaram em silêncio, sorrisos de cada um encobrindo a emoção.

Não houve choro nem tampouco muitas reminiscências, apenas algumas histórias do tempo em que Manoel estava vivo. 

Osvaldo, marido de Aparecida, lembrou que foi ele quem contou ao sogro sobre a morte de Vladimir Herzog. Trocaram poucas frases, Manoel quis logo mudar de assunto.

“Meu pai não gostava de falar de política nem de religião nem de futebol”, disse Aparecida. Osvaldo, palmeirense, reafirma: nunca chegou a ter discussões esportivas com o sogro corintiano.


A partir da esq.: Gabriel, Osvaldo, Laura, Aparecida, Marcia, Marco Antonio, Carmen e Rodolfo 


O papo estava bom, mas o asfalto nos chamava para a caminhada. O grupo que foi para a rua foi menor: Aparecida e o marido, Marcia e o filho, Gabriel, Marco Antonio com sua mulher e filha, Carmen e Fabiana, mais os Lucenas: Eleonora, eu e nossa filha mais velha, Laura, que é historiadora e está ajudando na pesquisa e produção da Corrida por Manoel.

A caminhada foi curta, um passeio de amigos e conhecidos. Demos uma volta na praça conhecida como “Do Matadouro”, porque ali funcionava um abatedouro de gado. A antiga construção, erguida em um dos cantos do parque, é hoje um centro cultural.

Quando havíamos quase completado a primeira volta na praça, começa a chuva que vinha se armando desde o início da manhã. Não chegou a ser um aguaceiro, mas deu para refrescar corpos e espíritos.

No final, estávamos todos rindo. A despedida virou uma promessa de reencontro.

CORRIDA POR MANOEL - nono  dia

Destino: Caminhada com a família de Manoel Fiel Filho em Bragança Paulista, 1 km em 20min.

Distância acumulada: 88,25 km

26.2.16

Estouro de gráficas marca início de onda de prisões de comunistas

Por ironia da organização urbana da cidade de São Paulo, usei hoje a avenida Ordem e Progresso para chegar a um destino que foi testemunha de um período em que não havia ordem nem progresso no país.

Estou falando do tempo da ditadura militar, onde apesar do verniz de organização que a hierarquia e disciplina castrense supostamente emprestava ao governo, o que de fato havia era um turbilhão de grupos se digladiando pelo poder e por benesses.

A ação de grupos ultraviolentos dentro dos já brutais organismos de repressão é exemplo dessa desordem intestina no governo ditatorial, mais evidente durante o governo do general Ernesto Geisel, que assumiu em março de 1974.

Foi sob o Geisel da distensão que Vladimir Herzog é assassinado em 1975. Também foi sob Geisel que ocorreu, no ano seguinte, a execução de Manoel Fiel Filho. 

Sobre o operário metalúrgico pairavam vagas acusações, suspeitas nunca fundamentadas de que distribuísse entre seus colegas o “Voz Operária”, jornal clandestino do Partido Comunista Brasileiro.

O fato é que nunca houve acusação nem processo nem nenhum outro tipo de ação judicial contra Manoel Fiel Filho. Em cerca de 24 horas, ele foi preso, torturado e morto.

Os assassinatos de Manoel e de Herzog foram os pontos culminantes de mais de um ano de perseguição sem trégua a dirigentes, militantes e simpatizantes do Partido Comunista Brasileiro.

O início da onda de prisões que levou centenas de brasileiros à tortura e vários deles à morte acontece em janeiro de 1975, quando o aparato repressivo consegue desmantelar gráficas em que eram impressos e armazenados o jornal “Voz Operária”.

Em São Paulo, um dos locais atacados pela polícia política foi uma gráfica que ainda estava sendo instalada na Casa Verde, zona norte de São Paulo. Ficava na rua Gonçalves Figueira, 80, meu destino neste oitavo dia do projeto CORRIDA POR MANOEL.



Tal como há 41 anos, o prédio é simples, inconspícuo. Baixo, tem cerca de seis metros de frente. Em vez de portas, há duas folhas de aço de enrolar. A segurança de uma delas, a da esquerda, é reforçada por uma grade de ferro. 

Aparentemente, não são usadas –segundo um vizinho, ali são os fundos de um mercado (quase nada estava em funcionamento na região na hora em que estive lá).

Começando na avenida Engenheiro Caetano Álvares, pertinho do terminal de ônibus da Casa Verde, a rua Gonçalves Figueira sobe abruptamente por mais cem metros; depois, a rampa segue, mas a inclinação é menos severa.

É uma rua de casas baixas, em que nenhuma chama atenção –a mais colorida é o sobrado ao lado do número 80, onde funciona uma escola para crianças pequenas.

Em janeiro de 1975, as operações da polícia política foram cercadas de silêncio. Muito pouco, quase nada, transpirou para a imprensa até o dia 30, quando o ministro da Justiça, Armando Falcão, fez um pronunciamento na TV anunciando o desmantelamento das gráficas clandestinas.

Texto publicado na Folha de S. Paulo em 1º de fevereiro daquele ano diz que, segundo vizinhos, a casa da Gonçalves Figueira, número 80, era ocupada por um jovem casal –“ela japonesa, ele brasileiro, com um filho”—até a chegada da polícia, “há cerca de duas semanas”.

A frase indica que a operação da ditadura havia começado no início do mês. De fato, o texto “Por quem os sinos dobram”, publicado em 31 de outubro de 2015 no Blog do Azedo, afirma: “No dia 6 de janeiro de 1975, o gráfico Raimundo Alves de Souza, procura um advogado para dizer que estava sendo seguido. Raimundo era o responsável pelas gráficas clandestinas do Rio e São Paulo. A direção foi informada. Raimundo, porém,acabou preso.

Nas pesquisas que fiz, não encontrei outras referências a Raimundo nem ao casal que, segundo os vizinhos, ocupava a casa onde estava instalada a gráfica na Casa Verde.

De fato, não era ainda uma gráfica: o PCB estava começando a levar para lá equipamentos que permitissem a impressão do “Voz Operária”, caso a gráfica principal, no Rio de Janeiro, fosse descoberta pela repressão. Ali funcionava principalmente como depósito em que ficavam armazenados os jornais que seriam distribuídos em São Paulo, panfletos e outras publicações.

Essa preocupação com a segurança das instalações e a precaução em criar opções para continuar operando mesmo após ataques da repressão não deram resultado. O estouro das operações de imprensa do PCB foi geral naquele início de 1975.

A principal vitória da ditadura naquele momento foi a descoberta da gráfica que funcionava em um sítio no Rio de Janeiro. Nota distribuída em 31 de janeiro de 1975 e assinada por Armando Falcão, relatava o seguinte:

“A oficina impressora clandestina está localizada no bairro de Campo Grande, caminho Anésia, nº 228. Nesse local, aproveitando-se de disfarce proporcionado por uma casa residencial, de aparência absolutamente normal, dispunha de dependência subterrânea, onde funcionava a oficina gráfica e existia um depósito”.
Ali, segundo a nota, a polícia encontrou grande quantidade de documentos do Partido Comunista, revistas, livros, panfletos e “material de propaganda política usados nas últimas eleições”.
A área da gráfica era “construída com paredes duplas, para evitar a propagação de ruído”. Lá estavam instaladas uma máquina de cortar, máquina sensibilizadora de stêncil, mimeógrafo e outros equipamentos.

A nota não cita nomes nem diz quantas pessoas foram presas na operação. 

Garimpando em diversos sites e nos arquivos da polícia política hoje disponíveis para consulta pública, encontrei algumas informações esparsas.

Na página Memorial da Democracia, do Instituo Lula, informa-se que “um dos presos é o gráfico Alberto Aleixo, irmão do ex-vice-presidente Pedro Aleixo. Torturado, Alberto morreria em agosto”.

Página do site Memorial da Democracia traz foto da gráfica do PCB que funcionava no Rio de Janeiro


No livro “A Ditadura Encurralada”, o jornalista Elio Gaspari afirma: "No dia 13 de janeiro o CIE estourou a capa de proteção do PCB   a gráfica clandestina onde se imprimia o jornal “Voz Operária”, no subúrbio carioca. Ela funcionava num subterrâneo, num sítio. Chegava-se à impressora por um alçapão existente no fundo de uma caixa-d´água, que era esvaziada para que os trabalhadores descessem. A Voz submergira em 1964, mas reaparecera um ano depois, circulando mensalmente. Com a gráfica, sumiu mais um pedaço da cúpula do Partidão. Um dos responsáveis pelas máquinas, Élson Costa, desapareceu no dia 14 de janeiro”.

O corpo de Elson teria sido jogado em um rio em Avaré, interior de São Paulo, segundo depoimento  do  ex-agente do DOI-CODI/SP, Marival Chaves.
Reportagem da revista Veja (18/11/1992), citada no site Documentos Revelados, trouxe o seguinte depoimento de Chaves: 
“Outro que está no rio é Elson Costa,assassinado em 1975. Ele era o encarregado da seção de agitação e propaganda do partido. Na casa de Itapevi, foi interrogado durante vinte dias e submetido a todo tipo de tortura e barbaridade. Seu corpo foi queimado. Banharam-no com álcool e tocaram fogo. Depois, Elson ainda recebeu a injeção para matar cavalo”.
Em São Paulo, além da operação clandestina desbaratada na Casa Verde, a polícia atacou também uma gráfica que funcionava legalmente, no Brás. Era a Isbra, onde foi preso o gráfico José David Dib, nascido em Ituiutaba, Minas Gerais, em 1922. Ele “deu entrada” no Dops em 20 de janeiro de 1975, “procedente do DOI”. A seguir, passou por diversas detenções e acabou sendo posto em liberdade em 30 de junho de 1975, quando foi revogado o decreto de prisão preventiva contra ele.
Há ainda menos informações a respeito do que aconteceu com quem foi preso na rua Gonçalves Figueira, 80. Lá, segundo a nota de Armando Falcão, a gráfica também estava instalada em um porão escavado sob a casa residencial.
“A entrada para o local da oficina fazia-se através de uma abertura na própria parede, encoberta por uma estante e acionada pela movimentação de um registro de água, situado em outra dependência da casa. A movimentação desse registro destrancava a porta falsa (um pedaço da própria parede) possibilitando o giro da mesma.”
No local, “juntamente com montagens e inúmeros exemplares da ”Voz Operária”, grande quantidade de livros e impressos de cunho subversivo e papéis manuscritos, foram encontrados alguns aparelhos de aquisição recente, tais como: sensibilizador eletrônico de stêncil e mimeógrafo elétrico”.





O responsável pela gráfica era Elias Moreira Borges, sobre quem consta muito pouco na ficha do Dops: sua filiação e data de nascimento (06.05.1948) e o fato de que havia mandado de prisão contra ele.
Uma curiosa “Carta mensal”, espécie de boletim informativo do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de Minas Gerais, registra, na sua edição número 13, de julho de 1975:
“Dia 2 – “O Conselho Permanente de Justiça Militar da 2ª Auditoria resolveu condenar, por unanimidade de votos, como incursos no artigo 43 da Lei de Segurança nacional, por atividades do proscrito Partido Comunista Brasileiro e suas gráficas comunistas, os réus: MOISÉS WAISTEIN, CLÁUDIO JOSÉ RIBEIRO e ELIAS MOREIRA BORGES a cinco anos de reclusão.”
Borges e os outros dois também tiveram seus direitos políticos cassados por dez anos.
Essas condenações não passam, como diz o ditado, da “ponta do iceberg”. O número de prisões de dirigentes e militantes comunistas, ao longo de 1975, chegou ás centenas, como contabiliza o já citado texto publicado no Blog do Azedo:
“Entre novembro de 1974 e junho de 1976, houve muitas prisões nos estados: São Paulo, 316; Rio de Janeiro, 125; Paraná, 66; Santa Catarina,42; Bahia,30; Goiás,24; Sergipe, 21; Rio Grande do Sul, 18; Minas Gerais, 12; Brasília, 11; Pernambuco, 9.  Nesse processo, que se estendeu até metade de 1976, todos os comitês estaduais e municipais das capitais dos estados mencionados, bem como a maioria dos órgãos intermediários mais importantes do Comitê Central, foram liquidados.”

Não sei se Azedo tem razão quando usa a palavra “liquidado”. O fato é que, mesmo depois de as gráficas terem sido estouradas, ainda foram impressas no Brasil as edições 120 (fev. 1975), 121 (mar. 1975) e 122 (abr.-maio 1975); a partir de abril de 1976, o “Voz Operária” passa a ser publicado na Europa.
Olhando a fachada prosaica da casa do número 80 da Gonçalves Figueira, eu me pergunto por que a repressão abateu com tanta voracidade sobre o PCB naquele período.


Afinal de contas, os grupos de democratas que pegaram em armas contra a ditadura já tinham sido dizimados –um dos mais atuantes, o MR-8 de  Carlos Lamarca e do sequestro do embaixador norte-americano, àquela altura pregava a luta contra a ditadura a partir das instituições legalmente organizadas no país.
Em “Combate nas Trevas”, Jacob Gorender dá uma explicação que me parece insuficiente: “Uma vez que já não havia organizações da esquerda armada para justificar sua atuação sanguinária, os órgãos repressivos se voltaram para a `reserva de caça`que lhes oferecia o PCB”.
Eu cá comigo penso diferente. O que me parece que a ditadura atacou o PCB com tal violência para tentar melar os resultados das eleições de novembro de 1974, que tinham sido uma surpresa para todos –governo, oposição legal e mesmo a resistência clandestina.
A edição número 4207 do “Jornal do Senado” resume: “Em 15 de novembro de 1974, a ditadura militar sofreu uma inesperada derrota nas urnas, que marcou a ascensão definitiva do Movimento Democrático Brasileiro, o MDB, como partido viável de oposição. Naquela eleição foram escolhidos senadores, deputados federais e deputados estaduais. Foi na corrida ao Senado que o governo sofreu uma derrota marcante. Dos 22 estados que na época elegiam senadores, o MDB triunfou em 16. Entre os 16 eleitos, estavam lideranças até então desconhecidas no cenário nacional e que se tornariam protagonistas da política brasileira nos anos seguintes, como Itamar Franco (Minas Gerais), Orestes Quércia (São Paulo), Paulo Brossard (Rio Grande do Sul) e Marcos Freire (Pernambuco)”.

Além da vitória acachapante, a campanha eleitoral e a postura do MDB então apontavam para uma mudança de qualidade de seu estofo político.

A oposição desmascarava a propaganda do chamado “milagre brasileiro” e ia além, conforme analisa Alessandra Carvalho em texto apresentado ao 27º Simpósio Nacional de História:

“Os instrumentos autoritários, ditos fundamentais pelos ideólogos da ditadura para assegurar o desenvolvimento do país, foram responsabilizados pelo aumento da desigualdade, ao impedirem a livre manifestação de sindicatos, associações de classe e dos políticos. Paralelo a esse ‘diagnóstico’ do contexto social em 1974, o MDB ofereceu um tratamento: as liberdades democráticas e o retorno ao Estado de direito, que permitiriam a organização e participação popular e, a partir daí, a reelaboração das políticas governamentais sob um caráter redistributivo. O verdadeiro desenvolvimento econômico, acoplado à ideia de igualdade/justiça social, só seria alcançado através do estabelecimento da democracia, que deveria, então, ser defendida por todos os trabalhadores, representados pelo MDB”.

Melar as eleições, contestar seus resultados e afirmar que houve ingerência externa e de organizações clandestinas no pleito, então, foi um dos jeitos que a ditadura encontrou para responder à derrota nas urnas.

Essa tentativa fica evidente no discurso de Armando Falcão em 30 de janeiro de 1975, quando ele fala do estouro das gráficas clandestinas do PCB, e também na nota oficial distribuída no dia seguinte pelo Ministério da Justiça.

Ainda que de forma tímida, os parlamentares da oposição reagiram à fala de Falcão procurando desmascarar os objetivos escondidos sob o manto do “combate ao comunismo”.

O deputado federal Laerte Vieira, líder da Minoria na Câmara, respondeu na lata: “É profundamente desagradável ou no mínimo bastante inoportuno que, nesta hora de reabertura do Congresso, se ponha em dúvida a legitimidade das últimas eleições e dos mandatos ali conquistados.”

Como se viu, a ação da ditadura continuou sendo “desagradável” e “inoportuna” por vários anos. Mesmo assim, e apesar de sua violência e dos muitos golpes que, na década seguinte, aplicou ao país, acabou por ser derrotada.

Minha corrida de hoje, oito quilômetros até a Casa Verde, mais um “abraço” no quarteirão da rua Gonçalves Figueira, número 80, é uma homenagem a todos os que tombaram no caminho.





CORRIDA POR MANOEL - oitavo dia

Destino: Rua Gonçaves Figueira, 80, percurso de 8,08 km completado em 59min42

Distância acumulada: 87,25 km