11.10.16

Cruzando São Paulo, corrida celebra luta do Comandante Jonas

Alguns de pura emoção, outros com certo temor, todos tremeram quando ela pediu para tomar em suas mãos a pá e mergulhou o instrumento no monte de areia à sua frente.

Apesar de um pouco trêmula pela idade, ainda em recuperação de males que a levaram a ficar dias sem conta em uma UTI, ela deixou de lado a bengala que lhe servia de apoio e partiu para a ação.


Foto Eleonora de Lucena

Se fez forte e, com as mãos que tinha, com o vigor adormecido de seus 85 anos, segurou a pá, mergulhou a ferramenta na terra, conseguiu trazer dali um montinho de areia, ergue a pá por centímetros e ainda teve forças para virar o instrumento, derrubando a terra.

Assim, com suas próprias mãos, de pé e sem que ninguém a apoiasse –braços protetores ficaram em seu redor, mas ela se mantinha erguida por si mesma--, contribuiu para o plantio de uma caramboleira no jardim Para Não Dizer que Não Falei das Flores, uma área muito especial no cemitério da Vila Formosa, na zona leste de São Paulo.

Ninguém conseguiu conter as lágrimas em meio a palmas para o vigor e exemplo de Ilda Martins da Silva, viúva de Virgílio Gomes da Silva, o Comandante Jonas, primeiro combatente da democracia desaparecido depois de passar pelas câmaras de tortura da Oban (Operação Bandeirantes), em 29 de setembro de 1969.

A cerimônia, no final da manhã de 9 de outubro último, marcou o encerramento de homenagens ao Comandante Jonas que vinham desde o início da manhã, começando com uma grande corrida pelos escaninhos da memória, estimulados pelas ruas de São Paulo.


Gregório, na extrema esquerda, e a turma de corredores presentes à Corrida pela Memória Virgílio Gomes da Silva

Pouco antes das sete horas, éramos nove os corredores reunidos nos altos da zona norte da cidade, no Jardim Elisa Maria, no início da rua Virgílio Gomes da Silva, a cerca de 27 quilômetros do cemitério de Vila Formosa.

Chamados por Gregório, filho caçula do Comandante Jonas, lá estavam seu irmão e sobrinhos, além de alguns integrantes do grupo Corredores Patriotas Contra o Golpe. Parentes e amigos que não enfrentariam o percurso também se reuniram no local para incentivar os corredores e apoiar nossa jornada cruzando São Paulo.

Todos celebrávamos a memória de um nordestino, sindicalista, líder democrata e guerrilheiro –representando a Ação Libertadora Nacional, organização liderada por Carlos Marighella, Virgílio foi um dos comandantes do sequestro do embaixador norte-americano no Brasil, em 1969, a mais espetacular ação da resistência armada à ditadura militar.  

A região, um distrito da Brasilândia, tem outras tantas ruas que homenageiam combatentes do povo e da democracia, no Brasil e no mundo –quem sai da Virgílio Gomes da Silva logo desemboca na rua Carlos Lamarca, que desemboca na rua Patrice Lumumba, chegando depois à Carlos Marighella, passando pela rua Olga Benário.


A saída, depois de leve descida, logo oferece aos corredores desafiadoras subidas até encontrarmos a artéria principal da região, a avenida Deputado Cantídio Sampaio –por ironia, um apoiador do golpe militar de 1964.

De lá tivemos belíssimas imagens do portento que é São Paulo, entronizada como Selva de Pedra pelas artes noveleiras. Uma imensidão de prédios que se estende até onde a vista alcança. 

Víamos os baixios da área central, pedaços da zona oeste, os altos da Paulista, as antenas de redes de TV, prédios que se tornaram marcos no perfil da cidade.


Cruzando a marginal do Tietê
Nem sentindo o cansaço, em oito quilômetros chegamos à ponte da Casa Verde, cruzamos sobre o rio Tietê, atingindo enfim uma zona mais plana, na área mais central da cidade.

Entramos pela Rudge, fazendo pedaços do percurso da tradicional corrida São Silvestre, passamos pela praça princesa Isabel, enveredamos pela Duque. Na esquina com a São João, o grupo de apoio nos esperava com bebidas e aplausos; havia também reforços na homenagem a Virgílio Gomes da Silva.

Naquela esquina, na Duque de Caxias com a avenida São João, aconteceu a prisão de Virgílio Gomes da Silva, cuja figura estava entalada na garganta da ditadura como um espinho malevo a cutucar a dor e a humilhar os poderosos –ele era o Comandante Jonas.

Nos tempos pós-ditadura, quando ficou moderninho ironizar o enfrentamento com a brutalidade instalada no país, Virgílio foi pintado como um nordestino grosso, rude, também ele quase grotescamente brutal. A caricatura saiu em filme inspirado em livro produzido por um ex-companheiro de jornada.

Coube a outro ex-companheiro de lutas, o jornalista Franklin Martins –que, representando o MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro), foi outro líder do sequestro do embaixador—fazer o desagravado do Comandante Jonas.

Era um homem valente e determinado, tranqüilo e atento, entusiasmado mas com os pés no chão. Nasceu no interior do Rio Grande do Norte e, como tantos nordestinos, migrou para São Paulo, onde tornou-se operário têxtil, ativista sindical e militante do Partido Comunista Brasileiro. Em 1962, durante um comício pelo 13°salário, foi ferido a bala. Em 1967, deixou o PCB junto com Carlos Marighella, fundando a Ação Libertadora Nacional. Fez treinamento de guerrilha em Cuba e, ao voltar, tornou-se um dos mais destacados chefes militares da ALN, tendo comandado dezenas de ações armadas.

“Ninguém é obrigado a considerar Jonas um herói pelo fato de ele ter pago por suas idéias e por sua militância um preço que poucos aceitariam pagar. Talvez ele fosse um homem mais rico interiormente do que admitem os preconceitos elitistas dos inventores do Jonas do filme. Ou talvez ele desse maior valor à liberdade e à dignidade que outras pessoas, e não fosse de regatear ou barganhar quando elas estavam em jogo. Nos tempos da luta armada, essa qualidade era chamada de “firmeza ideológica”. Hoje, com mais simplicidade, eu a chamaria de caráter. Jonas tinha caráter
.” (leia o texto de Franklin Martins CLICANDO AQUI).

O testemunho de Franklin foi repetido, com emoção transformada às vezes em choro incontido, pelo jornalista Antonio Carlos Fon, ex-militante da ALN, detido no mesmo dia 29 de setembro de 1969, ali no exato local em que fizemos nossa parada na Primeira Corrida Pela Memória Virgílio Gomes da Silva, em frente ao número 312 da avenida Duque de Caxias.



Antonio Carlos, o “Fonzinho”, um dos que nos receberam no local, nos fez um brevíssimo relato daqueles momentos terríveis:
Em 1969 nós morávamos aqui quando, no dia 29 de setembro, o apartamento nº 32 foi invadido pelos militares e policiais da Operação Bandeirantes e eu, meu pai e minha irmã Celeste fomos presos. 

"Algumas horas depois, o camarada Virgilio Gomes da Silva, o comandante Jonas, da Ação Libertadora Nacional, foi pego ao chegar a nossa casa. 

“Talvez eu só esteja vivo porque ele foi preso, já que foi para dar espaço para que fosse torturado que eu fui tirado do pau-de-arara. Ouvi seus gritos de “Vocês estão matando um brasileiro”, enquanto era massacrado até à morte. 

“Os militares nunca entregaram seu corpo, que se encontra desaparecido até hoje. Agora que os herdeiros do ódio e da exploração de classes, nacionais e estrangeiros, tentam de novo impor uma ditadura em nosso País, minha esperança é a de que Virgílio também tenha deixado herdeiros para enfrenta-los. 

Glória eterna ao Comandante Jonas!

Irmão de Fon, o advogado Aton também foi companheiro de militância de Virgílio. Para nós todos, leu um depoimento que lembra a vida do Comandante Jonas e a luta pela democracia, hoje cada vez mais necessária.



Eis o texto lido por Aton na primeira parada de nossa corrida, já então com cerca de 12 quilômetros percorridos:

Há quarenta e sete anos, nesta mesma calçada, desta mesma esquina que confronta as avenidas São João e Duque de Caxias, mãos enlameadas na traição à pátria e aos trabalhadores capturaram um brasileiro para a morte.

“Aqueles que, de nós, estamos hoje aqui, relembramos Virgílio Gomes da Silva – o Jonas – e sua jornada de vida e de lutas nos passos de seus filhos e nos passos de nosso Povo.

“Os mesmos passos que trouxeram Virgílio de Lagoa de Velhos, no Rio Grande do Norte, para unir seu destino ao do operariado paulista, do proletariado brasileiro. Nas fábricas do extremo da Zona Leste, na Nitroquímica; no Sindicato de seus trabalhadores e nas lutas dos comunistas, Virgílio conheceu que as necessidades de Lagoa de Velhos não diferiam das de Suzano ou de São Miguel, não diferiam das de todos os brasileiros.

“Os mesmos passos que o levaram ao comunismo, levaram Virgílio, quando chegou o tempo da Ditadura, quando chegou o tempo do terror, quando chegou o tempo do temor, ao Sul do Brasil e ao Uruguai, onde os caminhos potiguares se ligaram às veredas latino-americanas. Os passos de Virgílio se fizeram mais rápidos e se fizeram mais longos para cruzarem com os de Fidel e do Che. E, no latino-americanismo, se reconheceram internacionalistas e, por isso mesmo, ainda mais brasileiros.

“Nas armas de Marighella, Virgílio se fez Jonas e foi feito Comandante. Nos passos de Jonas, muitos de nós encontramos nossas rotas; nos passos de Jonas, muitos de nós – como Fleurizinho, Benetazzo, Mortati e Fogaça Balboni, entre eles – apostamos nossas vidas.

“E no dia 29 de setembro de 1969, as forças da ditadura, as forças do terror, as força do temor capturaram Jonas. E mataram um brasileiro.

“Estamos aqui hoje para recordar um brasileiro e reverenciar todos os que, como ele, souberam sê-lo. Numa homenagem que nasce nos passos dos filhos de Virgílio para encontrar os nossos, muitos já trôpegos, mas ainda embalados nos sonhos de Jonas.

“Os passos dos filhos de Virgílio nesta jornada de hoje nos recordam que os de Jonas marcaram nossas ruas, nosso futuro e nossas almas. 

“Agora, tantos brasileiros estão sendo chamados, uma vez mais, a enfrentar o tempo de lutar, o tempo de não temer. Mas, como há quarenta e sete anos, como os filhos de Virgílio, tantos mais filhos de Jonas estão brotando, brasileiros.

“Esses passos e essa homenagem recordam que ainda se pode lutar e morrer pelo Brasil, quando necessário. Porque aprendemos nos exemplos de combatentes como Jonas, que a alternativa da Pátria é a Vitória: Pátria Livre, Venceremos!.”

Acompanhando tudo em silêncio, também estava na celebração Celso Horta, o último a ver Virgílio com vida. Hoje jornalista, foi militante da ALN –com o Comandante Jonas e os irmãos Fon formava o GTA - Grupo Tático Armado.

Segundo me disse Gregório, Celso lembra que, na prisão, a polícia o colocou numa sala com Virgílio. “Ele conta que, numa sessão besta de pancadaria, perguntavam ao meu pai se o reconhecia. Claro não saiu uma palavra da boca dele. Celso ainda conta que, num determinado momento, os torturadores se ausentam da sala, e eles aproveitam pra manter um diálogo silente com o olhar.”

De coração apertado e mente aberta, os pensamentos voando pela situação que o país vive, de rompimento do estado de direito, de entreguismo e ameaça às liberdades democráticas e às mais elementares garantias constitucionais, seguimos em frente cruzando as ruas de São Paulo.



Beliscamos a São João com a Ipiranga, atravessamos o viaduto Santa Ifigênia, bordejamos o largo São bento, mergulhamos lomba abaixo na ladeira Porto Geral e irrompemos pela zona leste até encontrarmos a rua da Mooca, portal para a imensa região onde se localiza o imenso cemitério de Vila Formosa, maior de América Latina.

Na rua da Mooca, cruzamos sobre os trilhos que abraçam a região central e servem como espécie de muralha separando o centro da periferia leste; ao nosso lado, as ruínas da fábrica da Antártida, a primeira em que Virgílio trabalhou quando chegou a São Paulo, retirante.




Tinha então pouco mais de 20 anos –nasceu em Sítio Novo, RN, em 15 de agosto de 1933. Aos 24, entrou para a Nitroquímica, onde começou sua militância sindical e logo se tornou membro do Partido Comunista; foi também lá, durante uma greve da categoria, que ele conheceu a mulher de sua vida, Ilda, sindicalista.
Eles se casaram em 21 de maio de 1960. 

A noiva começou o casório fazendo uma concessão ao parceiro –como era mais alta que Virgilio, tirou os sapatos na hora da foto oficial da cerimônia. (Fiquei sabendo disso em conversas durante uma outra corrida, realizada no início deste ano e parte de meu projeto CORRIDA POR MANOEL; saiba mais CLICANDO AQUI).

Os dois tiveram quatro filhos. Três deles –Vladimir, então com oito anos,  Virgílio, 7, e a neneca Maria Isabel, com quatro meses—foram presos com a mãe, dias depois da prisão e assassinato do Comandante Jonas. Gregório, que organizou nossa jornada do último domingo, estava na época em outra cidade e escapou da violência naquele momento.

Ao site “Torre das Donzelas”, Ilda contou ter ficado presa por nove meses, dos quais quatro, incomunicável, sem saber o que tinham feito com seus filhos.

Diz o texto: “Primeiro, ficou detida na Operação Bandeirantes, depois no Dops paulista e, por último, no presídio Tiradentes, na ala conhecida como Torre das Donzelas. Depois de sair da prisão, Ilda fugiu do país com as crianças. Não havia notícias de Virgílio. Eles foram até Foz do Iguaçu, atravessaram a ponte a pé, tomaram o ônibus para Assunção, de lá para Córdoba, na Argentina, e de Córdoba para Santiago. O Chile de Salvador Allende foi a casa da família até 1972, quando Ilda e as crianças foram para Cuba. Lá, ela trabalhou como operária e Wladimir, Virgílio, Gregório e Maria Isabel se formaram em engenharia. Voltaram ao Brasil em 91.”

Os restos mortais de Virgílio nunca foram identificados. Pesquisas da Comissão da Verdade conseguiram, porém, determinar que ele e outro preso político desaparecido, Sérgio Roberto Correa, foram enterrados em vala comum no cemitério de Vila Formosa.

Por isso, no início deste ano, inauguraram o jardim memorial em que dona Ilda, agora com 85, esperava os corredores participantes da jornada em memória ao Comandante Jonas.



Chegamos em número maior ao que saímos. Por volta do quilômetro 20 de nosso trajeto, filhas de alguns corredores, netas do Comandante Jopnas, se somaram ao grupo.

Todos juntos cruzamos o portal do cemitério e fomos até o jardim Para Não Dizer Que Não falei das Flores.



Vestida com uma calça esportiva, a camiseta criada especialmente para a corrida, um cardigan rosa e um xale bem quentinho, dona Ilda estava sentada em uma cadeira dobrável, dessas de usar na praia.

Na hora das homenagens, porém, ergue-se sobranceira e soberana, caminhando com sua bengala até a roda que formamos, corredores, parentes e amigos, mais o pessoal do Serviço Funerário que tinha trabalhado na pesquisa e produção para a construção do jardim , que foi inaugurado no início deste ano.

Gregório, atuando como anfitrião do projeto, agradeceu as homenagens ao pai. Falaram ainda um ex-líder sindical dos Químicos, categoria a que Virgílio pertenceu, o vereador que propôs conceder ao Comandante Jonas o título de Cidadão Honorário de São Paulo (saiba mais CLICANDO AQUI). Até eu tive a honra de falar ali, representando os corredores e os projetos de corridas pela memória.

Quando tudo parecia terminado e já íamos nos encaminhar para o plantio da árvore de carambola, dona Ilda pediu a palavra. 

Com esforço, mas voz firme, fez um agradecimento àquela celebração da memória do marido perdido, nos emocionou e aqueceu o coração com sua bravura.

Como se isso fosse pouco, voltou a surpreender a todos instantes depois, quando sua foz rouca voltou a ser ouvida, quase imperial, pedindo a pá para também contribuir na plantação do sonho e da esperança.

Encerrado o plantio, a atriz Danielle Barros – também integrante dos Corredores Patriotas Contra o Golpe – fez a leitura de uma canção de Victor Heredia, que diz “ainda cantamos, ainda temos esperança” (ouça a música CLICANDO AQUI).


Foto Rodolfo Lucena

Ao final, enquanto nos dispersávamos, Ilda descansou um pouco, sentada ereta, firme e forte, num banco de cimento.


Sua imagem é um hino à vida.