11.3.16

Memorial da Resistência guarda marcas da dor e da grandeza dos presos na ditadura militar

Vivo e vermelho, um cravo está colocado em lugar de honra na cela quase nua. Sob iluminação especial, contrasta ainda mais com o cinza do conjunto, com a dureza das formas, com a frieza do ambiente.

Ali ficaram dezenas, centenas de presos políticos durante o período da ditadura militar. Muitos com corpos machucados, arrebentados por tortura, outros com a mente maltratada. Todos dispostos a ajudar um ao outro, lutar pela sobrevivência e liberdade.

No Natal de 1969, a militante da Ação Popular Elza Lobo, presa nas catacumbas do Departamento Estadual de Ordem Política e Social, pede que a família lhe traga flores, em uma das eventuais visitas.


Assim foi feito. Chegaram cravos vermelhos, que foram distribuídos aos outros presos e iluminaram as celas, como se trouxessem para o ambiente um cheiro de liberdade.

Hoje, o prédio do antigo Deops é um lugar de cultura e luta democrática –ali funcionam a Estação Pinacoteca e o Memorial da Resistência. Nas celas por onde passaram os combatentes da ditadura está registrada a memória de suas lutas; uma delas, a mais visitada, exibe o cravo vivo e vermelho.

“Aqui a solidariedade era muito forte. As pessoas sobreviveram por causa da solidariedade que havia no interior e também pela solidariedade de fora, nas passeatas e movimentos”, diz Kátia Neves, 50, que coordena o Memorial desde sua inauguração.

Ela foi minha convidada na caminhada pela história que fizemos hoje, 21ª etapa da CORRIDA POR MANOEL. Conosco também estava Maurice Politi, diretor do Núcleo Memória e um dos tantos que estiveram presos nas celas do Deops.

Foto Eleonora de Lucena


Partimos do histórico prédio projetado pelo escritório do arquiteto Ramos de Azevedo. Inaugurado em 1914, o edifício abrigou até 1938 os escritórios e armazéns da Companhia Estrada de Ferro Sorocabana. Depois de reformas, foi sede do Deops de 1940 a 1983, quando aquele órgão policial foi extinto. Foi tombado em 1999 e passou por um processo de restauração –o que não significa que as estruturas originais tenham sido preservadas.

Saímos em direção à avenida Tiradentes. Passamos pela magnífica Estação da Luz e, depois de costear o também maravilho prédio onde funciona a Pinacoteca, demos uma parada em um resto da memória paulista e brasileira.

Do presídio Tiradentes, onde estiveram presos Monteiro Lobato e a presidenta Dilma Rousseff, sobra apenas um pórtico.
Construído durante o Império, em 1852, ali foi de tudo: depósito de escravos, casa de correção, cadeia pública e cárcere político. O conjunto, que ocupava uma área de mais um quarteirão, foi demolido em 1973, depois de muitos protestos dos presos políticos sobre as barbaridades que lá se praticavam.
Maurice Politi foi testemunha de muitas delas.

Na nossa parada, ele conta que o prédio tinha dois andares. Ao rés do chão, ficavam as celas onde eram amontoados os presos comuns, os correcionais –“corrós”, na gira da cadeia. No superior, ficavam os presos políticos, que ali estavam para cumprir pena –as torturas, portanto, não eram corriqueiras.

Texto do programa Locais de Memória, produzido pela equipe do Memorial da Resistência, registra: “A detenção não significava propriamente o fim das atrocidades praticadas pelo aparato repressivo; o preso político poderia retornar aos interrogatórios seguidos de torturas, tanto no DOI-Codi quanto no DEOPS, como aconteceu com diversos militantes, entre eles Frei Tito, que posteriormente se suicidou, e a teatróloga Heleny Guariba, desaparecida política”.

Os presos comuns sofriam o diabo na mão dos carcereiros, conta Politi. Quando os guardas consideravam que alguém tinha abusado ou que havia muita confusão, tratavam de acalmar os ânimos torturando os detentos.

Havia no centro do pátio um antigo poço –ali, segundo as lendas, eram banhado os escravos que chegavam ao presídio, antes de serem colocados à venda.



Pois, no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, o poço era usado para diversão dos guardas e carcereiros. Jogavam ali, nus, os presos que queriam castigar. Quando a vítima conseguia voltar à tona, recebia porretadas na cabeça, era obrigada a mergulhar de novo, numa variante da tortura que os americanos chamam de “waterboarding” ou afogamento.

Vendo os maus tratos, os presos políticos abriam o berreiro. Gritos, bateção nas grades e, principalmente, denúncias que eram transmitidas para fora dos paredões do presídio. Mais tarde, também foi assim, por meio de denúncias, que desmascararam o Esquadrão da Morte: policiais que chegavam ao Tiradentes no meio da noite, pegavam um ou vários presos, e os levavam para a execução pura e simples.

“A investigação das mortes praticadas pelo Esquadrão foi possível devido ao trabalho do ex-preso político Guilherme Simões Gomes, dentista, que mantinha as fichas de atendimento dos presos; estas nem sempre correspondiam aos registros internos do presídio, o que viabilizou a instauração do processo contra o grupo”, segundo o texto produzido pelo Memorial.

Cruzando a avenida Tiradentes, nosso pequeno grupo seguiu pela área dos quartéis da Polícia Militar de São Paulo. Em poucos quarteirões, há várias unidades da PM, como o monumental edifício que abriga a Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, a Rota, tristemente famosa por sua violência e letalidade.

Passamos também pelo que resta de um prédio da antiga Usina de Força, atingido por bombardeios durante a Revolução de 1924, o maior conflito bélico da história de São Paulo. Sobra apenas uma mal cuidada chaminé, que guarda marcas dos tiros recebidos. Está suja e abandonada, tão esquecida quanto o movimento dos tenentes que ousaram enfrentar o governo federal naquela época.



Voltando, circulamos pelo belíssimo parque da Luz e chegamos novamente ao prédio do Memorial da Resistência. Na cela do cravo vermelho, conversei mais um pouco com Kátia, que é alagoana e mestre em museologia.

RODOLFO LUCENA – Para que serve o Memorial da Resistência?
KÁTIA NEVES - Ele dá mais concretude aos fatos. Quando um estudante, um menino de 16 ou 18 anos vem para o memorial, ele tem aqui fatos, contados por meio de fotografias e textos, e o protagonistas, o resistente, que conta uma parte da história para ele. Isso acaba aproximando, trazendo a história mais para o tempo presente.

A questão da ditadura ficou muito distante das pessoas. Há um professor que disse que os estudantes conhecem mais sobre a revolução francesa do que sobre a ditadura militar no Brasil. De fato, faz pouco tempo, três ou quatro anos, que houve uma mudança nos currículos e a história recente é mais bem trabalhada nas escolas.

Quando a gente implantou o Memorial, ninguém ainda tinha coragem de falar sobre o que aconteceu. Jornais, TVs vinham aqui, entrevistavam, depois não saía nada. As pessoas tinham medo de divulgar. Isso em 2009, quando a gente inaugurou.

O Memorial tem contribuído muito para isso, aproximar o passado do presente. A gente pega as questões do passado para discutir os problemas do presente.

A gente fala da tortura que acontecia na época da ditadura e fala da tortura que acontece hoje, nas delegacias e em outros locais. A gente trata de problemas como preconceito, a questão da terra, a repressão aos indígenas. A gente procura tratar de temas atuais.


Foto Divulgação


O Memorial está exatamente na área em que ficavam as celas do Deops?
Eram dez celas. Havia essas quatro, no primeiro bloco, que é onde nós estamos. Havia mais duas ali onde hoje está montada a linha de tempo [também dentro do prédio] e outras quatro fora, nos fundos do prédio.

Essas de fora eram solitárias, em que ficavam presas pessoas que tinham de ficar afastadas do grupo ou eram presos que tinham voltado da tortura e estavam muito machucados. Essas quatro foram destruídas ainda antes da reforma do prédio, deve ter sido por volta de 1995.

Essas quatro celas de fora, que não existem mais, foram também usadas para as mulheres. À medida que a repressão foi aumentando, também aumentou a prisão de mulheres, o que fez com que uma das celas aqui deste corpo central também fosse destinada a mulheres.

Quando foi feita a reforma, que começou em 1999 e terminou com a inauguração [do prédio] em 2002, a gente fez a reforma, aquelas duas celas , onde está hoje a linha do tempo, foram destruídas.

Neste espaço hoje há quatro celas, o corredor principal, que dá acesso às celas, e o corredor secundário, que dá acesso ao corredor para banho de sol.

Nem todo mundo foi tomar banho de sol ali. Teve gente que ficou cem dias e nunca saiu para o sol. E era importante sair, porque aqui havia uma média de 13 presos por cela, em celas de menos de 15 metros quadrados, não tinha espaço nenhum. Ir para o banho de sol era uma forma de o preso caminhar um pouco.

Quanto presos passaram por aqui durante a ditadura militar?
Não sabemos, não temos nem ideia de quantos ficaram presos aqui na ditadura. Nem toda a documentação foi totalmente trabalhada, porque é um volume imenso.

Muitos documentos foram destruídos. Tempos atrás um colega me entregou umas fichas de presos políticos que foram encontradas por um arquiteto, jogadas aí na rua não sei quantos anos atrás, provavelmente na década de 1990.

Além disso, houve uma determinada época, especialmente de 1969 a 1971, que estava todo mundo tão descontrolado, esses organismos de repressão, que eles pegavam, torturavam e já jogavam na rua sem nem fazer fichamento nem nada.

Então mesmo que a documentação não tivesse sido destruída, muitos presos não foram registrados, não houve documentação de muitos presos que passaram por aqui.

Aqui era um presídio? Havia tortura?
O prédio é usado desde 1940. Isso aqui não foi bem um presídio, era um lugar temporário. A pessoa ficava presa enquanto ia sendo interrogada, enquanto eram levantadas informações sobre ela. Era um local de transição.

Durante a ditadura, as pessoas eram presas pela Oban e trazidas para cá ou então presas diretamente pelo Deops (Departamento estadual de Ordem Pública e Social).

Aqui eles eram torturados. Os ex-presos dizem que as salas de tortura eram no terceiro e no quarto andares, não há um local muito preciso porque a gente não tem nenhuma memória do edifício –hoje lá é a Estação Pinacoteca.

Os presos eram torturados lá e trazidos por um elevador que era chamado de Expressinho, uma referência ao Expresso da Morte. Ele descia do andar em que havia as torturas até o térreo, de onde eram trazidas para cá, para as celas.

A tortura nunca acontecia nas celas aqui de baixo, aqui era onde as pessoas ficavam. Tinha gente que ficava três meses, outros ficavam 30 ou 40 dias, e aí eram mandados para outros presídios –Tiradentes, Barro Branco, Hipódromo, vários outros. Aqui era um espaço de transição.


CORRIDA POR MANOEL - 21ª etapa
Destino: região dos prédios históricos em torno do Memorial da Resistência, percurso de 4,58 km percorrido em 1h06min56


Distância total já percorrida: 213,66 km

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