22.8.17

Arte na favela, sapatos sem dono e homem dos panos em 20 km de rolê na Paulicéia sem chuva

“Ei, ei, ei, oi aí, ô Barba! Que tá fazendo? Tá tirando foto do quê?
A voz marrenta e não sem um tom de ameaça vinha de um rosto protegido por capuz de um casaco de moletom que um dia fora cor de vinho, agora amarronzado pelo tempo e a sujeira. O dono da voz era um sujeito magro, pelo que entrevi, e estava com um parceiro, mais forte, vestido com roupas escuras. Com as mãos na cintura, deram um ou dois passos em minha direção, mas pararam enquanto eu respondia.
Eu sabia que entrar na favela envolvia algum risco, ainda mais correndo, mas, quando vi, já estava lá no meião. Eu sabia que correr com o celular na mão era arriscado, mas tinha visto o que me parecia ser uma foto imperdível. Cem metros antes, eu não sabia que aquilo ali era uma favela. Nem que aquela podia ser minha última foto (não foi, claro, menos drama, por favor).
Corria pela rua na periferia paulista. Começara larga, mas fora se estreitando, assim como as frentes das casas, que antes tinham porta e janela, às vezes duas janelas, agora só uma portinhola. Rodando na calçada –seguir pela rua estreita seria suicídio, considerando a velocidade com que os carros chispavam por ali--, quase atropelei uma senhora que abria a porta do seu casebre (de alvenaria, mas caindo aos pedaços).
Tudo cinza, apertado, feio, fedido.
Por isso me entusiasmei quando vi, mais à frente, o que parecia um sobrado verde; na frente dele, um amarelo, cores no cinza, e ainda com roupas estendidas em varais, imagem clássica nas ruas italianas, aqui em São Paulo símbolo de apertume e pobreza. Mas com seu apelo visual.
Pensando na foto, já peguei o celular na mão, pensando em deixar a câmera preparada. Era só um clique e seguir, sem perder meu tempo de corrida: hoje eu estava correndo bastante, cumprindo blocos de 2.700 metros corridos por 30 metros de caminhada, uma combinação que não fazia havia muito tempo.
Então percebi que tinha entrado numa favela. Não há perigo, mas há. Do lado direito da rua, em frente a um barraco que fazia às vezes de bar, alguns homens estavam parados, conversando, olhando o movimento. Cachorros em volta deles, no meio da rua, à minha frente, por todo o lado.
Resolvi parar até o trote, pensando em seguir a passo pelo menos até deixar para trás a cachorrada, que talvez não estivesse acostumada com alguém correndo entre eles. Também decidi seguir com o celular em mãos, não tinha mais mesmo o que fazer àquela altura, mas decidi não tirar foto de nada, pelo menos não depois de passar a homarada.
Os caras me olharam de revesgueio, eu levantei o braço em cumprimento, nada, nenhum problema. Os cachorros me ignoraram solenemente.
Foi aí que eu vi aquela coisa sensacional, uma verdadeira obra de arte no coração da favela. Não havia opção, tinha de parar e fotografar o Mercadinho da Paz, que compensa seu espaço minguado colocando na rua mesas e banquetas para os convivas.

Elas é que são o máximo. Os banquinhos são suportados por estrutura em formato de violão, e as mesas são enormes pandeiros, também eles suportados por violões esculpidos com arte em madeira.
“Tô fotografando o bar, aqui!”, gritei de volta para a dupla que me inquiria e mostrei o cenário de pura arte na rua.
“Não vai fazer foto da favela!”, advertiu o voz marrenta vinda do capuz amarronzado. Não fizeram ameaça nem chegaram perto, mas não precisava.
“Sem problema”, disse eu, correndo na direção deles, que me avaliavam. “Eu corro por tudo e tiro fotos, não tem quaisquaisquais”, expliquei ao passar, imaginando que fossem me parar, querer ver as imagens, sei lá. Na favela todo mundo é trabalhador, mas também tem a turma que atua em serviços alternativos...
Ninguém falou nada, eu segui em frente, nem entrei no mercadinho para tentar descobrir o autor dos artísticos móveis. Melhor não. Alguém gritou na minha direção: “Vai, Bin Laden!” (é uma das coisas que ouço, assim como Rei Leão, Selvagem de Bornéu e outras tantas).  Ergui os braços, acenei os dedões em sinal de positivo e fui embora.
Quer dizer: imaginava que estava indo embora. A rua central da favela tem só dois quarteirões, e calculei que poderia atravessar o terreno e sair em local mais conhecido, de modo que pudesse seguir em frente e construir outro caminho menos conturbado.
Nananina. Caí numa rua sem saída, com cerca de ferro e muro. Não havia alternativa senão voltar pelo mesmo caminho, cruzar de novo pelos donos da favela. Será que eles iriam pensar que era provocação?
Cruzei pelos dois valentões de novo, mas nem deram bola, já entretidos com qualquer outra coisa. E eu já estava parça dos moradores. Um gordão, saindo de um barraco, saudou o exercício (“Bom para a saúde”, disse, ou qualquer coisa assim), eu o chamei para correr junto. Todo mundo de bom humor, alguma criança ao longe gritou “Papai Noel” para minhas barbas brancas, e as tensões se esfarelaram nas minhas passadas.

De volta às ruas cinzas, apertadas, movimentadas. Já tinha, àquela altura, percorrido quase doze quilômetros, estava feliz da vida com meu rolê no primeiro dia de estiagem depois de mais de uma semana de chuva fria, incessante, molhada, chatonilda na cidade de São Paulo.
Com todos os problemas que enfrentei neste ano, tombo no asfalto, dedo quebrado, costas coloridas, joelho esfubecado, articulações enferrujadas e inflamações várias, nunca tinha ficado tanto tempo sem correr como nestes últimos dez dias.
Comecei a ficar preocupado, até, porque preciso contabilizar quilômetros em penca para conseguir chegar ao final do ano cumprindo galhardamente distância total equivalente à de sessenta maratonas somadas –esse é o meu desafio e meu presente de aniversário neste ano em que completei sessenta anos e entrei oficialmente na velhice. Velho, corro como nunca corri na vida.
Com o frio e o vento e a chuva fria, manhã depois de manhã, tarde depois de tarde, fui tomando gosto pelas cobertas, o chocolate quente, maratonas diferentes, domésticas, assistindo a séries cinematográficas... Ao mesmo tempo, me atazanava: Será que, quando chegar a hora, vou saber correr de novo?
Pois olha, sei.
Me desentrevei daquelas ruelas e, num pedaço de concreto, vi perdidos, abandonados, um pé de sandália e um pé de tênis, engruvinhados, fazendo parzinho. Eram de criança, parecia, e agora estavam ali, abandonados, solitários, perdidos, um estranho casal no chão de São Paulo.

O tempo passava e os quilômetros também, já ia me cansando, mas ainda estava longe do caminho de volta e do retorno que eu queria, passando por uma figura que me parecera simpática, interessante, alguém com quem eu queria falar, queria que me contasse uma história.
“Sou o homem dos panos”, ele tinha me dito horas antes, quando eu desci para o outro lado da Marginal. Encostada numa árvore de canteiro de avenida, havia uma bicicleta, meio caída, meio apoiada, cercada de panos, papéis, sacos, sacolas. Imagem curiosa, me pareceu, e fotografei na corrida, imaginando que talvez o dono não gostasse...


Era o senhor Vantuir, que respondeu a meu “bom dia!” perguntando qual que era a história, e eu expliquei “nada não, corro por aí e faço fotos”. “Beleza!”, ele disse, e eu fui me embora.
Mas achava que ele tinha mais a me contar, falar do trabalho dele. E voltei pelo mesmo caminho para tentar uma entrevista com ele. “Outro dia”, prometeu, mas não se furtou a conversar rapidinho, falando do seu trabalho e resumindo a crise de nosso país:
“É tipo vender o almoço para pagar a janta.”

Dei adeus e vim me embora, agora sim, quase embicando no caminho das pedras, rumo de volta à casa. Não sem antes testemunhar mais um dos perrengues diários de nossa cidade, abandona pela prefeitura: semáforos fora do ar, piscando direto no amarelo. Ainda bem que agentes da CET já tinham chegado para controlar o tráfego, se não ia ser mais complicado fazer a travessia.


Na subida da Sumaré, cansei. Em vez de 300 metros caminhando, caminhei um quilômetro inteiro. Mas depois voltei a correr. Quando dei de conta, meu rolezinho no primeiro dia de estiagem chegava a vinte quilômetros.
Faço mais um para completar meia maratona, só para cantar marra?
Não, deixa prá lá. Amanhã tem mais.

VAMO QUE VAMO!!!


Percurso do dia 22 de agosto de 2017
20,11 quilômetros percorridos em 2h53min25

Acumulado no projeto 60M60A
1.807,56 quilômetros percorridos em 318h09min33



15.8.17

Combate a “pipocas” é responsabilidade das organizadoras de corrida

Empresas organizadoras de corridas estão na ofensiva contra a participação de atletas não inscritos (e não pagantes), os chamados “pipocas”, nos eventos de rua. Nesse esforço, buscam apoio dos corredores pagantes, como se fossem todos –organizadores e corredores—da mesma turma, do mesmo time, contra os corredores ditos “bandidos”.
Por volta da última São Silvestre, a realizadora da prova chamou uma reunião com jornalistas, blogueiros e outros “formadores de opinião” para discutir a questão. 
Queria, segundo o convite que recebi e não aceitei, "buscar caminhos para uma campanha que visa diminuir esse péssimo hábito que vai contra a proposta de cidadania e respeito para com o próximo".
Mais recentemente, um evento plantou cartazes ao longo do percurso da prova conclamando os participantes a dizerem “não” aos “pipocas” nas corridas. Criaram até uma hashtag, #diganãoaospipocas.
É claro, óbvio, evidente e cristalino que participar sem pagar de um evento pago é errado, irregular e talvez até configure algum tipo de infração passível de punição legal. Não se entra no cinema sem pagar, não se vai ao futebol sem comprar ingresso, festas e bares exigem pagamento de quem deseja participar; com as corridas de rua é a mesma coisa.
Por outro lado, nenhum dono ou administrador de clube fica pedindo a seus clientes que fiscalizem o vizinho de poltrona, verifiquem se ele pagou ingresso e se tem o comprovante do pagamento.
É claro, óbvio, evidente e cristalino que essa fiscalização é responsabilidade exclusiva do dono ou administrador do evento, que precisa (ou deveria) garantir a seus clientes pagantes as melhores condições possíveis de participar do evento.
Algumas empresas organizadoras de corrida parecem não querer assumir essa responsabilidade, pedindo a seus clientes que exerçam funções de bedel de corredor. Conclamam seus amigos da imprensa e de blogs para lhes darem conselhos, numa parceria espúria –afinal, a imprensa deveria guardar prudente e crítica distância daquilo que cobre.
Fazem isso depois de, não poucas vezes, terem colocado nas costas dos “pipocas” a responsabilidade por falhas no serviço que deveriam oferecer. Faltou água? Culpa do “pipoca”. Houve engarrafamento? Culpa do “pipoca”. E assim por diante.
Ao mesmo tempo, não poucas organizadoras de provas se gabam da quantidade de atletas que participam de seus eventos; provavelmente (com certeza, mas escrevo provavelmente para dar a elas o benefício da dúvida), esgrimem essa quantidade nas negociações de contratos com patrocinadores, apoiadores e divulgadores. Quantidade que é anabolizada, não raro, pela presença dos tais “pipocas” --neste caso, eles prestam um serviço à organizadora da prova.
Na minha experiência como participante de corridas de rua, a falta de água a intervalos adequados (ou, pelo menos, nos locais prometidos pela organizadora) é o mais grave problema que a gente enfrenta. E é a falha que mais amiudemente é vinculada à presença de corredores não inscritos.
Isso é uma questão que deve ser tratada pela empresa que organiza a corrida. Ela é responsável por garantir a seus clientes pagantes —nós—condições adequadas e saudáveis de participação.
Como ela vai cumprir sua função é problema dela. Nós, corredores pagantes, cumprimos com nossas obrigações. Ela deve fazer a parte dela sem vir com desculpinhas disso aqui ou daquilo lá, que organizar provas é muito complicado ou muito caro, que ela não tem lucro ou que os “pipocas” pipocaram em excesso.
Nós somos clientes –não parceiros nem amiguinhos nem coleguinhas-- e devemos ser tratados –bem tratados-- como clientes. Isso inclui não ter de ouvir chorumelas sobre as dificuldades vividas pela empresa para montar com carinho uma prova bacana para a turma se divertir e outras patacoadas que algumas organizadoras falam por aí. Se não fosse para ganhar dinheiro, para ter lucro, essas empresas não estariam organizando corridas.
Se fosse uma ação entre amigos, seria diferente. Mas não me parece que corridas que reúnem alguns milhares de participantes e cobrem algumas centenas de reais pela inscrição sejam ação entre amigos.
Aliás, falando da cobrança, surgiu outra prática que, se não for ilegal, com certeza atenta contra o espírito da lei que instituiu a meia entrada para os maiores de sessenta anos.
As provas definem um preço de inscrição lá nas alturas, R$ 240 para uma meia maratona, por exemplo. Esse é o preço oficial, o preço “cheio”, mas a organização dá descontos conforme o período da compra. Quanto mais antecipada a inscrição, mais barato é.
Isso é uma prática normal, aqui e no exterior. É uma maneira de a organização fazer frente a gastos e ganhar melhores condições para planejar o evento. Os descontos são tão atraentes que –imagino—algumas provas ficam lotadas antes de chegar o período de cobrança do preço cheio.
O que não me parece normal é que os velhinhos não merecem essa atenção e gentileza da prova. Pagam meia, sim, mas em relação ao valor “oficial”, mesmo que façam sua inscrição dois ou três meses antes da corrida.
Não sou advogado e, como disse antes, pode ser que essa prática seja absolutamente legal; mas também é absolutamente contrária ao espírito da lei de desconto, que objetiva dar aos mais velhos melhores condições de participação nas diversas atividades sociais.
No cinema, por exemplo, esse espírito é respeitado. Vários circuitos exibidores cobram ingresso mais barato em um dia da semana, segunda ou terça é o mais comum, e o preço pago pelos maiores de sessenta anos é a metade do preço do ingresso do dia. Isso acontece mesmo em sessões em que o valor do ingresso é subsidiado.

Enfim, o que eu tenho a dizer é que, como corredor e como cliente de organizadoras de corridas de rua, espero que essas empresas cumpram seu dever e assumam suas responsabilidades sem jogar em terceiros culpa por suas eventuais falhas nem pedir que o corredor vire polícia de seus colegas corredores. E espero que essas empresas respeitem os direitos de todo os corredores, inclusive os atletas mais velhos.

8.8.17

Na costa da Normandia, corrida celebra libertação do nazismo

Aos dezesseis minutos do dia seis de junho de 1944, cento e oitenta e um homens do Sexto Batalhão Aerotransportado da Grã-Bretanha aterrissaram a cinquenta metros de uma ponte levadiça sobre o canal de Caen, na Normandia. Sua missão era tomar a passagem, guardada por tropas germânicas, e impedir que os nazistas explodissem a travessia. Em dez minutos, com apenas duas baixas, conseguiram seu objetivo. Estava aberto o caminho para a invasão da França pelas forças aliadas, para a libertação do povo francês do jugo de Hitler.
Meia hora antes das oito da manhã de 11 de junho de 2017, mais de quatro mil homens e mulheres se concentram nos arredores de uma ponte levadiça sobre o canal de Caen, na Normandia. Sua missão é correr vinte e um quilômetros que os separam do centro de Caen e, no percurso, festejar a liberdade.
Somos todos, naquela hora, “courants de la liberte”, corredores da liberdade, nome do conjunto de provas que, no início de cada mês de junho, celebra com suor e festa a epopeia que culminou com a derrota do nazismo (pelo menos, no século passado, pois viúvas de Hitler continuam aparecendo a toda hora, como assombrações, mesmo em meio à modernidade deste novo milênio).


Aguardamos, sob um sol mais forte do que seria de esperar para esses dias ainda primaveris, o chamado para a largada. Eu caminho de um lado para outro, descubro numa rua lateral do Museu da Ponte Pégaso, fechado ainda naquela hora. Que pena.
Caminhamos, os corredores indóceis, por trilhas de terra e grama às margens do canal. O sol incendeia a ponte de metal, enorme estrutura basculante (no sul, a gente chama de ponte levadiça) instalada em 1994 em substituição à estrutura original, que repousa, cuidada e protegida, nos jardins do museu.
Os alto-falantes trombeteiam o chamado aos corredores. Termina a sessão de ginástica aeróbica, impulsionada por som bate-estaca, que funcionou como aquecimento (e precisa??). Somos chamados a tomar posição nas imediações da ponte, aguardando à largada, que é quase-quase pontual.
Soa a corneta, quase um brado militar, e não podemos fazer mais do que caminhar naquele estreito caminho, por maior que seja nosso entusiasmo cívico e desejo atlético. Há que passar pela ponte, cruzar pelos mesmos caminhos que, há mais de 70 anos, foram trilhados pelos exércitos que levavam à Europa os ventos da democracia.
Instalada em 1934, a ponte sobre o canal não tinha nome; era chamada de ponte de Bénouville por causa da cidade próxima, mas não tinha de verdade uma identidade própria. Depois da passagem das tropas aliadas, foi solenemente batizada de ponte Pégaso, homenagem aos paraquedistas de 1944, que traziam como insígnia em seus uniformes a imagem do cavalo alado, figura heroica da mitologia grega.
Grande parte dos corredores, imagino eu, nem se dá conta das brumas da história que estamos a cruzar. Logo depois da ponte, do lado esquerdo, há uma casa antiga, um sobrado pintado em vermelho e branco onde hoje funciona um café e restaurante.
À frente dele, um grande painel de madeira informa: “Esta foi a primeira casa da França liberada pelo Sexto Batalhão Aerotransportado na noite de cinco para seis de junho de 1944”.


Beleza, não há mais espaço para elucubrações históricas nem pensamentos libertários nem reflexões antinazistas. Há que correr.
O percurso é fácil, aparentemente. Uma sucessão de leves subidas e descidas, curvas para lá e cá, cruzando primeiramente por estreitas ruas do povoado de Bénouville. Fraco que sou sob o calor, fujo do meio da rua, corro pela calçada sempre que dá, tentando buscar abrigo à sombra das casas e muros.
Vamos passar ainda por mais meia dúzia de comunidades rurais da Normandia antes de chegar a Caen, epicentro desse festival de corridas que vem rolando desde o dia anterior, quando mais de vinte mil mulheres e meninas, quase todas vestidas de rosa e muitas exibindo fantasias ou pinturas exóticas, participaram da corrida festiva La Rochambelle, prova benemerente de cinco quilômetros, que arrecada fundos para investir no combate ao câncer de mama.
O nome da prova também tem razões históricas: Rochambelles foi como ficaram conhecidas as enfermeiras e motoristas de ambulância da Segunda Divisão Blindada, um dos efetivos que contribuíram decisivamente para a libertação da França na Segunda Guerra.
Além da corrida festiva, realizada na véspera, o festival de provas tem como evento principal a Maratona da Liberdade. A largada é Courseulles-sur-Mer, em cujas praias desembarcaram mais de catorze mil soldados canadenses do Dia D –nos meses seguintes, o número de combatentes canadenses enviadas para o front europeu passaria de 15 mil.
Como, a esta altura do ano, não tenho forças nem treinamento para enfrentar uma maratona, optei por seguir na Pegasus, a meia maratona. Foi a minha terceira em três fins de semana seguidos, uma espécie de teste de resistência nesta minha caminhada de sexagenário, em que festejo meus sessenta anos tentando percorrer, ao longo deste 2017, distância equivalente à de sessenta maratonas.
Sem pular semana, saio sempre para correr ou caminhar, fazendo treinos solitários de duração e distância suficientes para me manter vivo neste desafio. De vez em quando, há que sair do ramerrão das ruas paulistanas. É quando busco corridas inspiradoras como o festival de provas Les Courants de La Liberté.
Foi uma boa escolha. Enquanto sigo pelo caminho da Pégaso,minha querida Eleonora corre a prova de dez quilômetros que, se não tem nome evocativo da guerra, teve largada em frente ao Memorial de Caen, que relembra as agruras, a torpeza e o heroísmo dessa cidade durante o período de submissão e de enfrentamento a Hitler.

É em Caen que terminarão todas as provas do dia 11, a maratona e a meia mais os dez quilômetros. Passaremos todos pelo dito Memorial e também teremos vista para o Castelo de Caen, testemunha da história milenar da cidade, que hoje é quase um grande albergue estudantil: tem pouco mais de 109 mil habitantes e mais de 30 mil estudantes. Também tem importância comercial: seu porto é décimo mais movimentado país.
O castelo, imponente, instalado em uma colina em área de mais de cinco hectares, foi construído em 1060 por William, o Conquistador. Àquela altura, Caen já era a cidade mais importante da região: desde 912 tinha o status de capital da Normandia. E o tal William levava aquele apelido não porque fosse um don Juan, mas porque era um grande guerreiro: chegou a conquistar a Inglaterra, que fica ali pertinho, do outro lado do canal da Mancha.
Antes de chegarmos à cidade, porém, os meio-maratonistas passamos por campos sem fim. Fico curioso para saber que cultivo é aquele, que parece uma horta imensa –aqui pelo Brasil, as hortas que conheço são pequenas, não há ou não lembro de ter conhecido, por exemplo, milhares e milhares de alqueires forrados de alface. Pois lá a plantação a perder de vista era de beterraba.


Havia também milho e grandes parreirais, mas o campo verdejando que mais me impressionou, mesmo, foi o de beterrabas –não reconheci a planta, tive de perguntar para um sujeito que, da beira da estrada, aplaudia e incentivava os corredores.
Eu sempre agradecia o incentivo, uma razão a mais para manter elevado o ânimo e reunir forças para seguir até a chegada, mesmo que o corpo reclamasse descanso, sombra e água fresca.
É que, além das corridas em sequência, eu fizera também aventuras turísticas envolvendo caminhadas, subidas em montanhas e escadarias sem fio, tudo nos dias anteriores àquela bendita corrida libertado.
Era o que podia fazer e o que devia fazer para  aproveitar o tempo, a partir de minha base em Caen, que, do ponto de vista geográfico, funciona como uma espécie de pivô, portal de entrada para a visita às praias da Normandia de importância histórica e fartas belezas naturais.


Três dias antes, por exemplo, Eleonora e eu rodamos quase duzentos quilômetros para chegar até o monte Saint-Michel, uma antiga abadia construída sobre um rochedo que fica ilhado quando a maré sobe. Tem algo de poético, selvagemente belo, mas também fantasmagórico.
Os monges de antanho sabiam se cuidar...
Além da beleza e da surpreendente formação geológica, chama a atenção a estrutura montada para que os turistas aproveitem seu tempo da melhor forma possível, sem muita confusão –bem imagino que, na alta tempora, a muvuca seja inevitável, mas os caras se esforçam para facilitar a vida do povo.
Há um batalhão de enormes estacionamentos públicos, pagos. A gente deixa o carro no local, pega um tíquete, e sai a pé até uma central de ônibus, estes gratuitos, que levam o turista até o sopé do monte, a poucas dezenas de metros da entrada da abadia. Quem quiser pode pegar uns bondes puxados por cavalo, mas daí já vira passeio, não transporte público, e é cobrado.


Claro que também dá para ir a pé ou correndo –vi, no caminho para lá, alguns grupos de corredores se reunindo em cidadezinhas próximas para um treininho até St Michel. Todos precisam tomar muito cuidado na caminhada até o mosteiro, usando apenas os caminhos marcados ou, no máximo, os terrenos próximos –no ao redor existem pontos de areais movediças, sorvedouros de gentes e bichos, segundo histórias que vêm de geração em geração.


Outro passeio bacana vai para o lado oposto da costa normanda, subindo para nordeste para chegar até as falésias de Etretat. Para mim, subir aquelas montanhas e me admirar com os paredões sobre o mar foi a parte mais bacana e o passeio mais prazeroso nesses dias de pré-prova.


Além das maravilhas geológicas, do mar que canta e dança nos seixos da praia, Etretat me atraiu também por ter sido lar, no século dezenove, de um de meus ídolos literários, Guy de Maupassant, que levou o conto à alta literatura.
Pois foi o tal Guy, dizem os fofoqueiros de plantão e marqueteiros da cidade, que batizou de Tromba do Elefante um dos rochedos que se destacam dos paredões de pedra sobre o mar de Etretat. De fato, se o turista olhar com carinho vai conseguir imaginar um imenso paquiderme se banhando no oceano plácido.



Entre Courseulles-sur-Mer e Etretat –e mesmo mais para nordeste, até Dunquerque--, há muitas praias que serviram de ponto de desembarque para as tropas aliadas e foram campo de sangrentas batalhas: a prova está nos cemitérios que também pontuam o litoral normando. 
O cemitério das tropas norte-americanas, por exemplo, é uma obra arquitetônica que impressiona, deprime e anima o visitante, tudo a um só tempo, numa mesma emoção.

Por sua estratégica posição, a Normandia sempre foi terreno de combate. Neste 2017, ainda bem, a refrega se dá apenas entre nossos corpos, esqueletos, gordura e músculos de corredores que têm como adversários a distância, o asfalto, os morrinhos e as descidas, o sol  e o vento, a própria vontade e disciplina.
No fim, somos todos vencedores. Campeões da liberdade, herdeiros de heróis que entregaram suas vidas para combater o nazismo. É bom que nos lembremos sempre disso e corramos pensando em honrar o passado da humanidade, especialmente nestes tempos em que o heroísmo, a generosidade e o próprio sentimento humanitário parecem esquecidos, submetidos hoje não à vontade de um guerreiro louco, mas à ditadura do dinheiro, à força do capital que viaja pelo mundo transformando homens em escravos.
Mais uma vez –e sempre- é preciso correr, caminhar e erguer a voz pela liberdade.
VAMO QUE VAMO!!!


MEIA MARATONA PÉGASO – LES COURANT DE LA LIBERTÉ
Percurso de 21,27 quilômetros realizado em 2h33min17 no dia 11 de junho de 2017.