26.4.17

Caminhada com Vitória, 8, alegre guerreira na luta contra o câncer

Meu avô Ary morreu de câncer quando eu tinha onze anos. Devo tê-lo visto saudável, em algum momento, mas essa não é a memória que ficou comigo.
Primeiro neto, parceiro da torcida apaixonada pelo Grêmio e de longas conversar sobre a vida e sobre as galinhas, perus e faisões que ele criava no pátio, me lembro do rosto de meu avô destruído pela doença, um buraco no lugar do nariz, as bochechas em chagas, as mandíbula massacradas, um dente teimoso em aparecer sobre o que restava dos lábios, a voz transformada em série de sons guturais, os únicos ainda possíveis depois da traqueostomia.
O primeiro filho de meu avô, Joaquim, meu pai, também teve câncer. Dois, ambos depois de ele completar setenta anos. Enfrentou, combateu, tratou o que podia ser tratado, operou o que devia ser operado e derrotou os dois. Hoje, com mais de 87 anos, meu pai ainda gosta de ler e declamar versos de “Os Lusíadas”, maior poema épico de todos os tempos, exaltação de combates e de amor, de desbravamentos e de bravuras.
O câncer é uma doença perversa. Assassino cruel, mata a vítima, destrói as economias da família, joga os parentes na depressão. Mas não é imbatível. Pode ser combatido e derrotado.
Essa foi a mensagem que li, vi e ouvi mais uma vez ontem, no sorriso, na alegria e nas palavras da pequena Vitória, uma garotinha de oito anos que passou mais da metade de sua vida enfrentando cirurgias e tratamentos complexos para combater um tipo raro de câncer. A doença atacou quando a menina tinha pouco mais de um ano –os prenúncios foram notados aos oito meses.
Encontrei Vitória na brinquedoteca do prédio do Graacc –Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer.
A instituição é um dos baluartes no combate ao câncer em crianças: no ano passado, por exemplo, realizou mais de 30 mil consultas, 1.900 procedimentos cirúrgicos, mais de 50 transplantes de medula óssea e mais de 19 mil sessões de quimioterapia.

Roteiro do "abraço corrido" ao Graacc

O hospital recebe, em média, mais de 300 novos pacientes com câncer de alta complexidade por ano, com chance média de cura de 70%.
Um dos pacientes vitoriosos foi Vitória, que há três anos já não tem sinais da doença. Agora, ela visita o Graacc a cada seis meses para uma consulta de acompanhamento; a cada vez, ela é um raio de alegria no prédio de onze andares na Vila Mariana, pertinho do parque do Ibirapuera.
Vitória, que partiocipou de "abraço corrido" ao Graacc, posa em frente a foto sua durante o período de tratamento

Alegria que ela mantinha mesmo quando estava no auge do tratamento e tinha perdido toda a bela cabeleira. Talvez por seu jeitinho de guerreira do sorriso, foi escolhida na época como uma espécie de garota-propaganda do combate ao câncer.
Sua foto, em proporções colossais, é uma das que tomam conta de uma parede no bazar do Graacc, para que todo mundo que passa pela rua Pedro de Toledo possa ver a determinação no olhar das crianças, para que eles sirvam de exemplo e mostrem que, sim, é possível enfrentar e derrotar o câncer.
Foi a própria Vitória Cristine F. Almeida que chamou a minha atenção para a foto. Nós fazíamos um “abraço corrido” ao Graacc, caminhando juntos, ela, seu pai –Ailton— e eu pelo quarteirão onde ficam as instalações da instituição.


De vez em quando, Vitória não se continha, saía em corrida cheia de pequenos saltos. Eu seguia atrás e chegamos mesmo a disputar carreira em uma das faces do quarteirão.
Dava gosto ver sua disposição, assim como seu desembaraço –que ficou um pouco contido na hora em que liguei a câmera para fazer uma entrevista com pai e filha –abaixo, um trechinho de nossa conversa, que foi transmitida ao vivo pela internet (você pode assistir à integra da entrevista CLICANDO AQUI).




O fato de haver sucesso no combate ao mal não significa que ele esteja menor.
transplantes de medula óssea e mais de 19 mil sessões de quimioterapia. Assim como ocorre em países desenvolvidos, no Brasil o câncer já representa a primeira causa de morte por doença (8% do total) entre crianças e adolescentes de 1 a 19 anos.
As estimativas do Instituto Nacional do Câncer são de que devem surgir neste ano 12.600 novos casos de câncer em crianças –a estimativa de novas casos de câncer em adultos é de 600 mil por ano.
Por isso, nunca é demais falar da importância de entidades como o Graacc, que funciona “de portas abertas” –expressão usada no mundo médico para indicar que acolhe e trata quem precisar, tanto pacientes com convênio médico quanto doentes sem esse recurso.
A instituição atendeu no ano passado 3.449 pacientes –390 casos novos--, com um orçamento sustentado basicamente por doações de pessoas físicas. Há, claro, grandes empresas e pessoas de muitas posses que apoiam, mas o grosso dos recursos vem de milhares de pequenas doações e de campanhas de arrecadação de fundos.
Uma delas, já tradicional em São Paulo, é a Corrida e Caminhada do Graacc, que chega neste ano à décima sétima edição. Com o mote “Corrida dos Sonhos”, vai acontecer no dia 14 de maio –as inscrições estão abertas; saiba tudo sobre a prova CLICANDOAQUI.
Amigos e apoiadores do hospital participam da prova, que também recebe participações muito especiais de ex-pacientes, que vão ao asfalto comemorar sua vitória e servir de inspiração de alegria guerreira.
É o que faz, por exemplo, a pequena Beatriz Kubo, de sete anos, que  participou da corrida no ano passado e promete voltar à linha de largada neste ano.



Bia, que conheci ontem no finzinho de minha visita ao Graacc, foi diagnosticada com leucemia aos quatro anos. Durante dois anos ficou em tratamento no hospital, onde também cursou a escola móvel.
Os métodos disponíveis para o tratamento do câncer em criança possibilitam um alto índice de cura –cerca de 70%, como informa o Graacc. Para manter e ampliar essa taxa é fundamental haver diagnóstico precoce.
A instituição aponta sinais e sintomas da doença:
- dores de cabeça pela manhã e vômito;
- caroços no pescoço, nas axilas e na virilha, ínguas que não resolvem;
- dores nas pernas  que não passam e atrapalham as atividades das crianças;
- manchas arroxeadas na pele, como hematomas ou pintinhas vermelhas;
- aumento de tamanho de barriga;
- brilho branco em um ou nos dois olhos quando a criança sai em fotografias com flash.
O Graacc alerta: “Muitos desses sintomas são semelhantes aos de várias doenças infantis comuns, mas, se eles não desaparecerem em um prazo de sete a dez dias, volte ao médico e insista para obter um diagnóstico mais detalhado com exames laboratoriais ou radiológicos”.
Com o diagnóstico precoce, mesmo tipos de câncer raros e muito agressivos, como o que atingiu a minha amiguinha Vitória, podem ser combatidos com sucesso.
Ela, agora, volta ao Graacc apenas para consultas de rotina. Está estudando, gosta de brincar e praticar esportes. Esbelta, forte e flexível, pretende conseguir uma vaga na natação do centro olímpico. Tomara que consiga: quem sabe Vitória não vira uma atleta...

VAMO QUE VAMO!!!



Percurso de 26 de abril de 2017
5,65 km percorridos em 1h04min49

Acumulado no projeto 60M60A
948,85 km percorridos em 171h23min10






24.4.17

A verdade verdadeira sobre o recorde feminino da maratona que não é a melhor marca de uma mulher na maratona

Começo alinhando os fatos, apenas para garantir que você esteja absolutamente bem informado e, dessa forma, capaz de assimilar as explicações que virão logo a seguir.
Neste último domingo, a queniana Mary Keitany, uma das grandes estrelas internacionais do mundo da longa distância, venceu a maratona de Londres com o espetacular tempo de 2h17min01.
Eu abdiquei de minha assinatura da TV paga (nem sequer tenho mais aparelho de televisão funcionando em casa) e também não acordei cedo o suficiente para acompanhar ao vivo a transmissão internética da prova, mas, ao ler os comentários sobre a cobertura, vi logo a imensidão da confusão que alguns comentaristas devem ter feito, deixando o público ainda mais confuso do que eles próprios.
Alguns ficaram falando de recorde mundial, outros de recorde mundial de mulheres (como se não fosse a mesma coisa). Eu não sei se isso aconteceu, mas vamos admitir que tenha havido até quem falasse de recorde mundial feminino em prova exclusivamente feminina (sem homens marcando ritmo para as mulheres).
Pois, bingo! Foi isso mesmo o que aconteceu.


O recorde mundial da maratona feminina continua firme e forte, intocável como sempre esteve desde 2003 –talvez não continue assim por muito tempo, mas isso é coisa para o futuro, quem viver verá.
Esse recorde, estabelecido por Paula Radcliffe na maratona de Londres, foi conquistado em competição em que homens e mulheres largaram juntos, e as mulheres puderam ter homens fazendo a marcação de ritmo.
Supostamente isso dá uma vantagem competitiva.  Ou verdadeiramente, sei lá, não conheço provas científicas demonstrando a diferença, mas a comunidade que comanda as corridas de rua no mundo diz que é assim.
Tanto que, há alguns anos, os cartolas da IAAF (a Fifa do atletismo), decidiram eliminar o registro dessa marca, que não seria pura o suficiente para os padrões das vestais do esporte limpo de Genebra.
A britânica Paula Radcliffe, apoiada pela sua patrocinadora e por seus fãs no mundo inteiro, fez a maior campanha contra a decisão e acabou conseguindo que a IAAF voltasse atrás –o que eu acho muito certo, se você quer saber minha opinião.
Para não dar totalmente o braço a torcer, a IAAF então criou duas marcas. O recorde mundial propriamente dito, a já citada marca da britânica Paula Radcliffe em 2003, que ganhou uma observação ao lado. Não o popular asterisco, mas um “Mx”, de mixed race, corrida mista.
E passou a considerar uma segunda melhor marca do mundo, essa obtida em corrida exclusivamente feminina, que também ganhou numa observação ao lado do tempo: “Wo”, de Women`s only, apenas mulheres.
Até o último domingo, essa marca TAMBÉM era da Paula Radcliffe, que em 2002 venceu a maratona de Chicago em 2h17min18, limando quase um minuto e meio da marca anterior, que era de uma das mais elegantes e simpáticas corredoras da história, a queniana Catherine Ndereba.


Agora, uma queniana volta ao topo dessa lista, como você pode ver pelos registros oficiais no site da IAAF, que mostram a Paula Radcliffe até agora imbatível, com sua marca obtida em prova mista. E, logo a seguir, Mary Keitany com a marca do domingo último, em prova apenas de mulheres.
Que fique claro, porém, que esses são dados extraoficiais, ainda que já registrados pela IAAF. A cartolagem ainda leva um tempo até homologar o recorde; ter os resultados dos exames antidopagem é uma das providências prévias à homologação.
Bueno, dito isso, vamos à prova, em que Mary Keitany simplesmente arrasou. Muitos especialistas, aliás, dizem que ela arrasou demais, cometendo muitos erros, que lhe custaram não conseguir o recorde mundial absoluto. Pode até ser verdade, mas como saber? Como já disse alguém, o general “Se” morreu na guerra.
Trabalhemos, pois, com os fatos. Os números.
Eles são assombrosos. O resumo da ópera é o seguinte: Mary passou pelo quilômetro 30 com mais de um minuto de vantagem sobre a passagem de Paula Radcliffe quando a britânica cravou o recorde absoluto. Depois cansou ou perdeu o passo, mas continuou com ritmo suficiente para chegar aonde chegou.
Até o quilômetro 35, o estrago que ela fez na história do mundo das corridas de rua não precisa de adjetivos. Ai vão os tempos:
Ela passou o quilômetro 5 em 15min31 e cruzou pelo quilômetro 10 em 31h17 –se conseguisse manter esse ritmo ao longo de todo o percurso, fecharia a maratona em cerca de 2h10, ou seja, CINCO MINUTOS abaixo do recorde mundial absoluto.
Por causa do ritmo alucinante dela, o pelotão perseguidor também queimou o chão: a turminha da segundona passou o km 10 em 31mi31, todas elas MEIO MINUTO mais rápidas do que a passagem da Radcliffe em 2003.
A essa altura, os especialistas de plantão já diziam que ela não ia aguentar mais nada etc. e tal, mas a mina continuou botando prá quebrar: sua passagem na meia maratona é  a mais rápida da história das maratonas (1h06min54).

Melhores tempos de Mary Keitany em algumas distâncias em corridas de rua

Com 1h36min05 no km 30, estabeleceu novo recorde –ainda a homologar—nessa distância e continuava mais rápida do que Radcliffe em 2003. Agora, porém, tinha apenas 31 segundos de vantagem sobre a marca histórica e logo veria essa frente se esvair.
No km 35, já estava claro que ela não conseguiria estabelecer uma nova marca absoluta, mas poderia perseguir um tempo histórico. Foi o que fez nos últimos dois quilômetros, quando reuniu forças para acelerar e fechar em novo recorde mundial da maratona em provas apenas com mulheres.
Claro que ainda faltam os resultados dos testes antidopagem –e, nos tempos atuais, todo mundo fica desconfiado quando aparecem recordes sensacionais, ainda mais nestes tempos em que ver mulheres correndo sub2h20 é tido como algo excepcional.
Dúvidas que podem ser apimentadas pelo fato de duas maratonistas de superelite do Quênia terem sido pegas no antidoping, a campeã olímpica Jemima Sumgong e a tricampeã de Chicago Rita Jeptoo.
Em contrapartida, a história de Mary Keitany mostra que ela não é uma arrivista que, de repente, do nada, começou a fazer grandes tempos (o quadro ao lado é tirado da Wikipedia). Ao contrário, sua carreira sempre foi a de uma atleta rápida nas longas distâncias, com boa resistência e muita coragem –às vezes, audácia em demasia, como alguns acreditam que demonstrou no domingo em Londres.
Audácia que chega a levar os observadores ao desespero: em 2011, em Nova York, ela passou a metade da prova com uma vantagem enorme sobre as perseguidoras e sobre o recorde do percurso. Eu assisti à corrida pela TV (ou pela internet, sei lá) e lembro que ficava gritando para a mulher ir mais devagar... Não foi, e o que ela não fez por si mesma o asfalta o abrigou a fazer: perdeu o pique e o título, ficando em melancólico terceiro posto naquele dia...


Desde então já venceu em Nova York e Londres, para ficar em apenas dois dos territórios conquistados pela jovem queniana –tem 34 anos, é casada e tem um casal de filhos. Agora chega aos píncaros da glória.
Será que tem ainda mais para mostrar ao mundo?
VAMO QUE VAMO!!!


Percurso de 24 de abril de 2017
9,26 km percorridos em 1h47min50

Acumulados no projeto 60M60A
927,10 km percorridos em 168h02min43



21.4.17

Judeus e palestinos, negros e índios, sem terra e sem teto se encontram em celebração por liberdade e justiça para todos

Dar um abraço corrido na escola Amorim Lima foi o objetivo de minha jornada de ontem, cheia de lembranças gostosas e sofridas, todas elas enriquecedoras de vida.
Logo de início de meus muitos quilômetros até o coração do Butantã, passei em frente a uma escolinha muito querida, a Alecrim. Para mim, o nome é música da infância – “alecrim, alecrim dourado, que nasceu no campo sem ser semeado”.
Na infância de minhas filhas, elas por várias vezes tiveram encontros com outras crianças na Alecrim, ainda que nunca tivessem estudado lá. Era o ponto de reunião, de partida para viagens, atividades culturais ou simplesmente uma festinha de fim de semana sem a participação de [muitos] pais.
Ainda sorria por dentro, para mim mesmo, me lembrando delas, quando tangenciei os costados do cemitério São Paulo, onde algumas vezes estive em velórios e enterros. São talvez as cerimônias mais doloridas em que alguém pode participar; ao mesmo tempo, ensejam encontros de gente por muito tempo apartada, abraços e sorrisos de amizade, solidariedade e comunhão como talvez também nenhuma outra celebração.
Reflexões um tanto pesadas para minhas passadas, mas é assim que o pensamento voa enquanto a gente caminha ou corre pelo mundo. Tal como diz a música, o pensamento é volúvel e vai pousando onde encontra um galho qualquer mais sólido.
Para o corredor urbano, esse suporte pode ser simplesmente uma esquina. Como a esquina, já no coração de Pinheiros, do quarteirão onde fica (ou ficava) um restaurante que eu costumava frequentar quando estava em melhores condições financeiras.
Pedia sempre a mesma coisa, um risoto de linguiça fina de carneiro, bem temperada. Comia com satisfação e um sentimento de antecipação de prazer glutão, pois logo viria a sobremesa, também ela sempre a mesma: torta de creme de avelãs com sorvete de creme, tudo empapuçado de grossa calda de chocolate, servida, como é de lei, em quantidade exagerada.
Na vida real, porém, a alimentação do corredor não passa de adocicada pasta contida em pacotinhos coloridos –os sachês de gel de carboidrato, cada vez mais variados em sabor e composição. Engulo um, regado em água pura, gelada, enquanto prossigo a jornada.
Atravesso a marginal, corro acima das águas fétidas do rio Pinheiros e entro nas alamedas da Cidade Universitária.
Sempre é bom sentir o ar da sabedoria, ainda que apenas por umas centenas de metros –é assim que conto minhas corridas, pois sigo aos soluços, em blocos de oitocentos metros corridos, duzentos metros caminhados, uma tentativa de cobrir quilômetros e propiciar rápida recuperação ao corpo já entrado na Terceira Idade.
Já estou nos intestinos da São Paulo que fica do outro lado da marginal, fora do centro expandido. Penetro no Butantã, chego perto de meu destino proposto, mas ainda há tempo, caminho, asfalto e quilômetros para fazer outra descoberta.
Correndo na contramão, me vejo do outro lado da rua de onde ficam as instalações da Amorim Lima. Por poucos metros, não há cinza nem a feiura costumeira das grandes artérias de trânsito da periferia: é uma praça, a praça Elis Regina.
Ela me conquistou antes mesmo de eu 
saber seu nome, pois foi oásis de verde e sombra na minha caminhada. Quando encontrei Elis na placa, deixei que a gauchice tomasse conta, até mesmo acelerei a passada para percorrer os quase 400 metros do perímetro da praça, em um primeiro abraço da manhã.
Pois é assim que corredor abraça seus entes queridos, as praças, as ruas, os hospitais, escolas, parques, prédios solenes e trágicos: corre em volta deles, uma vez, duas vezes, três vezes, deixando em vermelho, no mapa virtual internético, a marca virtual de suas passadas, demonstração de carinho em pegadas.
Foi o que fiz em seguida com a Escola Municipal de Educação Fundamental Desembargador Amorim Lima, nome completo da Amorim, como é chamada por pais, amigos, professores, amigos, líderes comunitários.


O conjunto, pintado em tons diversos –os muros vêm em cor de terra, talvez, em combinação com laranja e rosa, sei lá--, dá as costas para a Corifeu de Azevedo Marques, a tal avenida cheia de som e fúria de ônibus, carros, caminhões.
Em contrapartida, é abraçada de frente por uma ruela sem saída, calma e tranquila, que serve de estacionamento para visitantes e vizinhos.
Pioneira em avanços pedagógicos, a Amorim é uma espécie de trincheira de liberdade para crianças, pais e professores. O projeto da escola “visa um compromisso coletivo em que todos os seus agentes se engajem sempre mais num processo de aprimoramento cultural e pessoal de todos, de forma integral, e na construção de uma intencionalidade educativa clara, compartilhada e assumida por todos”.
É o que está escrito no sítio internético da Amorim (CLIQUE AQUI). É uma página muito bem construída, repleta de informações sobre a vida comunitária, a pedagogia e a democracia no aprendizado, sem descuidar de curiosidades: ensina, por exemplo, que o desembargador em questão foi carioca, neto do poeta Luiz Delfino e “pregador notável da ordem jurídica e da soberania da lei”.
Para a Amorim, descobre mesmo quem a visita pela primeira vez, o ensino tem a ver com a vida comunitária, e a escola abre suas portas para o encontro com a população de seu entorno.
Quando fui abraçá-la, encontrei pregado no portão uma folhinha com a programação da escola para o mês de abril. Nesta segunda, haverá assembleia dos pais; na próxima terça-feira, o prédio vai abrigar reunião do Mami Butantã, que é um Grupo de Apoio à Gestação e ao Parto.
Na última terça-feira, dia 18, a escola foi palco para uma comovente, emocionante e didática celebração de encontro, de paz, de solidariedade entre os povos e entre os grupos oprimidos. Organizado pelo grupo Judeus Progressistas Brasileiros, aconteceu ali o Seder de Pessach “Liberdade e Justiça Para Todos”.
Pessach, a Páscoa Judaica, é a celebração da libertação do povo judeu da escravidão sob o governo egípcio. Tem a ver, portanto, com mudança, retorno, solidariedade, gratidão. Esse grupo de judeus brasileiros palestinos (JuProg, como aparecem nas redes sociais; CLIQUE AQUI para sabermais) considerou esse o momento apropriado para ampliar o debate sobre o significado prático, real, concreto de todos esses termos no mundo de hoje.
“Hoje nós somos o Faraó, nós somos o opressor em relação ao povo palestino”, afirmou Sergio Storch, um dos organizadores do evento, em entrevista que fiz com ele na véspera da celebração (abaixo).



Ele e todos os responsáveis pela celebração trabalham com a noção de que não pode haver liberdade para alguém, uma pessoa, um povo, uma nação, se for à custa da liberdade de outra pessoa, outro povo, outra nação.
Eles integram a corrente planetária Siso, um movimento criado por judeus que proclama: “Salvemos Israel, Acabemos com a Ocupação [da Palestina] –é o significado da sigla em inglês (saiba mais CLICANDOAQUI).
Entendem o Seder como uma celebração de caráter universalista que projeta para o presente e o futuro a ética e a história ancestrais, defendendo a liberdade para as lutas de todos os povos e grupos sociais, inclusive liberdade e justiça para os palestinos sob opressão israelense.
E assim foi.
Sentados em imensa roda em uma quadra coberta na Amorim, algumas dezenas de mulheres, homens e crianças compartilharam seus desejos de democracia, assim como sua insatisfação com os golpes contra a liberdade, no Brasil e no mundo.


Convidados de todas as cores, tamanhos e credos tiveram direito à palavra, depois que a cerimônia foi aberta com uma breve e emocionada participação da anfitriã, a professora Ana Elisa Siqueira, diretora da escola e impulsionadora do movimento de transformação da Amorim.
Contou que via o encontro ali em andamento como a concretização de tudo o que os educadores, pais e alunos da Amorim vinham construindo ao longo dos anos. Uma demonstração de que é possível mesmo a grupos beligerantes a busca de objetivos comuns.
Isso ficou ainda mais claro poucos minutos depois, quando a celebração já estava em andamento, e oradores representantes de vários movimentos sociais e grupos judaicos se revezavam ao microfone.
Mais um visitante apareceu à porta, e logo foi conduzido ao lugar de fala pelo fisioterapeuta Marcelo Semiatzh (foto abaixo), que compartilhava o comando da cerimônia (que, de fato, foi bem pouco cerimoniosa).


Era Fábio Bosco, da Frente de Defesa do Povo Palestino, que vinha falar ao grupo que fazia uma celebração judaica. Assim que ele foi anunciado, houve um silêncio de expectativa na roda, dava para perceber certa tensão, mas não beligerância nem agressividade.
Sem diplomacia nem meias palavras, Bosco descreveu a visão de seu povo sobre a situação na Palestina, o sofrimento sob o opressor israelense e seu desejo de paz. Uma paz que só pode ocorrer se fundada em dois princípios elementares, no dizer do ativista: o direito ao retorno e o direito a todos serem iguais perante a lei.
Foi aplaudido com entusiasmo (talvez também com esperança, mas isso não se enxerga nem se ouve nas palmas). E a expressão que tanto sublinhou, “direito ao retorno”, foi ainda usada várias vezes ao longa da celebração, dessa vez por ativistas de grupos judaicos.
Falaram, por exemplo, da questão dos refugiados, que aflige o mundo. E muitos se referiram à própria experiência do povo judeu que, durante séculos –milênios—não teve para onde voltar, viveu sem pátria, sem local de encontro.
Ali na reunião, no Seder de Pessah, havia ainda outros representantes de grupos que lutam por seu local de encontro, por sua terra, pelo reconhecimento de sua identidade e respeito aos seus usos e costumes, como quilombolas e comunidades indígenas, coletivos de mulheres e de LGBT.
A luta por liberdade e justiça passa pela luta por teto e terra, pontuaram as falas de representantes do MST (Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e de um coletivo de sem teto da região central da cidade.
Representantes de grupos da comunidade judaica progressista e militantes judeus também tomaram a palavra, deixando claras visões diferentes sobre o sionismo, mas afirmando a convergência no sentido do respeito mútuo e do desejo do socialismo.
No conjunto, o que emergiu da celebração foi o sentimento de que outro mundo é possível, e que é necessário, imprescindível, lutar por ele, enfrentando as poderosas forças do reacionarismo, do atraso, do belicismo, do racismo, do fascismo.
É possível viver em paz e conversar em paz e partir o pão em paz. Foi o que fizemos todos ao final do encontro, sentando todos a uma mesa comum (às vezes imaginária, pois muitos circulamos com pratinhos na mão).
O pão ázimo, uma folha quadrada crocante, foi a base. Houve a sopa de kneidleh, feita com a farinha de matza (do pão ázimo) e várias versões de hummus –com berinjela, cenoura, beterraba, cada uma mais gostosa do que a outra. A salada era uma espécie de vinagrete com pepino e tomate –salada judaica.
Cada comida tem um significado especial na celebração. A sobremesa, por exemplo, uma combinação de tâmaras amassadas com nozes (ai, ai, ai, só comi uma colherinha!!!), lembra a argamassa das construções do Egito.
E assim, felizes, satisfeitos e de barriga cheia, saímos todos, emocionados, esperançosos, dispostos a seguir na luta por liberdade e justiça para todos.

VAMO QUE VAMO!!!



Percurso de ontem, 20 de abril de 

2017

13,12 km percorridos em 2h14min06


Acumulado no projeto 60M60A

905,77 km percorridos em 164h24min26




PS.: Se viva fosse, minha mãe estaria fazendo hoje 87 anos. CECÍLIA RECKZIEGEL DE LUCENA estaria, como sempre esteve ao longo de sua trajetória, firme e forte na luta por liberdade e justiça para todos. 

17.4.17

Caminhada debate celebração de judeus progressistas por “Liberdade e Justiça para Todos”

Minha caminhada de hoje, juntando quilômetros para fortalecer minha conta no projeto 60 MARATONAS AOS 60 ANOS, me levou até o parque Buenos Aires, um oásis de verde no coração de Higienópolis, bairro que muitos caracterizam como abrigo da comunidade de judeus mais bem de vida em São Paulo.
Se é ou não, sei lá –impressões deveriam ser baseadas em ou apoiadas por dados, estatísticas, depoimentos, provas, coisas, enfim, pouco comum nesta época em que acusadores abandonam os ritos da Justiça para trabalhar baseados em suas convicções pessoais.
O fato é que, em frente às alamedas cercadas da praça, encontrei dois representantes da comunidade judaica –ou, pelo menos, de um grupo que integra a comunidade judaica.
Com Adriana Kauffmann e Sergio Storch caminhamos bons quilômetros dando voltas e mais voltas no quarteirão, conversando sobre uma sensacional iniciativa da turma deles, os Judeus Brasileiros Progressistas –Juprog é o nome do grupo nas redes sociais.
Como estamos em plena Pessach, a Páscoa Judaica, um momento de agradecimento pela libertação do povo judeu do jugo egípcio, a turma do Juprog resolveu fazer uma celebração pela liberdade e pela justiça PARA TODOS, incluindo o povo palestino.
É o Seder de Pessach “Liberdade e Justiça Para Todos”, que eles realizam nesta terça-feira em São Paulo, tendo como livro-base da cerimônia a Haggadah do Jubileu produzida por ativistas da organização internacional Siso (Save Israel, Stop Occupation), para quem a salvação de Israel depende da paz e do final da ocupação dos territórios palestinos (saiba mais CLICANDO AQUI).
A celebração paulista terá, pois, representantes de comunidades que também pedem por justiça, com a presença de lideranças de movimentos sociais e da comunidade de palestinos em São Paulo.
A programação terá vídeos e músicas que celebram a liberdade e a justiça, inclusive da Marcha das Mulheres israelenses e palestinas em outubro.
O Seder será realizado na Escola Municipal Amorim Lima, uma das escolas públicas mais avançadas no Brasil na chamada educação democrática, da escola sem paredes, em que as crianças são respeitadas nas suas escolhas e estimuladas na paixão de aprender.
Bom, agora que você já sabe o básico sobre a celebração, conheça mais sobre o grupo Judeus Brasileiros Progressistas assitindo à entrevista que fiz hoje com eles. Clique no vídeo abaixo e...


VAMO QUE VAMO!!!


Percurso do dia 17 de abril de 2017
7,42 km percorridos em 1h34min14

Acumulado no projeto 60M60A
865,54 km percorridos em 157h29min36



13.4.17

O queniano Paul Kimutai sagrou-se no último domingo bicampeão da Maratona Internacional de São Paulo, uma das principais provas brasileiras na sua categoria. Foi seguido por um legítimo filho da terra brasileira, sertanejo forjado nas dificuldades da vida e lapidado por um construtor de campeões.

Estou falando do pernambucano EDSON AMARO, a quem tive o prazer de conhecer em 2015, quando ele ainda embalava sonhos olímpicos. De fato, conseguiu índice para ter direito a participar da maratona no Rio-2016, mas outros tiveram tempos melhores.

Agora ele volta ao estrelato, sempre apoiado pelo técnico MARCIANO BARROS, que tem uma verdadeira peneira de talentos em Petrolina, em pleno sertão pernambucano –já descobriu vários campeões, notadamente no atletismo paraolímpico.

“Algumas pessoas desacreditaram, dei meu melhor e saí com um grande resultado. Surpreendemos muita gente. Muita gente ficou abismada com nosso potencial”, disse Amaro depois da prova, com uma ponta de amargura em meio à alegria da conquista.

Marciano Barros comentou: “Fizemos esse trabalho direcionado para a maratona. Alguns resultados não muitos bons vieram, mas continuamos trabalhando firme para chegar aonde chegamos hoje. O objetivo era a Maratona de São Paulo. Queríamos o título, mas ele não veio. Estamos satisfeitos com a segunda colocação e por sermos o melhor brasileiro, em uma prova que reuniu os grandes atletas do Brasil”.

Conheci os dois, Edson e Marciano, no interiorzão de Pernambuco, na terra crestada de Santa Maria da Boa Vista, que visitei como parte do projeto MARATONANDO COM OMST. Pois Marciano, além de dirigir a Associação Petrolinense de Atletismo e dar aulas de educação física, também dá a jovens sem terra iniciação no mundo do atletismo.

Os dois chegaram mesmo a participar de uma corrida que organizei na região, reunindo alunos de escolas rurais de cinco assentamentos localizados ao longo da Estrada da Reforma Agrária (CLIQUE AQUI PARA CONHECER A HISTÓRIA)

Fiz com eles amplas entrevistas, publicadas na época na “Folha de S. Paulo” e, mais tarde, na revista “O2”. Reproduzo a seguir trechos do depoimento de Edson Amaro, para que você conheça melhor as origens do melhor brasileiro na maratona de São Paulo.

Fotos Eleonora de Lucena


Da minha mãe, só tive uma irmã, filha do meu pai, só que depois de uma hora de nascida ela faleceu. Por parte de pai, tenho 18 irmãs; pela minha mãe, só tenho um irmão. Somos 20 irmãos. Só eu saí corredor.

“A gente é de família humilde. A gente morava em uma casa de taipa em Juazeiro da Bahia, próximo à rodoviária. Quando meu avô morreu, em 1986, quando eu tinha dois anos, minha avó ficou revoltada. Ela era muito apaixonada por ele, não quis mais viver lá. Vendeu o que tinha, levou toda a família para São Paulo.

“Eu vinha todo o ano para Juazeiro. Quando completei 17 anos, não quis mais voltar para São Paulo. Não gostava de lá porque não tinha liberdade, a gente sai de casa e não sabe se volta...

“Comecei a praticar atletismo na escola Pedro Raimundo Rego, a mesma em que estudou Daniel Alves. Quem me levou para lá foi a professora Edileusa, a mesma do Daniel. Depois ela trouxe o treinador Marciano [Barros], e foi aí que tudo começou.

“Ele me perguntou se eu confiava nele, disse que eu poderia vir a ser um grande atleta. Eu queria: a gente treinava duro, três vezes por semana. Conheci José Carlos Santana, tricampeão da maratona do Rio, medalha de prata no Pan de Havana. Via que estava rodeado de pessoas que poderiam somar para eu dar uma levantada, subir na vida.

“Era difícil. Eu morava num bairro muito carente. Perdi muitos amigos para as drogas. Muitas vezes os meninos chegavam drogados à escola. Às vezes a gente até brigava, cheguei a tomar arma da mão dos meninos lá na escola.

“A primeira corrida que eu ganhei, treinando com Marciano, foi um 5.000 m nos Jogos Escolares de Juazeiro. Foi em 2003, quando comecei.

“No meio da turma, eu era o mais magrinho de todos. Na arquibancada, diziam que eu nem ia conseguir completar. Ficaram de gozação comigo.

“Na hora da corrida, eu fui passando, dando volta, dando volta, dando volta, acabei ganhando. Dois dias depois, teve os 1.500 m e eu ganhei também.

“Quatro dias depois, teve uma corrida lá em uma cidade chamada Senhor do Bonfim, na Bahia. Tinha muitos atletas bons, mas Marciano falou que era para eu correr do meu jeito, sem me preocupar com ninguém.

“Fui o quarto colocado geral da prova, eram 12 km, e o primeiro na minha categoria, de 15 a 19 anos. Ganhei um troféu que era quase da minha altura.

“Até hoje eu guardo esse troféu com carinho lá em casa. Eu vinha dentro do ônibus abraçado com o troféu, 125 km abraçado com o troféu, que eu nunca tinha ganhado um troféu bonito e grande daquele jeito.

“Minha primeira maratona foi em 2012, em Santiago, no Chile, eu estava com medo de correr. Nunca tinha corrido 42 quilômetros.

“Na hora da largada, deu um frio na barriga. Mesmo assim, completei em  
2h16min20. Fui quarto colocado geral na minha primeira maratona e consegui o índice para os Jogos Olímpicos de Londres.

“Mas a marca que eu fiz ainda era alta e não dava mais tempo de correr outra prova antes de fechar o período de classificação. Acabei sendo o quarto melhor brasileiro naquele ano, mas não pude ir à Olimpíada.

“Depois de Santiago, corri várias maratonas. Sou bicampeão da Maurício de Nassau, no Recife. Na segunda vez, foi com chave de ouro: corri dez quilômetros com o grupo e 32 quilômetros sozinho.
  
“Tem de ter cabeça. Penso só no treinamento, trabalhando o meu psicológico, concentrando na prova. Tem fotos minhas em que meus olhos estão vidrados, assim, concentrado. Tudo vem do treinamento: concentração e não perder o foco.”

VAMO QUE VAMO!!!



Percurso do dia 13 de abril de 2017
15,01 km percorridos em 2h05min24

Acumulado no projeto 60M60A
815,78 km percorridos em 149h17min09 


4.4.17

Sangue, lágrimas e punhos erguidos marcam testemunhos na Caminhada da Resistência

Uma noite, eu estava lá no presídio Tiradentes, eles foram me buscar. Não podiam retirar à noite, mas me pegaram, trouxeram para o DOI-Codi, fiquei jogado lá numa cela.
Dez horas da manhã, eles apareceram:
“E AÍ, TUDO BEM? DORMIU BEM? VAMOS SUBIR, INTERROGATÓRIO!”
Tudo bem, o que eu vou fazer? Quase seis meses depois de ter sido preso, voltar para interrogatório?
Na sala estava Carlos Alberto Brilhante Ustra, então major: “E AÍ, LEMBRA DA TURMA DE LETRAS”, pergunta, esfregando as mãos.
“Letras? Por que Letras?, eu me perguntei, Letras não tinha ALN”
“LETRAS, LETRAS. VOCÊ TINHA UMA AMIGUINHA LÁ, UMA JAPONESINHA...”
“Japonesinha? Sueli Kanayama. Foi minha caloura. Fazia teatro com a gente.”
“DE CORONEL MACEDO”.
“É, ela mesmo. Que aconteceu?, o que vocês querem?”
“ELA SUMIU DA USP, NÃO FOI?”
“Não sei, não sei nada dela, não era da minha organização, não tenho nenhum vínculo.”
“SABE ONDE ELA TAVA?”
“Não.”
“NO ARAGUAIA.”
“Suelizinha? No Araguaia? Era uma japonesinha desse tamanho [mostra uma alturinha de um metro e meio, pouco mais]”.
“GOSTAVA DELA? ERA MUITO AMIGO DELA? ACABAMOS DE MATAR ELA. CORTEI A CABEÇA DELA.”
Brilhante Ustra mostra a foto: Sueli decapitada.
Sentado em uma mureta em frente ao 36º Distrito Policial, na rua Tutóia, onde funcionou o DOI-Codi, o ex-preso político Adriano Diogo com muito esforço conseguiu controlar sua emoção ao relembrar aqueles momentos doloridos da tragédia que se abateu sobre o Brasil.
No final da manhã ensolarada de sábado, primeiro de abril, Adriano falava aos participantes da Caminhada da Resistência, circuito por locais de memória organizado pelos CORREDORES PATRIOTAS CONTRA O GOLPE para marcar o aniversário do Golpe Militar de 1964 e celebrar a luta contra a ditadura de então e a luta pela democracia hoje no Brasil.


Militante da Ação Libertadora Nacional, comandada por Carlos Marighella, Adriano Diogo foi um grande combatente também na luta pela anistia, na redemocratização e, mais recentemente, nas campanhas para recuperação da memória brasileira –como deputado, presidiu na Assembleia de São Paulo a Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva.
Diogo foi num dos convidados especiais em nossa jornada –tenho a satisfação e a honra de ser um dos fundadores do grupo CORREDORES PATRIOTAS CONTRA O GOLPE--, que começou com o dia ainda cinzento e um pouco frio.
Na avenida Tiradentes, pertinho do metrô, em frente ao histórico prédio onde funciona a sanguinária Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), aos poucos foi crescendo o grupo que vestia vermelho, cor da camiseta que fizemos especialmente para essa Caminhada da Resistência.


Chegou mesmo a chamar a atenção de policiais militares que estavam por lá. Motoqueiros da PM vieram a nós tirar satisfação, querendo saber o que era aquilo, quem era o responsável, o que iríamos fazer. Apesar de o roteiro estar disponível na internet e de a caminhada seguir apenas por calçadas, resolveram nos acompanhar –iriam ajudar, dar segurança nas travessias, nos disseram.
Que seja!
Reunidos pertinho do pórtico do presídio Tiradentes, único pedaço que restou da centenária construção, ouvimos a fala de Ivan Seixas, que foi um dos mais jovens presos político da ditadura militar –com 15 anos foi levado para as câmaras de tortura e ouviu os gritos do pai, Joaquim, morto durante espancamento em uma cela na Oban.
Hoje diretor do Núcleo de Preservação da Memória Política, Ivan lembrou que o presídio foi construído para a detenção de escravos, no século 19. O poço usado para lavar os detentos serviu, durante a ditadura, para a tortura de presos comuns –que dividiam o espaço com presos políticos.
O pórtico que ainda resta era a antiga entrada para a Torre das Donzelas, como foi chamada a ala onde ficaram as presas políticas durante a ditadura. 



“Todo mundo fala da Dilma, que esteve presa aqui, minha mãe, minhas irmãs estiveram presas com ela. Mas aqui ficou também Pagu, Patrícia Galvão, uma combatente, grande revolucionária brasileira, que foi presa muitas vezes, uma delas ficou aqui nesse presídio.”
Centro de punição, o presídio Tiradentes foi também palco de resistência, como afirmou Ivan: “Aqui a gente fez a primeira greve de fome dos presos políticos, foi em 1972. Houve uma primeira parte, que durou seis dias, e uma segunda parte, que durou 33 dias. Separaram a gente, mas a gente tinha feito a denúncia. Fizemos um documento, um documento vivo para denunciar a ditadura, as pessoas no exterior começaram a saber: tem preso político no Brasil, e eles estão fazendo greve de fome.”
Dali seguimos para o prédio onde funcionou o Deops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social), que só perde em má fama para as celas do DOI-Codi. Ele é hoje o Memorial da Resistência, coordenado pela museóloga Kátia Neves, que nos recebeu:
“O passado, para a gente, é um mote para discutirmos o presente. A gente não quer que as violações aos direitos humanos, que continuam acontecendo, sigam impunes”, disse ela ao receber nosso grupo.


Apresentou o Memorial e abriu as portas para os caminhantes, que se espalharam pelo ambiente que ainda guarda traços das brutalidades ali perpetradas.
Difícil tirar dali os caminhantes, envolvidos nas histórias registradas nas celas, ouvindo depoimentos de ex-presos, acompanhando os registros históricos. Mas era preciso sair, seguir na estrada, mergulhar no tempo.
Professores de escolas de primeiro grau, estudantes, profissionais das mais diversas áreas, militantes da luta pelos direitos humanos e curiosos caminhantes formavam o nosso grupo, que caminhava tingindo o centro de São Paulo de vermelho. De vez em quando, ouvíamos um grito de apoio: “Fora, Temer!”, mas também houve quem gritasse homenagens a fascistas.


Sinal de que o ranço pútrido do ódio continua lançando seu fedor sobre nossa cidade. O que torna ainda mais necessária ação como a realizada naquela mesma manhã de sábado pelo povo do Núcleo Memória _-que é o nome encurtado do Núcleo Pela Preservação da Memória Política.
Trata-se do projeto Ruas da Vergonha, que coloca na berlinda a homenagem a figuras que torturam e mataram brasileiros durante a ditadura militar. Durante a manhã de primeiro de abril, placas de ruas com nomes de criminosos da ditadura foram trocadas por outras com os nomes de conhecidos facínoras, como Hitler, Mussolini e Pinochet.
No site especialmente criado para o projeto, o mote está explicado: “A ditadura militar foi um período de brutalidade e intolerância. Centenas de pessoas foram executadas, torturadas e algumas até desapareceram. É um absurdo existirem praças, avenidas e nomes de ruas que homenageiem quem violou direitos humanos. Está na hora de tirar as marcas da violência que ainda estão nas nossas ruas”.
De fato. E está na hora de as pessoas ocuparem a cidade, darem ao espaço público função de manifestação. 



Foi o que procuramos fazer com a Caminhada da Resistência, que circulou pelo centro velho e chegou até o Teatro Municipal.
“Operário do canto, me apresento sem marca ou cicatriz, limpas as mãos, minha alma limpa, a face descoberta, aberto o peito, e —expresso documento— a palavra conforme o pensamento.”
Declamando o belo poema “Da Profissão do Poeta”, de Geir Campos (saiba mais CLICANDO AQUI), a sensacional atriz, dramaturga e, acima de tudo, militante da cultura e da democracia Dulce Muniz nos recebeu nas escadarias do teatro.


Contou das campanhas e manifestações que tiveram aquele espaço como palco, na rua mesmo. Ela, que hoje faz da memória de lutadores como Iara Iavelberg e Comandante Jonas tema para peças de teatro em seu espaço Studio Heleny Guariba, lembrou das jornadas lideradas pela magnífica Leila Abramo. E denunciou a tentativa prefeitural voltar a amordaçar a cultura, calar com o jugo do dinheiro a voz dos operários da arte.
“Fora Temer! Fora Dória!”, gritamos, fazendo com ela uma só voz de coro de revoltados.


Uma chuvinha fina e fria tentou desestimular nossa turna e quebrar o ritmo dos caminhantes. Ledo engano: cruzamos o viaduto do Chá e, já com um grupo de várias dezenas (Ivan Seixas calcula que, ao longo do percurso, chegamos a cerca de 80 caminhantes) de pessoas, encaramos a curta, porém, íngreme, subida da Líbero Badaró para alcançarmos o largo de São Francisco.


Estávamos, enfim, frente às vetustas arcadas da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 
Quem tomou então a palavra foi a professora de direito Patrícia Bertolin, autora de obra em que aponta a discriminação contra a mulher no mundo dos advogados, advertiu e conclamou:
“O direito pode usado para perpetuar uma situação, que muitas vezes marca a prevalência de um grupo, marca elitismo, marca privilégios, marca uma série de iniquidades, e ele pode ser um instrumento de transformação. Então nós, juristas, temos de fazer essa escolha.”

Nos tempos da ditadura, Goffredo Telles e outros tantos bastiões da Justiça escolheram o lado do povo. Em oito de agosto de 1977, lançaram a Carta aos Brasileiros, lida por Telles ali mesmo onde estávamos na manhã de sábado. Bertolin destacou num trecho do célebre documento (confira aíntegra AQUI):
“Sustentamos que o Poder Legítimo é o que se funda naquele senso grave da ordem, naqueles projetos de organização social, nascidos do embate das convicções e que passam a preponderar na coletividade e a ser aceitos pela consciência comum do Povo, como os melhores. (...) Denunciamos como ilegítimo todo Governo fundado na ¬Força. Legítimo somente o é o Governo que for órgão do Poder. Ilegítimo é o Governo cheio de Força e vazio de Poder.”
Logo foi a vez de outro “filho” das Arcadas atuar como anfitrião da memória da Caminhada da Resistência. 


Mestre em sociologia do direito, Renan Quinalha, um dos organizadores do livro “Ditadura e Homossexualidades: Repressão, Resistência e A Busca da Verdade”, falou:
“A ditadura foi um grande projeto, um grande negócio, e também foi um laboratório de subjetividades:  formatou um tipo de brasileiro ideal, de cidadão ideal, de acordo com o machismo que prevaleceu naquele momento histórico. A ditadura sistematizou, institucionalizou o preconceito e o olhar discriminatório sobre as pessoas LGBT, desde discriminação no trabalho –no Itamarati, vários diplomatas sofreram expurgos em 1969 por prática de homossexualismo—até censura de telenovelas e programas de auditório.”
Os convidados especiais da Caminhada da Resistência, como Patrícia e Renan, lançavam luz, traziam informações sobre os locais de memória que visitávamos em uma jornada que já durava algumas horas e começava a cansar os menos experientes nesse tipo de passeio.
O pior, para os novatos, é que o trecho mais difícil ainda estava por vir. Saindo do largo São Francisco, pegamos a Cristóvão Colombo para, em seguida, encarar a Brigadeiro Luiz Antonio, exatamente no trecho mais temido pelos corredores que, a cada dia 31 de dezembro, encaram a divertida e desorganizada corrida de São Silvestre.
Andávamos devagar, e a conversa ajudava a passar o tempo e diminuir a sofrência. A parada seguinte foi um bálsamo de sombra, ainda que o local –o prédio onde funcionaram auditorias militares durante a ditadura—evoque lembranças terríveis, dramáticas, violentas.
Hoje diretor do Núcleo Memória, Maurice Politi foi um dos presos políticos que passaram por aqueles verdadeiros Conselhos de Guerra, de onde a Justiça andava longe –foi comprovado que, pelo menos uma vez, a sentença já estava escrita antes da encenação do julgamento. 


E, apesar de os ares do prédios terem sido bafejados pelos perfumes da retórica, por ali também fede a tortura, como nos relatou Politi, contando a história do cabo Mariani, que saiu com Lamarca do quartel de Quitaúna, em Osasco, levando um caminhão de armas e se juntando às forças da resistência.
“O cabo Mariani foi o primeiro a ser preso desse grupo. Era um jovem, tinha 22 anos na época. Foi barbaramente torturado. Sofreu uma tortura de que não se tem conhecimento que mais alguém tenha sofrido. Foi na Oban.
“Ele foi obrigado a colocar os testículos dentro de uma gaveta, e fecharam e abriram a gaveta várias vezes. Ele ficou impotente. Um menino de 22 anos, que de repente...
“Ele tinha uma revolta muito grande. No dia do julgamento dele, ele veio aqui e relatou essa tortura. Os militares, que estavam no Conselho de Guerra, começaram a  gritar, dizer que era mentira, que o Exército brasileiro não seria capaz de fazer isso...
“Causou uma celeuma tão grande entre o público e entre os próprios julgadores, os militares gritando “O senhor é mentiroso!”, que o juiz civil chamado Nelson Machado Guimarães, vive até hoje no Rio de Janeiro, suspendeu a sessão, disse: “Vamos suspender, vamos acalmar, para o réu repensar um pouco o que ele tem de falar”.
“E aí levaram Mariani para uma edícula, atrás do prédio principal, e bateram nele para ele mudar o depoimento, coisa que ele não fez. Foi um herói.”
Politi liderou uma romaria pelos caminhos da Auditoria, mostrando cada peça do local que, por causa das lutas dos advogados e dos ex-presos políticos ali julgados, também vai virar um ponto de memória, o Memorial da Luta pela Justiça (saiba mais CLICANDO AQUI).
Revigorados pela parada e animados pelas histórias de heroísmo contadas por Politi, seguimos para o trecho mais difícil de toda a caminhada: o resto de subida da Brigadeiro e a forte descida até chegar à rua Tutoia, onde fica o prédio em que funcionaram as câmaras de tortura do DOI-Codi.
“Cheguei aqui e já passei por um corredor polonês, tomei porrada de tudo quanto foi jeito”, disse Adriano Diogo ao contar a história de seu sofrimento nas mãos do então major Carlos Alberto Brilhante Ustra e seus esbirros.
Algemado e encapuzado, Diogo continuou sendo espancado na cela, até que o próprio Ustra chegou: “Ele tirou o meu capuz e falou: ACABEI DE MANDAR O MINHOCA PARA A VANGUARDA POPULAR CELESTIAL. VOCÊ VAI SER O PRÓXIMO!
O Minhoca era Alexandre Vannucchi Leme, que havia sido colega de Diogo na Geologia da USP e que, como ele, integrava a ALN; foi morto no dia 17 de março de 1973. O assassinato foi um rastilho para ampliar a resistência à ditadura e para a retomada do movimento estudantil (saiba mais CLICANDO AQUI).
O prédio abriga, assim, memórias de sofrimento, mas também de resistência de luta, como destacou a jovem historiadora Deborah Neves, responsável pelo parecer técnico que deu base ao processo –vitorioso—de tombamento do conjunto da rua Tutoia.


Apesar da maré contrária, apesar de pressões e até do desprezo pelo projeto em algumas áreas dos órgãos públicos, o processo seguiu adiante até a assinatura do tombamento, em janeiro de 2014, ano em que o Golpe Militar completou cinquenta anos.
 Por isso, Neves destaca: “O trabalho de preservação do patrimônio também é um trabalho de resistência. É mais um elemento que colabora para que a gente não fique desmemoriado”.
Para contribuir com isso, com a luta contra a desmemorialização, uma boa ajuda é a criação de ícones que deixem cuspidos e escarrados na frente do povo, nas ruas da cidade, a representação de tempos passados.


“Para que não nunca se esqueça e nunca mais aconteça” foi o mote da Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos ao propor a criação de um Monumento em Homenagem aos Mortos e Desaparecidos da Ditadura, que ocorreu durante a gestão do prefeito petista Fernando Haddad.
Apesar de, no período, a administração ter um caráter democrático e de defesa dos direitos humanos, não foi fácil a tramitação do processo que culminou com a instalação do monumento –obra de arte criada por Ricardo Ohtake—no parque do Ibirapuera.


As peripécias para tal conquista nos foram contadas por Clara Castellano e Carla Borges, que atuaram na coordenação de Direito à Memória e Verdade na administração Haddad. Tiveram de demonstrar a importância de conquistar a rua para o cidadão:
“As marcas deixadas pela ditadura não foram somente as que carregaram os que a ela se opuseram. Elas estão também fortemente impressas na relação dos cidadãos com os espaços públicos das suas cidades. No caso da cidade de São Paulo, devido à cultura do medo gerada pelas perseguições políticas, muitos locais públicos deixaram de ser locais de expressão da cidadania, de encontro e da coletividade”, disse Castellano.


Clara Castellano (esq.) e Carla Borges


O papel da secretaria de Cidadania e Direitos Humanos foi exatamente buscar que as ruas voltassem a ser expressão da coletividade. E a homenagem no Ibirapuera faz parte desse processo, como diz Carla Borges: “Nossa cidade está marcada por vários monumentos de opressão e de violência. A gente precisava usar da mesma linguagem para fazer esse confronto”.
Como um dos idealizadores da Caminhada da Resistência, espero que esse mergulho na memória das lutas democráticas também seja instrumento, ferramenta na construção de forças para enfrentar os golpes –não só os golpes do passado, as lembranças das brutalidades e dos crimes da ditadura, mas principalmente as jornadas de ódio de hoje em dia, quando a democracia volta a ser golpeada, e os homens de bem são chamados a caminharem pela faz, pela soberania e pela liberdade.


Foi com esse espírito que nos abraçamos e nos reunimos para a foto de encerramento da jornada. Eu levei comigo as palavras de Dulce Muniz, como se fossem poesia minha. Ela disse, nas escadarias do Teatro Municipal:
“Tenho orgulho de estar aqui com vocês e de ter escolhido, desde pequena, acompanhando meu pai operário e minha mãe dona de casa, o lado certo da vida, o lado bom, aquele que dá tristeza, mas que também dá um orgulho imenso... Como falam os índios, como falam os negros, dá um orgulho imenso de ser brasileira, de ser de esquerda, de ser socialista, de ser comunista. FORA TEMER!!!”
Que assim seja.
VAMO QUE VAMO!!!


Percurso de três de abril de 2017
8,40 quilômetros percorridos em 1h41min04
Acumulado no projeto 60M60A
772,69 quilômetros percorridos em 142h17min32

PS.: O registro fotográfico da Caminhada da Resistência foi obra de ELEONORA DE LUCENA e ANDERSON TADEU, que aparecem com suas câmeras na imagem abaixo, de autoria de Gregório Silva. Obrigado!!!


PS2.: Já há quase duzentas pessoas no grupo internético CORREDORES PATRIOTAS CONTRA O GOLPE (CLIQUE AQUI PARA CONHECER E SE INCLUIR); ao vivo e em cores, o número que participa efetivamente das corridas e da organização dos eventos é bem menor, porém guerreiro, bem disposto e super a fim de fazer o melhor possível na luta pela democratização e pela independência de nossa pátria. Abaixo, alguns dos CORREDORES PATRIOTAS que participaram da Caminhada da Resistência.

Nós estamos de pé: começando pela esquerda, o sujeito mais alto, de cabelo e barba grisalhos, é o Gregorio Gomes da Silva; ao lado dele está o José  de Oliveira e, em seguida, a Lena Castellon, de boné; depois vêm a Ana Claudia Meschini Nardy, eu e a Eleonora de Lucena