29.12.15

Homenagem a Oswaldo Silveira, maratonista e maître campeão


O mundo das corridas e o universo da gastronomia perderam nesta terça-feira Oswaldo Silveira, exemplo de corredor e profissional. Aos 85 anos, trabalhou e treinou enquanto lhe foi possível, sem nunca deitar nos louros –chegou a ser campeão da maratona de Nova York na sua faixa etária. Ao longo dos últimos anos, tive oportunidade de fazer algumas entrevistas com ele. A mais recente foi publicada na edição de dezembro de 2013 na revista “O2”. A seguir, reproduzo aquele texto como mais uma homenagem a esse atleta sorridente e inspirador.

Olhou-se no espelho e percebeu que não dava mais. 
A cintura não estava tão garbosa como antigamente. A bem da verdade, a pança se expandia por vários centímetros além do recomendado pela elegância e pelos cânones da boa forma. Mas ele não precisava ouvir críticos: fazia sua própria avaliação, talvez mais rigorosa do que a de qualquer médico ou nutricionista.

“Eu estava ficando barrigudo, tomando muita cerveja, já não dava mais para jogar direito nas partidas de futebol na Freguesia do Ó, em Santana, no Jóquei Clube.”
Sentindo-se “pesadão”, Oswaldo Silveira, então com 54 anos, buscou ajuda de um médico. O doutor recomendou que entrasse numa academia de ginástica para tentar perder a barriga e que começasse a fazer regularmente algum tipo de exercício de forma regular –futebol no fim de semana, seguido por cervejada e churrascada não conta...
Silveira lembrou-se de seus primeiros tempos de futebol. “Eu era grosso, era ruim de bola, mas amava a bola. Certa vez, o técnico falou: `Olha, você não precisa jogar bola. Como você corre bem, você marca aquele cara lá, não deixa ele jogar, que já está bom`. O cara era o melhor jogador deles, corria muito, mas eu ganhava dele na corrida.”
Assim, quando teve de buscar um esporte para combater a pança crescente, optou pela simplicidade de botar uma perna na frente da outra o mais rapidamente possível. “O instrutor me levou para fazer uma corrida de 6 km no Ibirapuera, e eu me apaixonei. De lá para cá não parei mais.”
De fato, não parou mesmo. Hoje com 83 anos, Oswaldo Silveira contabiliza mais de dez maratonas no currículo de atleta amador, mais de 30 meias maratonas e dezenas (centenas, talvez, já perdeu até a conta) de provas em distâncias menores.
Todas feitas com o ardor e a disposição de quem gosta de dar o máximo em tudo o que faz: “Ganhei muitas o primeiro lugar nos 10 km da Tribuna, em Santos, e nas meias maratonas de São Paulo e do Rio. Fui campeão da meia de Gotemburgo, na Suécia, e de Miami, nos Estados Unidos, e segundo colocado na meia de Buenos Aires”.
E, em Nova York, é o rei de cabelos brancos: foi campeão da maratona, na sua faixa etária, em 2010. Antes, já conquistara um honroso segundo lugar e era recebido com carinho por todos. Tudo isso conquistado sem nunca deixar de trabalhar.
Silveira está prestes a completar 84 anos –a festa será no mês que vem--, mas continua trabalhando como se garoto fosse. Diz que um dos prazeres de sua vida é servir aos outros, coisa que fez ao longo de toda a sua carreira profissional, sempre trabalhando em restaurantes de hotéis –hoje atua em um sofisticado estabelecimento em Campos do Jordão.
Começou cedinho. Quando a maioria das crianças ainda está lutando para completar a primeira etapa do processo escolar, ele já se candidatava a uma vaga em hotel. Era uma forma de enfrentar a infância difícil.
Oswaldo nasceu a 13 de janeiro de 1930 em São Sebastião da Grama, pertinho de Poços de Caldas. A família era grande, e o pai pouco fazia para sustentar os nove filhos, seis homens e três mulheres.
“Meu pai tinha uma mão santa para curar pessoas. Dava remédios de homeopatia, era procurado por gente que vinha de longe. Ele não cobrava nada e ainda dava alguns remédios de graça, recebendo como recompensa como recompensa uma galinha, um porco, uma novilha...”
Isso nem de longe resolvia os problemas domésticos, e até hoje se percebe uma certa mágoa nas palavras do maître maratonista: “Meu pai não trabalhava, só enrolava, fazia os filhos trabalharem”. As coisas pioraram quando a mãe morreu: “Eu tinha sete anos, fomos jogados para o mundo, porque meu pai se casou de novo  com uma viúva, ela tinha quatro filhos, foi o fim do mundo”.
O jeito foi tratar de construir o próprio mundo. Com 12 anos, andando pelas ruas de São Paulo, bateu à porte de um hotel procurando trabalho. “Eu não tinha Carteira do Trabalho, porque era preciso saber as quatro operações matemáticas. Aprendi sozinho. Quando consegui, foi como se recebesse um troféu, o primeiro da minha vida.”
O começo foi como mensageiro: “Naquela época e nas minhas condições, equivalia a fazer tudo o que me mandasse fazer”. Ele tirava o pó dos móveis, buscava água nas fontes e trazia os garrafões cheios, pesadões, atendia a porta na madrugada, carregava malas.
Com alguns anos de trabalho, conseguiu promoção para commis (ajudante de garçom). Foi nessa função, ainda menor de idade, que conheceu a moça com quem iria se casar –o casamento já dura quase 60 anos, e o casal tem duas filhas.
A mulher não corre; as duas moças também não. Silveira, por assim dizer, corre pela família inteira.
Daquela primeira prova de 6 km no Ibirapuera, passou com elegância e galhardia para distâncias maiores: 10 km, meias maratonas. Mantinha sempre a disciplina e, já sessessão, foi enfim apresentado à maratona. O ponto de encontro não foi no asfalto nem nas trilhas, mas no restaurante em que trabalhava como maître –chefe dos garçons—, em um hotel de Campos do Jordão, na serra paulistana.
Todas as imagens são do Arquivo Pessoal de Oswaldo Silveira

Por causa da altitude –fica a mais de 1.600 metros acima do nível do mar--, das suas trilhas e da tranquilidade, a cidade é usada por maratonistas de elite como local de treinamento. Vez que outra, grupos de maratonistas amadores também aproveitam as belezas locais para inspirar sua preparação.
Foi o que aconteceu naquele ano, quando um grupo treinado por Wanderlei de Oliveira se hospedou no hotel em que Oswaldo trabalhava: “Eles me viram treinando e me convidaram para treinar com eles. Fomos dar uma volta ao mundo: é um treino de 22 km, diziam que quem conseguisse terminar aquele treino estava apto para correr a maratona de Nova York”.
Não preciso nem falar que o maître corredor –até então não maître maratonista—completou o desafio com louvor. Todo mundo ficou entusiasmado e as engrenagens da rede amigos do simpático senhor começaram a se mover para que Silveira pudesse dizer “Presente!” no asfalto de Nova York.
O patrão contibuiu com US$ 500, um freguês do restaurante entrou com as passagens, um parente que vivia nos Estados Unidos ofereceu hospedagem e lá se foi Oswaldo Silveira para sua primeira maratona no exterior, em novembro de 1994.
“Terminei a prova em 4h21min25. Tomei um trem para Port Chester, onde estava hospedado na casa de meu cunhado. Na estação, comprei uma cerveja e pedi um copo, mas me disseram que não podia beber na estação. Levei a garrafa fechada a viagem toda, só fui beber quando cheguei em casa. Queriam me entrevistar, mas eu pedi licença para dormir um pouco, dar uma descansadinha. Dormi duas horas direto, acordei quase bom.”
Se já gostava de correr, agora mesmo é que passou a adorar. Rendeu-se ao canto de sereia da maratona, virou o Maître Maratonista. No ano seguinte, com 65 verões já transcorridos em sua vida, voltou a Nova York para mais uma participação na maior maratona do mundo.
“Caí ao passar em uma das pontes e esfolei a perna e o braço.Um policial que estava em frente à ambulância me disse:`Come with me`[Venha comigo]. Eu agradeci, mas respondi que não. Ele insistiu: ´You must come!`[Você tem de vir], ao que retruquei que não tinha de ir coisa nenhuma. Ele mandou ver: “Go to hell!”[Vá para o inferno!]. E eu agradeci novamente: `Thank you very much!`. E segui na minha corrida.”
Terminou sete minutos mais lento que no ano anterior, mas melhorou a posição na faixa etária, passando do 187º lugar para a 176ª colocação, com 65 anos. Mais de dez anos se passaram até que ele retornasse à maratona norte-americana –coisas da vida. Em compensação, voltou arrasando: esteve no pódio em todas as edições da maratona de Nova York em que participou desde então.
A mais bacana foi exatamente a corrida da volta, em 2007, quando foi vice-campeão na faixa etária –estava com 77 anos. “Havia 36 concorrentes na minha faixa. Corri vestindo meias brancas, calção preto e camisa vermelha onde meu nome estava escrito com letras bem grandes. Eu passava sempre pela direita e o pessoal gritava, `GO OSWALDO, GO BRAZIL`. Emocionante.”
Fosse pelo entusiasmo, fosse pelo apoio do público ou pela força e resistências construídas nos duros treinos em Campos do Jordão, Silveira fez então seu melhor tem no chamada Big Apple. Cortou nada menos do que 15 minutos em relação à sua marca de 1995, completando no tempo líquido de 4h13min38. No total, foi o 16.056º colocado entre 38.607 concluintes.
Assim sim! Ali era o seu lugar. Ainda pegou um terceiro posto em 2009 e, aos 80 anos, em 2010, chegou para ser campeão.
Fazia treinos de 26 km, ida e volta de uma choperia no centro de Campos do Jordão até o horto florestal; seus treinos de 20 km era ida e volta até o Belvedere, na estrada de Campos a São Paulo.
Chegou a fazer  296 km em um mês no processo de preparação. Além dos treinos de mais de 20 km que já fazia, ainda realizou dois longões de 30 km cada um. Para fortalecer o corpo, muito peixe, massa, legumes cozidos, saladas e doces, que ninguém é de ferro. A comida é moderadamente irrigada por suco de cevada (mais conhecido por cerveja), vinho e um uisquezinho de vez em quando.
O sujeito tem de estar bem para largar. E, uma vez tendo sido dada a partida, precisa ter ânsia de vencer.
“Saí na onde 2, eram três grupos, cada um saindo de uma ponte e se encontrando depois lá na frente. Foi quando teve o engarrafamento e eu segui `costurando`para fazer as ultrapassagens. Mandei bordar meu nome bem grande na camiseta e no gorro, a multidão gritava `GO, Go, GO`. Falavam `Oswaldo`, `isaldo`, `Valdo`, incentivando.”

Bem diz o ditado, porém, que “o apressado come cru”. Oswaldo acredita que aquele zigue-zague em busca de ultrapassagens, atrás de conquistar um posto mais à frente, por mínimo que fosse, acabou por prejudicá-lo: “Aquilo me desgastou um pouco. Fiz os primeiros 10 km em 56min, mas a meia maratona me tomou 1h56. Apesar disso, estava muito empolga, sentia que poderia ser o primeiro na minha categoria. No km 25, senti uma fisgada na barriga da  perna esquerda. Aquilo me assustou, diminuí o ritmo e não tive mais confiança. Mas no fim estava bem”.

O octagenário atleta completou no tempo líquido de 4h33, a sua pior marca em maratonas –a melhor foi 3h59 em Paris, em 1998, com 68 anos. “Mas foi a melhor. De noite, não conseguia dormir, lembrando a multidão que gritava meu nome. Quando cheguei a São Paulo, a TV me esperava em Cumbica para me entrevistar...”

A fama e as homenagens –no ano passado, saiu um livro sobre sua vida, “Correndo para Viver, Vivendo para Servir”, de Celly Adelina Monitor—não mudaram sua rotina de trabalho e de treinos. Não mudaram também os cuidados que dá ao corpo em cada prova, em cada momento de preparação: “Depois de alguns quilômetros, em uma prova, você precisa se analisar: ver os dedinhos do pé, o calcanhar, o tornozelo, a barriga da perna, o joelho, a coxa, a barriga e depois você vai subindo até a cabeça para você se analisar como é que você está. Porque tem pessoas que sentem dor em lugares diferentes, não é? Você precisa sentir como é que você está”.´
É uma regra básica para todos os corredores, ouvir o corpo, mas nem sempre a gente a cumpre. Também há muitos que não cumprem a recomendação de começar aos poucos, que Oswaldo faz, do alto de sua experiência de quase 30 anos de corrida:
“Primeiro, é preciso andar bastante e não deixar de fazer check-up. É importante saber onde tem algum defeito. Começar andando, correndo devagarinho e vai aumentando. Vai aumentando a carga horária. Se alimentar bem. Não dormir muito. Não pode dormir muito. Não dá tempo.”
Digamos que a receita não tenha unanimidade no que se refere às horas de sono –nesse terreno, como diz o povo, é cada um com seu cada qual. Mas as demais recomendações são referendadas por técnicos e manuais de corrida...
Mas Oswaldo é um corredor que vai muito além dos manuais. Basta ver como termina e começa sua semana:
Trabalho atualmente em um hotel em Campos do Jordão, de quarta-feira no jantar, quinta, sexta e sábado no café da manhã, almoço e jantar. No domingo, trabalho no café da manhã e almoço; em seguida, vou para São Paulo e danço das 19h às 22h.”
Frequentador do clube Piratininga, não escolhe ritmo para rodopiar pelo salão, mas gosta mesmo de samba. No dia seguinte, acorda cedinho para o treino com sua equipe, no Ibirapuera. Aconteça o que acontecer, não abandona a corrida: “É preciso ter determinação, mas esse sacrifício vale a pena para que se conquiste a longevidade com saúde e com qualidade de vida”.






  

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