Alguns de pura emoção, outros com certo temor, todos
tremeram quando ela pediu para tomar em suas mãos a pá e mergulhou o
instrumento no monte de areia à sua frente.
Apesar de um pouco trêmula pela idade, ainda em
recuperação de males que a levaram a ficar dias sem conta em uma UTI, ela
deixou de lado a bengala que lhe servia de apoio e partiu para a ação.
Foto Eleonora de Lucena |
Se fez forte e, com as mãos que tinha, com o vigor
adormecido de seus 85 anos, segurou a pá, mergulhou a ferramenta na terra,
conseguiu trazer dali um montinho de areia, ergue a pá por centímetros e ainda
teve forças para virar o instrumento, derrubando a terra.
Assim, com suas próprias mãos, de pé e sem que ninguém a apoiasse –braços protetores ficaram em seu redor, mas ela se mantinha erguida por si mesma--, contribuiu para o plantio de uma caramboleira no jardim Para Não Dizer que Não Falei das Flores, uma área muito especial no cemitério da Vila Formosa, na zona leste de São Paulo.
Assim, com suas próprias mãos, de pé e sem que ninguém a apoiasse –braços protetores ficaram em seu redor, mas ela se mantinha erguida por si mesma--, contribuiu para o plantio de uma caramboleira no jardim Para Não Dizer que Não Falei das Flores, uma área muito especial no cemitério da Vila Formosa, na zona leste de São Paulo.
Ninguém conseguiu conter as lágrimas em meio a palmas
para o vigor e exemplo de Ilda Martins da Silva, viúva de Virgílio Gomes da
Silva, o Comandante Jonas, primeiro combatente da democracia desaparecido
depois de passar pelas câmaras de tortura da Oban (Operação Bandeirantes), em
29 de setembro de 1969.
A cerimônia, no final da manhã de 9 de outubro último,
marcou o encerramento de homenagens ao Comandante Jonas que vinham desde o
início da manhã, começando com uma grande corrida pelos escaninhos da memória, estimulados
pelas ruas de São Paulo.
Gregório, na extrema esquerda, e a turma de corredores presentes à Corrida pela Memória Virgílio Gomes da Silva |
Pouco antes das sete horas, éramos nove os corredores
reunidos nos altos da zona norte da cidade, no Jardim Elisa Maria, no início da
rua Virgílio Gomes da Silva, a cerca de 27 quilômetros do cemitério de Vila
Formosa.
Chamados por Gregório, filho caçula do Comandante Jonas,
lá estavam seu irmão e sobrinhos, além de alguns integrantes do grupo
Corredores Patriotas Contra o Golpe. Parentes e amigos que não enfrentariam o
percurso também se reuniram no local para incentivar os corredores e apoiar
nossa jornada cruzando São Paulo.
Todos celebrávamos a memória de um nordestino,
sindicalista, líder democrata e guerrilheiro –representando a Ação Libertadora
Nacional, organização liderada por Carlos Marighella, Virgílio foi um dos
comandantes do sequestro do embaixador norte-americano no Brasil, em 1969, a
mais espetacular ação da resistência armada à ditadura militar.
A região, um distrito da Brasilândia, tem outras tantas
ruas que homenageiam combatentes do povo e da democracia, no Brasil e no mundo –quem
sai da Virgílio Gomes da Silva logo desemboca na rua Carlos Lamarca, que
desemboca na rua Patrice Lumumba, chegando depois à Carlos Marighella, passando
pela rua Olga Benário.
A saída, depois de leve descida, logo oferece aos
corredores desafiadoras subidas até encontrarmos a artéria principal da região,
a avenida Deputado Cantídio Sampaio –por ironia, um apoiador do golpe militar
de 1964.
De lá tivemos belíssimas imagens do portento que é São
Paulo, entronizada como Selva de Pedra pelas artes noveleiras. Uma imensidão de
prédios que se estende até onde a vista alcança.
Víamos os baixios da área
central, pedaços da zona oeste, os altos da Paulista, as antenas de redes de
TV, prédios que se tornaram marcos no perfil da cidade.
Nem sentindo o cansaço, em oito quilômetros chegamos à
ponte da Casa Verde, cruzamos sobre o rio Tietê, atingindo enfim uma zona mais
plana, na área mais central da cidade.
Cruzando a marginal do Tietê |
Entramos pela Rudge, fazendo pedaços do percurso da
tradicional corrida São Silvestre, passamos pela praça princesa Isabel,
enveredamos pela Duque. Na esquina com a São João, o grupo de apoio nos
esperava com bebidas e aplausos; havia também reforços na homenagem a Virgílio
Gomes da Silva.
Naquela esquina, na Duque de Caxias com a avenida São
João, aconteceu a prisão de Virgílio Gomes da Silva, cuja figura estava
entalada na garganta da ditadura como um espinho malevo a cutucar a dor e a
humilhar os poderosos –ele era o Comandante Jonas.
Nos tempos pós-ditadura, quando ficou moderninho ironizar
o enfrentamento com a brutalidade instalada no país, Virgílio foi pintado como
um nordestino grosso, rude, também ele quase grotescamente brutal. A caricatura
saiu em filme inspirado em livro produzido por um ex-companheiro de jornada.
Coube a outro ex-companheiro de lutas, o jornalista
Franklin Martins –que, representando o MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de
Outubro), foi outro líder do sequestro do embaixador—fazer o desagravado do
Comandante Jonas.
“Era um homem
valente e determinado, tranqüilo e atento, entusiasmado mas com os pés no chão.
Nasceu no interior do Rio Grande do Norte e, como tantos nordestinos, migrou
para São Paulo, onde tornou-se operário têxtil, ativista sindical e militante
do Partido Comunista Brasileiro. Em 1962, durante um comício pelo 13°salário,
foi ferido a bala. Em 1967, deixou o PCB junto com Carlos Marighella, fundando
a Ação Libertadora Nacional. Fez treinamento de guerrilha em Cuba e, ao voltar,
tornou-se um dos mais destacados chefes militares da ALN, tendo comandado
dezenas de ações armadas.
“Ninguém é obrigado a considerar Jonas um herói pelo fato de ele ter pago por suas idéias e por sua militância um preço que poucos aceitariam pagar. Talvez ele fosse um homem mais rico interiormente do que admitem os preconceitos elitistas dos inventores do Jonas do filme. Ou talvez ele desse maior valor à liberdade e à dignidade que outras pessoas, e não fosse de regatear ou barganhar quando elas estavam em jogo. Nos tempos da luta armada, essa qualidade era chamada de “firmeza ideológica”. Hoje, com mais simplicidade, eu a chamaria de caráter. Jonas tinha caráter.” (leia o texto de Franklin Martins CLICANDO AQUI).
O testemunho de Franklin foi repetido, com emoção transformada às vezes em choro incontido, pelo jornalista Antonio Carlos Fon, ex-militante da ALN, detido no mesmo dia 29 de setembro de 1969, ali no exato local em que fizemos nossa parada na Primeira Corrida Pela Memória Virgílio Gomes da Silva, em frente ao número 312 da avenida Duque de Caxias.
Antonio Carlos, o “Fonzinho”, um dos que nos receberam no
local, nos fez um brevíssimo relato daqueles momentos terríveis:
“Em 1969 nós morávamos aqui quando, no dia 29 de setembro, o apartamento nº
32 foi invadido pelos militares e policiais da Operação Bandeirantes e eu, meu
pai e minha irmã Celeste fomos presos.
"Algumas horas depois, o camarada
Virgilio Gomes da Silva, o comandante Jonas, da Ação Libertadora Nacional, foi
pego ao chegar a nossa casa.
“Talvez eu só esteja vivo porque ele
foi preso, já que foi para dar espaço para que fosse torturado que eu fui
tirado do pau-de-arara. Ouvi seus gritos de “Vocês estão matando um
brasileiro”, enquanto era massacrado até à morte.
“Os militares nunca entregaram seu
corpo, que se encontra desaparecido até hoje. Agora que os herdeiros do ódio e
da exploração de classes, nacionais e estrangeiros, tentam de novo impor uma
ditadura em nosso País, minha esperança é a de que Virgílio também tenha
deixado herdeiros para enfrenta-los.
“Glória eterna ao Comandante Jonas!”
Irmão de Fon,
o advogado Aton também foi companheiro de militância de Virgílio. Para nós
todos, leu um depoimento que lembra a vida do Comandante Jonas e a luta pela
democracia, hoje cada vez mais necessária.
Eis o texto lido por Aton na primeira parada de nossa corrida, já então com cerca de 12 quilômetros percorridos:
“Há quarenta e sete anos, nesta mesma calçada, desta mesma esquina que confronta as avenidas São João e Duque de Caxias, mãos enlameadas na traição à pátria e aos trabalhadores capturaram um brasileiro para a morte.
“Aqueles que, de nós, estamos hoje
aqui, relembramos Virgílio Gomes da Silva – o Jonas – e sua jornada de vida e
de lutas nos passos de seus filhos e nos passos de nosso Povo.
“Os mesmos passos que trouxeram
Virgílio de Lagoa de Velhos, no Rio Grande do Norte, para unir seu destino ao
do operariado paulista, do proletariado brasileiro. Nas fábricas do extremo da
Zona Leste, na Nitroquímica; no Sindicato de seus trabalhadores e nas lutas dos
comunistas, Virgílio conheceu que as necessidades de Lagoa de Velhos não
diferiam das de Suzano ou de São Miguel, não diferiam das de todos os
brasileiros.
“Os mesmos passos que o levaram ao
comunismo, levaram Virgílio, quando chegou o tempo da Ditadura, quando chegou o
tempo do terror, quando chegou o tempo do temor, ao Sul do Brasil e ao Uruguai,
onde os caminhos potiguares se ligaram às veredas latino-americanas. Os passos
de Virgílio se fizeram mais rápidos e se fizeram mais longos para cruzarem com
os de Fidel e do Che. E, no latino-americanismo, se reconheceram
internacionalistas e, por isso mesmo, ainda mais brasileiros.
“Nas armas de Marighella, Virgílio se
fez Jonas e foi feito Comandante. Nos passos de Jonas, muitos de nós
encontramos nossas rotas; nos passos de Jonas, muitos de nós – como
Fleurizinho, Benetazzo, Mortati e Fogaça Balboni, entre eles – apostamos nossas
vidas.
“E no dia 29 de setembro de 1969, as
forças da ditadura, as forças do terror, as força do temor capturaram Jonas. E
mataram um brasileiro.
“Estamos aqui hoje para recordar um
brasileiro e reverenciar todos os que, como ele, souberam sê-lo. Numa homenagem
que nasce nos passos dos filhos de Virgílio para encontrar os nossos, muitos já
trôpegos, mas ainda embalados nos sonhos de Jonas.
“Os passos dos filhos de Virgílio
nesta jornada de hoje nos recordam que os de Jonas marcaram nossas ruas, nosso
futuro e nossas almas.
“Agora, tantos brasileiros estão
sendo chamados, uma vez mais, a enfrentar o tempo de lutar, o tempo de não
temer. Mas, como há quarenta e sete anos, como os filhos de Virgílio, tantos
mais filhos de Jonas estão brotando, brasileiros.
“Esses passos e essa homenagem recordam que ainda se pode lutar e morrer pelo Brasil, quando necessário. Porque aprendemos nos exemplos de combatentes como Jonas, que a alternativa da Pátria é a Vitória: Pátria Livre, Venceremos!.”
Acompanhando tudo em silêncio, também estava na celebração Celso Horta, o último a ver Virgílio com vida. Hoje jornalista, foi militante da ALN –com o Comandante Jonas e os irmãos Fon formava o GTA - Grupo Tático Armado.
Segundo me disse
Gregório, Celso lembra que, na prisão, a polícia o colocou numa sala com Virgílio.
“Ele conta que, numa sessão besta de pancadaria, perguntavam ao meu pai se o
reconhecia. Claro não saiu uma palavra da boca dele. Celso ainda conta que, num
determinado momento, os torturadores se ausentam da sala, e eles aproveitam pra
manter um diálogo silente com o olhar.”
De coração
apertado e mente aberta, os pensamentos voando pela situação que o país vive,
de rompimento do estado de direito, de entreguismo e ameaça às liberdades
democráticas e às mais elementares garantias constitucionais, seguimos em
frente cruzando as ruas de São Paulo.
Beliscamos a São João com a Ipiranga, atravessamos o viaduto Santa Ifigênia, bordejamos o largo São bento, mergulhamos lomba abaixo na ladeira Porto Geral e irrompemos pela zona leste até encontrarmos a rua da Mooca, portal para a imensa região onde se localiza o imenso cemitério de Vila Formosa, maior de América Latina.
Na rua da Mooca, cruzamos sobre os trilhos que abraçam a região central e servem como espécie de muralha separando o centro da periferia leste; ao nosso lado, as ruínas da fábrica da Antártida, a primeira em que Virgílio trabalhou quando chegou a São Paulo, retirante.
Tinha então
pouco mais de 20 anos –nasceu em Sítio Novo, RN, em 15 de agosto de 1933. Aos
24, entrou para a Nitroquímica, onde começou sua militância sindical e logo se
tornou membro do Partido Comunista; foi também lá, durante uma greve da categoria,
que ele conheceu a mulher de sua vida, Ilda, sindicalista.
Eles se casaram em 21 de maio de 1960.
A noiva começou o
casório fazendo uma concessão ao parceiro –como era mais alta que Virgilio,
tirou os sapatos na hora da foto oficial da cerimônia. (Fiquei sabendo
disso em conversas durante uma outra corrida, realizada no início deste ano e
parte de meu projeto CORRIDA POR MANOEL; saiba mais CLICANDO AQUI).
Os dois tiveram quatro filhos. Três deles –Vladimir, então
com oito anos, Virgílio, 7, e a neneca
Maria Isabel, com quatro meses—foram presos com a mãe, dias depois da prisão e
assassinato do Comandante Jonas. Gregório, que organizou nossa jornada do
último domingo, estava na época em outra cidade e escapou da violência naquele
momento.
Ao site “Torre das Donzelas”, Ilda contou ter ficado presa por nove meses, dos quais quatro,
incomunicável, sem saber o que tinham feito com seus filhos.
Diz o texto:
“Primeiro, ficou detida na Operação Bandeirantes, depois no Dops paulista e,
por último, no presídio Tiradentes, na ala conhecida como Torre das Donzelas.
Depois de sair da prisão, Ilda fugiu do país com as crianças. Não havia
notícias de Virgílio. Eles foram até Foz do Iguaçu, atravessaram a ponte a pé,
tomaram o ônibus para Assunção, de lá para Córdoba, na Argentina, e de Córdoba
para Santiago. O Chile de Salvador Allende foi a casa da família até 1972,
quando Ilda e as crianças foram para Cuba. Lá, ela trabalhou como operária e
Wladimir, Virgílio, Gregório e Maria Isabel se formaram em engenharia. Voltaram
ao Brasil em 91.”
Os restos
mortais de Virgílio nunca foram identificados. Pesquisas da Comissão da Verdade
conseguiram, porém, determinar que ele e outro preso político desaparecido,
Sérgio Roberto Correa, foram enterrados em vala comum no cemitério de Vila
Formosa.
Por isso, no
início deste ano, inauguraram o jardim memorial em que dona Ilda, agora com 85,
esperava os corredores participantes da jornada em memória ao Comandante Jonas.
Chegamos em
número maior ao que saímos. Por volta do quilômetro 20 de nosso trajeto, filhas
de alguns corredores, netas do Comandante Jopnas, se somaram ao grupo.
Todos juntos
cruzamos o portal do cemitério e fomos até o jardim Para Não Dizer Que Não
falei das Flores.
Vestida com
uma calça esportiva, a camiseta criada especialmente para a corrida, um cardigan rosa e um xale bem quentinho, dona Ilda estava sentada em uma cadeira dobrável, dessas de
usar na praia.
Na hora das
homenagens, porém, ergue-se sobranceira e soberana, caminhando com sua bengala
até a roda que formamos, corredores, parentes e amigos, mais o pessoal do
Serviço Funerário que tinha trabalhado na pesquisa e produção para a construção
do jardim , que foi inaugurado no início deste ano.
Gregório,
atuando como anfitrião do projeto, agradeceu as homenagens ao pai. Falaram
ainda um ex-líder sindical dos Químicos, categoria a que Virgílio pertenceu, o
vereador que propôs conceder ao Comandante Jonas o título de Cidadão Honorário
de São Paulo (saiba mais CLICANDO AQUI). Até eu tive a honra de falar ali,
representando os corredores e os projetos de corridas pela memória.
Quando tudo
parecia terminado e já íamos nos encaminhar para o plantio da árvore de
carambola, dona Ilda pediu a palavra.
Com esforço, mas voz firme, fez um
agradecimento àquela celebração da memória do marido perdido, nos emocionou e
aqueceu o coração com sua bravura.
Como se isso
fosse pouco, voltou a surpreender a todos instantes depois, quando sua foz
rouca voltou a ser ouvida, quase imperial, pedindo a pá para também contribuir
na plantação do sonho e da esperança.
Encerrado o plantio, a atriz Danielle Barros – também integrante dos Corredores Patriotas Contra o Golpe – fez a leitura de uma canção de Victor Heredia, que diz “ainda cantamos, ainda temos esperança” (ouça a música CLICANDO AQUI).
Encerrado o plantio, a atriz Danielle Barros – também integrante dos Corredores Patriotas Contra o Golpe – fez a leitura de uma canção de Victor Heredia, que diz “ainda cantamos, ainda temos esperança” (ouça a música CLICANDO AQUI).
Foto Rodolfo Lucena |
Ao final,
enquanto nos dispersávamos, Ilda descansou um pouco, sentada ereta, firme e
forte, num banco de cimento.
Sua imagem é um hino à vida.
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