9.5.17

Tombo de corredor na rua deixa dedo sem movimento e provoca reflexões doloridas em sexagenário militante

Catador de milho.
Não se trata de nobre profissão ligada às lides agrícolas, muito menos atividade do ramo da culinária. É tão somente apelido pejorativo, gravado em tom de deboche por experientes datilógrafos nos novatos, inexperientes e incompetentes no trato das máquinas de escrever.
São conceitos, profissões, alcunhas e equipamentos, todos eles, do século passado. Merecem explicação.
As máquinas de escrever, diz o noticiário internacional, continuaram no mercado até o início desta década. Em abril de 2011, a empresa indiana Godrej and Boyce encerrou a produção do equipamento –era, ao que se sabe, a última fabricante de máquinas de escrever ainda ativa no mundo.
A decadência viera a cavalo. Desde muitos anos antes a venda do produto era decadente. Por volta de 2008, nenhum dos repórteres que eu comandava, na redação do caderno Informática, da “Folha de S. Paulo”, jamais havia usado uma máquina de escrever.
Perderam (acho).
A máquina de escrever era uma obra de arte. Os conceitos que permitiram sua construção datam do século 18, mas muito antes, em 1575, um tipógrafo italiano, Francesco Rampazzetto, já inventara um equipamento para imprimir letras em papel.
O equipamento que chegou ao século 20, porém, é fruto de evolução ocorrida ao longo do século anterior, quando muitos inventores criaram modelos os mais diversos. Até um brasileiro entrou na dança, o padre paraibano Francisco João de Azevedo, que apresentou seu invento em exposições em Pernambuco e no Rio, em 1861, sendo premiado pelo imperador dom Pedro Segundo.


As primeiras fábricas são da segunda metade do século 19. Quando chegou o novo século, os escritórios mais modernos já contavam com máquinas reluzentes, produzidas em ferro.
A estrutura básica ficou sempre a mesma: um rolo por onde rodava o papel, uma fita de impressão movida por roldanas e um teclado que comandava as teclas em cuja ponta estavam colocadas as letras. Quando a tecla batia na fita, deixava impresso no papel a letra desejada.
O processo de escrever era muito barulhento. Girar o rolo por onde passava o papel, para que ele subisse e pudesse uma nova linha ser escrita, produzia o clec-clang das engrenagens; havia uma campainha que avisava que tinha terminado a linha. E, sobre tudo isso, como uma nuvem sonora, reinava o tec-tec-tec nas teclas batendo no papel, impacto só um pouquinho, um tantinho apenas diminuído pela fita tintada, que podia ser preta, vermelha ou preta e vermelha.
Teclado lembra o da máquina de meu avô
Meu avô Ary, o único que conheci, tinha em seu escritório, na casa mesmo em que morava, uma enorme máquina de escrever. Preta, toda preta –quase toda: as teclas, redondas, em baixo relevo, tinham fundo verde escuro onde era escrita em branco (ou bege ou gelo, qualquer coisa meio desmaiada) a letra em questão.
Nunca usei a máquina de meu avô, que eu saiba. A primeira que usei foi a de meu pai, vários anos depois.
Era um modelo bem mais moderno, ainda que também todo feito em ferro. Clara, em tons de bege e marrom claro, ficava montada sobre um estrutura feita  –hoje imagino eu—de grosso papelão e couro de ótima qualidade. Tinha tampa também de couro, tudo de um laranja escuro bem elegante; quando fechado, o conjunto se assemelhava a uma maleta de boas proporções. A máquina era portátil.
Máquina semelhante à de meu pai
Foi nela que escrevi meus primeiros contos. Foi nela que produzi meu primeiro livro. Foi nela que treinei aloucadamente datilografia para enfrentar um concurso para o que seria meu primeiro emprego de carteira assinada, em meios de minha adolescência.
Precisava treinar mesmo, porque datilografia era uma arte, uma técnica, uma habilidade muito prezada nos escritórios de então. Secretárias da diretoria deveriam ser “exímias datilógrafas”; mesmo para vagas muito subalternas, como a de auxiliar, que eu pretendia, havia exigência de desempenho e produção.
Pois datilografar não significa apenas grafar com os dedos, como indica a etimologia da palavra. Há muito mais. Envolve especialmente a capacidade de copiar textos batucando no teclado com os dez dedos, sem olhar as teclas ou o papel em que o artigo está sendo impresso.
A habilidade se desenvolvia por ensaio e erro, repetição em cima de repetição, memorização completa e absoluta do posicionamento de cada letra no teclado. A memória da letra ficava na ponta dos dedos, talvez.
Um bom datilógrafo escrevia um ditado no escuro ou de olhos fechados.
Havia cursos, aulas especiais para ensinar a arte. Mas eram caros, assim como os ensinamentos por correspondência, comuns na segunda metade do século passado. Se nem isso fosse possível, manuais baratinhos garantiam que, com persistência, qualquer um aprenderia o riscado.
Eu não.
Tentei muitas vezes, usando livrinhos ensebados como orientação. Olhe apenas o texto a ser copiado, não desvie os olhos para o teclado, deixe as mãos pousadas acima das teclas, soltas, pairando no ar, enquanto os dedos se movimentam...
Nada disso funcionava comigo. De tanto tentar, pelo menos memorizei a posição das teclas. Mas jamais consegui imprimir o “A” com a mesma intensidade, força e cor do “S”. Para acionar a primeira tecla, era preciso usar o mindinho da mão esquerda; para o “S”, o forte indicador dava verdadeiro coice na tecla, repetido em seguida no “G” das primeiras lições, que envolviam escrever vezes sem conta a maldita sequência ASDF e, na evolução, ASDFG. Com a mão direita, fazia-se ÇLKJ e, depois, ÇLKJH. Na evolução dos exercícios, era preciso alternar as sequências na mesma linha, produzindo blocos e blocos de ASDFG ÇLKJH.
Algumas letras nem sequer eram impressas, nas minhas tentativas. Outras ficavam fortes demais. Muitas vezes, me esquecia de acionar a barra de espaços, o que deveria ser feito com o dedão, ora o da mão direita, ora o da esquerda.
Com o que me tornei catador de milho, ou seja, o sujeito que, incapaz de usar os dez dedos das mãos para comandar o teclado, emprega apenas o indicador da mão direita e faz uso da esquerda somente para apoio –troca de linha, acionamento da maiúscula e outras particularidades.
Cartuns da época, que reverberavam o termo pejorativo, mostravam o catador de milho como uma espécie de deficiente mental, deficiente motor ou sei lá que mais. Vem-me à memória ilustração ou desenho animado  em que um sujeito de olhos revirados, cabeça girada para um lado, babão, tenta acionar uma tecla com um indicador em riste. Enfim, o complemento do perfil de um débil mental seria a inabilidade para acionar o teclado da máquina de escrever ... Dã!
Descobri que usar os dois indicadores não era boa prática. O resto da mão ficava pesando do lado e havia pouca agilidade dos movimentos. Aos poucos, fui acrescentando à dedografia o “pai de todos”, batucando alternadamente com um e outro, usando as mãos esquerda e direita com algum grau de agilidade.
Claro que tinha (tenho) de ficar sempre olhando o teclado, conferindo de vez em quando se aquilo que eu havia datilografado (ou pensado que tinha datilografado) era exatamente o o que havia sido impresso no papel em frente. Se fosse para copiar algum documento, sai de baixo, tinha de ficar olhando para o original, olhando para o teclado e olhando para o papel na máquina!!!.
Mas dava certo. Tanto é que passei com alguma facilidade pelo tal teste para me tornar auxiliar de escritório em um banco de Porto Alegre. Era preciso datilografar a um ritmo de 160 toques por minuto; minha média, se bem me lembro, estava em 180. Melhor do que nada para um dedógrafo catador de milho.
O emprego no banco não durou quase nada, três dias apenas entre o registro da admissão e minha carta de demissão, mas segui escrevendo à máquina, usando a máquina de escrever com habilidade crescente. Nunca cheguei a ser exímio datilógrafo (ou digitador, nos termos informáticos de hoje), mas ganhei capacidade mais do que suficiente para não ser chamado de catador de milho.
Escrevi em dezenas de máquinas diferentes, conheci os primeiros teclados dos primeiros terminais de computador a funcionar no Brasil, experimentei teclas de plástico e de baquelite, de computadores portáteis e de equipamentos de mesa, as minúsculas teclinhas malditas dos primeiros telefones com teclado e os teclados virtuais que aparecem nos brilhantes vidros (telas) sensíveis ao toque de nossos laptops, tabuletas eletrônicas e telefones celulares.
Agora mudou tudo. Um tombo na manhã da última quinta-feira machucou profundamente minha mão, esmigalhou a base de um dedo por quem tinha grande simpatia e ainda provocou fartura no cotovelo, reduzindo minhas forças e a capacidade de movimentação do braço direito. 

Pelo que me lembro, foi assim: eu tinha acabado de completar dez quilômetros de um treino em que deveria inteirar vinte e sete quilômetros, na minha busca de sexagenário para completar, ao longo deste ano, distância equivalente à de sessenta maratonas somadas todas elas e transformados em um pacote só.
O treino, como todos os outros que venho fazendo desde que sofri uma fratura por estresse no joelho direito, era aos soluços: corrida oitocentos metros, caminhava duzentos metros, corria de novo, caminhava novamente e assim por diante. Seriam 25 blocos dessa sequência, mais um quilômetro caminhado antes e outro depois.
Era para ser um treino de 27 quilômetros; o tombo atoru a distância para apenas dez quilômetros e trezentos metros

É um exercício de paciência, um teste de concentração, mas dificulta chegar àquele estágio gostoso dos treinos longos, em que o pensamento viaja, e o corpo parece imune às vicissitudes da vida.
Apesar disso, eu conseguia deixar a mente livre dos problemas do dia a dia, da velhice, do viver. Ficava contando quilômetros, sentia que estava mais rápido do que em treino anterior, começava a calcular em quanto tempo completaria o treino, sonhava com reconhecimento de meu esforço, imaginava que conseguiria, enfim, patrocínio ou, pelo menos, apoio que tornasse menos custosa a trajetória até o final deste ano.
Completei o décimo quilômetro em sete minutos e cinquenta e um segundos. A mim, pareceria que eu estava acelerando sempre –noto agora, porém, ao revisitar o mapa de desenho produzido pelo relógio com GPS, que foi aquele exatamente o quilômetro mais lerdo de todo o treino.
Não era a sensação que tinha. Ao contrário, me imaginava melhorando tempos, completando mo treino todo com vantagem, talvez, de mais de cinco minutos em relação à ultima experiência em distância semelhante.
Não quer dizer nada, ninguém ganha nada com isso e está longe de ser um assombro, mas significa que alguma coisa certa estou fazendo ao longo dessa minha preparação. É uma preparação, de certa forma, sui generis, pois não tenho por objetivo alcançar um tempo, quero apenas continuar correndo e, se possível, aumentando a quilometragem sem me machucar. Assim, eu me preparo para estar preparado e fico preparado para me preparar.
Preciso treinar. Meu corpo nunca foi e nunca será o de um atleta; nasci para ler, escrever, ficar atirado num sofá vendo televisão e comendo batatas fritas.
Bueno. Não costumo comer batatas fritas, não vejo televisão e, de certa forma, ainda que com muitas limitações, sou um atleta. Velho, cansado, machucado, mas construindo um caminho, mesmo torto e nem sempre elegante.  
Assim é que, pouco depois do décimo quilômetro de corrida na manhã daquela quinta-feira fria, que tinha começado com grande nebulosidade, uma cerração firme mais comum em dias invernais, eu me sentia satisfeito, tinha a mente limpa e parecia até veloz.
Para melhorar as coisas, atravessei a rua Doutor Pinto Ferraz, que foi um professor de direito, para chegar a um raro quarteirão largo da rua Domingos de Morais, que presidiu a Companhia de Bondes de São Paulo no final do século dezenove. Não só largo como também razoavelmente vazio...
Mesmo com a mente à voltas com cálculos de tempo e sonhos de patrocínio, percebi que havia ali uma janela de oportunidade para a velocidade. Acelerei, movi as pernas mais rapidamente, inclinei um pouco mais o corpo para a frente.
E tropecei. E caí.
Do jeito que vinha, não deu tempo nem para me proteger na queda. Vi o chão chegar e percebi que ia bater de cara no concreto. Ainda pude notar o desvão no cimento que interrompeu minha caminhada, ainda deu para mexer o corpo de jeito tal que não sei qual.


Senti a cabeça, de lado, encostar no chão, no cimento, ralar o concreto. Desmaiei, talvez, imagino, por alguns décimos, centésimos de segundo... Se não desmaiado, com certeza imóvel, talvez tentando perceber e avaliar o grau do estrago.
De cada lado, alguém pegou meus ombros, começaram a me ajudar a me virar, a me levantar. Consegui dizer: “Quebrei o braço!”, e foi só, estava absolutamente sem saber o que fazer.
Perguntei a um dos homens que me ajudaram se havia sangue na minha cabeça, no meu rosto. Nada, me disseram, e ainda perguntaram se eu precisava de ajuda. Agradeci, disse que não. E então, só então vi minha mão direita.
O dedo anular tinha saltado, se transformado em ponte sobre o “pai de todos”, numa versão aterrorizante de dedos cruzados –no passado, entrelaçar os dedos significava ficar liberado de um juramento ou que se estava dizendo uma mentira, com pleno conhecimento do fato, mas perdoado pelos poderes do universo graças ao tal sinal.
Essa espécie de figa protetora, usada pelos primeiros cristãos como forma de fazer uma cruz sem atrair a atenção de perseguidores de sua fé, porém, era sempre construída com o indicador e o “pai de todos”, o dedo médio, nunca com o coitado do anular, cujos ligamentos tinham sido arrebentados na queda, assim como fora sua base fraturada em três pontos.
Na hora, não percebi; mais tarde, porém, dores no braço e no antebraço indicaram outra vítima do tombo: também o úmero tinha sofrido fratura, na ânsia do corpo de evitar choque mais desagradável entre a cabeça e o chão.
Rale o joelho, as mãos, havia sangue por tudo, mas não jorrando: arranhões grandes, vermelhos.
Consegui reunir bom senso que chega para ligar para um médico, o ortopedista maratonista que me acompanha há vários anos. O melhor mesmo era seguir para o pronto-socorro e cuidar logo do prejuízo para depois ver o que poderia ser feito.
No final das contas, não houve quase nada a ser feito. A fratura no braço era “boa”, não precisava nem sequer de imobilização, haveria de colar por si provavelmente na posição correta. É ela, porém, a que mais dores provoca, pois o braço está sem forças. Consigo levantar uma xícara, mas não um prato.
O dedo, porém, era outra história. A articulação havia sido atingida, queriam operar o quanto antes, o melhor seria ali mesmo, na hora.
Calma, cocada. Cirurgia não é assim coisa que se faz a qualquer momento, sem pensar, sem refletir, apenas porque parece ser o mais indicado para o ferimento. Pode não ser o mais indicado ou o desejado pelo ferido.
Vai daí que, conversa vai, conversa vem, noves fora, optei por deixar tudo nãos da natureza. Dando-lhe alguma ajudinha, mas nada muito dramático nem drástico.
Por isso, estou com a mão parcialmente presa por uma órtese que mantém meu dedo anular direito no lugar desejado pelos médicos, sem pender loucamente mão abaixo, mas também se ter tido a articulação consertada, coisa que envolveria placa, fios de arame e outras alquimias e arquiteturas que provocariam muitas atribulação ao corpo velho e cansado.

Posso correr com a órtese, que é uma espécie de tala mais moderna, mais leve, mais elegante. Posso tomar banho com ela e tenho a mão capaz de fazer muitas coisas, assim como impossibilitada de fazer outras tantas.
Digitar com elegância, por exemplo, está fora de cogitação.
Nos primeiros dias em que tentei batucar no teclado, experimentei fazê-lo com o indicador, apontando a mão para baixo, deixando o indicador apoiado no dedão. Não havia dor, nem sempre, pelo menos, mas também não havia muita produtividade.
Eu estava catando milho, tinha de novo virado catador de milho, como vozes pouco gentis se fizeram ouvir na minha memória, na minha mente, nas imagens de tempos passados.
Catar milho, nos teclados de hoje, é ainda mais problemático por causa da alta sensibilidade das teclas. A gente batuca com o indicador na tecla certa, mas, ao mesmo tempo, de forma solerte, o resto da mão esbarra em teclas outras, provocando  erros e confusões, atrasos e demora.
A mão direita, então, é vítima ainda maior, pois carrega o artefato de plástico moldável, uma peça agora rígida em azul royal, presa à mão por simples pressão, garantida por atilhos de velcro vermelho.
Consigo agora, depois de alguns dias de experimentação, usar os dedos médios para digitar, não mais catar milho. Há sempre dores, por que o movimento dos braços aciona músculos e tendões endurecidos e amarfanhados, ainda sofrendo os efeitos do trauma ou, talvez, de alguma forma maltratados pela lesão na cabeça do úmero.
Não sei. O que sei é que estou de pé. Tenho a mão inchada, o dedo anular preso e amarrado a ele o mindinho. Há dores que vêm e vão, há dores que ficam, não saem. Não é a pior situação do mundo, mas também não é a melhor.
Não paro de correr.
O acidente foi na quinta-feira, eu adiantei o longão de sábado, pois no sábado tinha compromisso, iria ouvir a fala inspirada de Pepe Mujica, o legendário ex-presidente do Uruguai.
Pois no domingo já corri cinco quilômetros, na segunda caminhei dez quilômetros e hoje fiz um treino de onze quilômetros.
Estou um pouco abatido. Sinto cansaço.
Azar. Parafraseando o poeta, digo que ainda tenho a corrida e o sentimento do mundo.
VAMO QUE VAMO!!!


Percurso de nove de maio de 2017
11,37 quilômetros percorridos em 1h42min14

Acumulado no projeto 60M60A
1.055,16 quilômetros percorridos em 187h47min09






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