1.6.15

Longão na chuva faz corredor de barbas brancas voltar aos tempos de infância

Meu amigo, minha amiga, veteranos da corrida e iniciantes nas artes de colocar uma perna na frente e outra atrás: está chegando a hora.

Já estamos no mês do desafio, quando acontece a maratona do Alasca: se tudo der certo e nada der errado, ela será minha primeira prova de 42.195 metros como aposentado.

Apesar de minhas hérnias, tendinetes, fasciites e outras porcarias mais que atrapalham o movimento de meu corpo, devo dizer que estou conseguindo –o trabalho de meus apoiadores na área de fisioterapia e na organização de meu processo de treinamento tem sido fundamental para essa conquista.

Na última semana fiz meu último longão de mais de 30 quilômtros. Como de costume, ataquei a distância em blocos de caminhada e corrida; dessa vez, foram oito séries de 300 m caminhando e 3.700 m correndo. Terminei sem dores outras que cansaço muscular e pés maltratados.

O mais importante: terminei alegre, confiante e rejuvenescido.

Talvez a chuva que atingiu a cidade naquele dia tenha contribuído para desanuviar meu espírito, sempre às voltas com a redução dos ganhos na aposentadoria, com as arrumações da casa e outras incomodações.

Foi no quilômetro 21 que a chuva começou. De início, fiquei apreensivo: pretendia terminar a rodagem no parque Villa Lobos, que é um local superaberto, onde há risco de ser atingido por um raio.

Lá ocorreram duas das 16 mortes por raio registradas na cidade de São Paulo em um período de dez anos 2000-2010.

Segundo o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), a chance de uma pessoa ser atingida por um raio se estiver caminhando em uma área aberta de um parque na capital paulista  é de seis para 1.000, probabilidade mil vezes maior do que a média geral do Estado, que foi de seis para um milhão na década estudada.

A chuva estava fininha, e eu tinha acabado de chegar à praça Conde de Barcelos, que é uma das delícias da cidade. Super-hiperarborizada, tem lugar para aas brincadeiras da criançada, calçada que faz o perímetro (juntando com uma pracinha próxima, dá uma volta de mil metros, que beleza!) e alamedas internas.




Tudo limpo, lindo e vigiado de perto por seguranças que rondam aquelas ruas pontilhadas por mansões, com garagens repletas de carros importados. Fico pensando o que diria disso tudo o homenageado da praça, o tal conde português, que foi também poeta e músico (saiba mais sobre ele clicando AQUI).

O que importa é que, ali, estou protegido –ou acredito estar—de eventuais raios na manhã chuvosa.


As descargas elétricas não vêm, e eu sigo com meus planos, depois de já ter rodado por boa parte da cidade, bordejando parques que costumam ser territórios dos corredores (veja o mapa abaixo).




Seguindo pela Estados Unidos, havia chegado ao lado do Ibirapuera; descendo pela Juscelino, fui até a Faria Lima, rodei pelo Parque do Povo, cruzei a marginal para seguir até próximo do parque Alfredo Volpi, que muitos chamamos de parque do Morumbi.

Era madrugada e ainda estava seco, mas os trabalhadores e trabalhadoras da noite, que costumam ficar na Cidade Jardim, já tinham abandonados seus postos quando por lá passei em direção à Cidade Universitária.

Na USP, encontrei velhas amigas, as capivaras que descansam às margens da imundície do córrego Pirajussara. Atravessei de volta o rio Pinheiros para ir até à já citada praça Conde de Barcelos, de onde me encaminhei para o Villa Lobos.




Foi lá que a chuva apertou, ficou mais fina, célere, fria. O melhor seria ficar pelado, mas, já que os costumes não permitem, pelo menos tirei a camisa para o banho público reparador.

Quantas vezes não fiz isso na infância, em Porto Alegre? As ruas próximas de minha casa inundavam, e a gurizada ia pilotar barquinhos de papel na correnteza formada nas sarjetas. Ninguém dava bola para os gritos de “Não vai me ficar doente, menino!”; se alguém algum dia ficou mal por causa das águas sujas, não sei.

O certo é que estou vivo e correndo, mais de 50 anos depois daquelas aventuras. E ainda, lá pelos meus 30 e poucos, 40 e poucos, voltei aos banhos de chuva, correndo com minhas filha pelas calçadas, pulando e gritando. Ê, coisa boa!




Aqui e agora, a alegria me deixa mais corajoso. Com mais de 25 km de treino, mais de três horas na rua, resolvo pegar as rampas do parque Cândido Portinari, vizinho de menor tamanho do Villa Lobos.

Sigo do músico ao pintor e do pintor ao músico, ao som do pingolejar do céu, vendo os desenhos que a água cria no asfalto, as poças que também me encharcam.

O treino já passa de quatro horas, vou até o fim, mais um quilômetro e outro, chego aos 32 desejados.
O quadril reclama, o joelho esquerdo avisa que existe, a lombar diz qualquer coisa, os pés pulsam vigorosamente. Mas dor, aquela dor desgraçada, intimidante, vexatória, abusiva, deprimente, esta não aparece.

Para o cronômetro e começo a fazer meus cálculos. Acho que vou conseguir completar a maratona. A musculatura vai sofrer, vai ser demorado, vou cansar. Mas vai dar.

Ou não. O certo é que, pelo menos durante um banho de chuva, é permitido a um aposentado sonhar.


Vamo que vamo!

3 comments:

  1. Parabéns, Rodolfo, pela perseverança na empresa! Os 42 virão! Parabéns também pelo texto, belo painel da cidade de São Paulo, enriquecido por histórias, dados e memória. Tenho muito prazer também em correr na chuva, chapinhar nas poças de água como o menino Jesus do Alberto Caeiro e relembrar a infância. Um abraço.

    ReplyDelete