18.2.16

Na rua Eli, Manoel Fiel Filho conheceu o amor de sua vida

Quando nasceu, a rua Eli era uma coisiquinha de nada. Tinha uma casa ali, outra acolá, no meio de um loteamento aberto no início dos anos 1920 pela Companhia Paulista de Terrenos. Só virou rua mesmo, de verdade, com registro na Prefeitura, anos mais tarde: foi entregue ao trânsito público em 1928, por ato assinado no dia 24 de agosto.

Eram apenas dois quarteirões, começando na rua Curuçá, já uma rua importante na Vila Maria –região norte de São Paulo—e terminando em uma leve subida, encostando na rua Araritaguaba, que hoje é larga e bastante movimentada.

Como gente, a rua Eli cresceu, espichou-se, ganhou corpo e comprimento. Novas glebas foram sendo incorporadas, expandia-se o número de quarteirões –os anos de 1940 e 1941 foram de grande expansão, com vários decretos municipais determinando ganhos de área. Apesar da importância crescente no bairro –notada pelo aumentando de quilometragem--, arquivistas, administradores e outros funcionários envolvidos nos registros se esqueceram ou nunca fizeram questão de nos contar a razão e o por que da denominação da artéria.

Vista da rua Eli a partir de seu ponto mais alto, na parte final -- Fotos Rodolfo Lucena


Para os que lá moravam, não fazia diferença, por certo. Chegava-se lá por precisão, necessidade, oportunidade. A rua abrigava gente trabalhadora, operários metalúrgicos, trabalhadores em tecelagens. Apesar do trabalho pesado, os ganhos eram poucos.

Quem podia construía uma peça nos fundos do quintal ou liberava um cômodo da casa para alugar para outros ainda mais precisados, que estavam a recém construindo a vida independente.

Era o caso, no final dos anos 1940, de Manoel Fiel Filho.

Nascido em família pobre, 14º de 17 filhos de um trabalhador do campo, desde pequeno enfrentou a enxada e a terra seca em Quebrangulo, no interior de Alagoas, a cerca de 130 quilômetros de Maceió.

A vida ficou mais difícil depois que a mãe morreu, e o pai teve de cuidar da casa, da roça e do sustento da filharada, que nem sempre tratava com a maior gentileza do mundo.

“Meu avô era um carrasco”, diz a filha caçula de Manoel, Márcia, que hoje vive em Bragança Paulista. Talvez fosse a dureza do cotidiano: “Eles eram sofridos”.

Uma hora não deu mais para Manoel. Com 17 anos, juntou o pouco que tinha, arregimentou os trocados que conseguira economizar, uma muda de roupa ou pouco mais e encarou horas a fio na traseira de um caminhão para chegar a São Paulo.

Foi buscar seus sonhos viajando num pau de arara –o mesmo apelido de instrumento de tortura usado nos porões do DOI-CODI, onde, mais de vinte anos mais tarde, Manoel iria ser assassinado.

Chegou à cidade grande sem saber fazer muita coisa: tinha a experiência das lides do campo e a vontade de trabalhar, ganhar o próprio sustento, conquistar uma vida melhor.

Conseguia um emprego, aprendia o ofício, avançava. Depois de alguns anos em São Paulo, trabalhou em padarias. Depois, foi ser cobrador de ônibus, uma linha que cruzava pela Vila Maria, onde Manoel já morava.

Primeiro, dividiu espaço em uma casa com seu amigo Antonio Pereira, eletricista de profissão. Mais tarde, foi viver nos fundos de uma casa na rua Eli. Lá conheceu o amor de sua vida.

E foi para lá que parti nesta manhã, no segundo dia de minha CORRIDA POR MANOEL. Queria mergulhar na história do cidadão e também aprender um pouco do que as ruas nos contam sobre a cidade em que vivemos.

Meu caminho cruzou a cidade do oeste ao nordeste. Cedinho, desci correndo a Consolação, passando pelo maior shopping a céu aberto de lustres no mundo –pelo menos, no dizer dos lojistas da região.

Logo ao ver o prédio onde funcionou, décadas atrás, o famoso bar Redondo, quebrei para a esquerda, enveredando pela avenida Ipiranga. Bem antes de chegar à festejada esquina com a São João, passei pela não menos famosa boate Love Story.

Inacreditável: às 7h24 de uma quinta-feira, a “casa de todas as casas”, onde o povo que trabalha na noite se reúne depois do expediente, estava bombando. 

O som do baticum chegava à calçada, onde alguns frequentadores ainda se cumprimentavam afetuosamente. Pensei até em fotografar o ambiente, mas o olhar pouco amistoso dos seguranças estilo armário me fez desistir da ideia...



No caminho para a avenida do Estado, passei ao largo do belo e octogenário prédio do Mercado Público, projetado pelo arquiteto  Francisco de Paula Ramos de Azevedo –que hoje é nome de praça ao lado do Theatro Municipal. Do lado de cá da rua, porém, as coisas não estava tão boas: talvez atingido por um carro, um poste mal se equilibrava, caído sobre a calçada.

Cada rua que cruzava contava um pouco da história da cidade. Primeiro, o entorno do mercadão, com suas ruas estreitas e fedidas, pequenos armazéns e distribuidores de mantimentos. A seguir, cortei ruas conhecidas pelo comércio que abrigam, com a São Caetano, a “Rua das Noivas”.

Havia que atravessar a avenida do Estado para adentrar na região norte da cidade. Passei peja João Teodoro, que sai do Bom Retiro e corta o Brás, repleto de lojas de roupas e confecções.

Artéria poderosa, movimentado centro comercial, a João Teodoro tem mais de 140 anos. Seu batismo oficial ocorreu em 1875. O padrinho foi o presidente da Câmara Municipal, Ernesto Mariano da Silva Ramos: "Proponho que se dê em sinal de reconhecimento aos relevantes melhoramentos feitos á esta Capital pelo atual presidente da Província, dê-se à rua que partindo do Campo da Luz se dirige a Ponte dos Lázaros o nome de Rua do Dr. João Theodoro". O homenageado era um jurista, catedrático de direito civil da Faculdade de Direito de São Paulo. Foi até presidente da então Província de São Paulo.

Gente fina, hein! Nada que mude a vida dos que hoje por ali vendem calças e calções, vestidos, camisetas, bonés, roupa de casar e roupa de correr.

Não deu nem para prestar muita atenção nas vitrines: havia que correr para achar a minha ponte para cruzar o rio Tietê. 



O caminho passava por homenagem a outro brasileiro ilustre: a travessia é nomeada em honra do ex-presidente Jânio Quadros (1917-1992), que fez da Vila Maria seu reduto eleitoral.

Jânio gostava do povo desse antigo bairro –na época do Império, dom Pedro Primeiro tinha uma chácara na área.

Em seus discursos na comunidade, Jânio sempre começava conclamando “Povo da Vila Maria”... Certa vez, talvez achando que a identificação não estivesse precisa o suficiente, Jânio Quadro emendou: “...da Vila Maria Alta, da Vila Maria Baixa e, por que não dizer, da Vila Maria do Meio...”

Essa, por certo, não existia. A Vila Maria baixa é a parte mais perto do rio Tietê, onde começa a rua Eli.

É um começo meio tristonho, porque fechado. A rua inicia no número 14, uma transportadora, mas não sai de nenhuma avenida, não nasce na Marginal. Seu início é um muro, dos fundos de uma unidade do Corpo de Bombeiros.


Quebrando a feiura do muro, um portão, saída de veículos, por onde carros e caminhões de bombeiros podem passar em uma emergência, caso a entrada principal esteja bloqueada.

Inteira, de cabo a rabo, a Eli tem pouco mais de um quilômetro e meio --a numeração termina no 1.599.

No meu GPS, deu 1.650 metros, mas eu atravessei a rua várias vezes para fazer fotos. Uma delas é de um muro pintado, o único da rua com desenho, uma bela invenção de espírito infantil (ou assim me pareceu).



Também há apenas um prédio de apartamentos. É uma construção imponente, com vários blocos e mais de seis andares, que se destaca no cenário de casinhas baixas e pequenos sobrados, oficinas de automóveis, escritórios e representações comerciais. Em breve, porém, será desafiado por um edifício mais novo, também de vários andares, que está nas etapas finais da construção.

Para o corredor, o piso da rua Eli manda informações diversas, nem sempre agradáveis. O começo é de asfalto, dá para correr um pouco; logo, porém, temos traiçoeiros paralelepípedos: há que cuidar para não escorregar em uma pedra mais lisa ou evitar uma topada em alguma outra mal instalada.

Mais à frente, assim que passa a marca do primeiro quilômetro, a rua volta a ser asfaltada; estamos então em uma área mais rica do território. Um prédio da Secretaria da Fazenda, em alvenaria bem pintada, parece sinalizar a mudança de perfil da rua Eli, que inicia naquele ponto a subida até a Araritaguaba.


Não foi nesse terreno que Manoel viveu. 

Pela descrição das filhas, a moradia dos parentes de dona Thereza era na área mais baixa da rua, perto de onde ela se inicia: “Era uns pântanos, tinha uns alagados. Acho que era a penúltima casa”, diz Márcia, que hoje tem 56 anos –era uma adolescente de 16 anos quando seu pai foi sequestrado, torturado e morto.

Onde quer que fosse, a casa de dona Alzira, tia de Thereza, não existe mais. Afinal, já se passaram mais de 60 anos desde que a então moçoila, frequentando a casa da tia, botou os olhos no inquilino.

Dona Thereza de Lourdes, 84, dá entrevista na casa de sua filha mais nova, Marcia, em Bragança Pualista - Foto Eleonora de Lucena


“Ele era um homem bonito”, diz ela hoje, como um sorriso que a deixa sonhadora como se fosse a menina de 20 anos de quando conheceu Manoel.

No maior respeito, os dois se conheceram, conversaram, namoraram, casaram. Não puderam ser felizes para sempre, como nos contos de fadas, mas foi bom enquanto durou.

“Tiraram minha felicidade”, diz a Thereza de hoje.



Dia 2 - Corrida Por Manoel
Percurso de 15 km feito em 1h51min31
Distância acumulada: 18,58 km



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