19.2.16

Dona Thereza sai do tear para construir sua vida com Manoel

Eram enormes aquelas máquinas!!! Maiores ainda, gigantescas, monstruosas no olhar pela menina miúda que se arriscava a dominar aquelas engrenagens, comandar os teares, transformar fios em tecidos.

Ainda hoje, quase 70 anos depois, Thereza Fiel Filho parece se impressionar com o tamanho das máquinas. Abre os braços, alonga-os para cima, como a descrever algo muito além da compreensão humana.

Não eram. Com apenas 14 anos, Thereza ingressou na fábrica de tecidos das Indústrias Reunidas Francesco Matarazzo. Nunca sofreu um acidente, mas lembra que, de vez em quando, batia a cabeça em alguma volta das engrenagens.

Ela precisava ajudar a família, de imigrantes portugueses que desembarcaram no Brasil nas primeiras décadas do século passado para buscar uma vida melhor, talvez fugindo das agruras vividas na Europa depois de Primeira Guerra Mundial.

Nem dona Thereza nem suas filhas lembram exatamente das origens e das datas envolvendo os avós, seu Reis e dona Ana Maria. Sabem que eram portugueses legítimos, um de Bragança e outro de Trás-os-Montes. E sabem que o avô não tinha tempo para nada, estava sempre trabalhando.

Ele cumpria o turno da noite, atuava naqueles caminhões enormes de limpeza. Equipado com grandes vassourões, os veículos varriam as ruas no período noturno, jogando a sujeirada para a sarjeta, preparando tudo para o trabalho dos garis.

Tão ocupado era o seu Reis que não pode registrar a pequena Thereza no dia mesmo em que ela nasceu --nem na semana seguinte.

A futura esposa de Manoel Fiel Filho veio ao mundo em 15 de outubro de 1932, mas o pai só acabou por registrá-la em três de novembro.

Outubrina ou novembrina, era uma menininha aquela que saía da casa dos pais, na Água Rasa, para ir trabalhar no complexo empresarial criado pelo conde Francesco Matarazzo.
Complexo de indústrias na região da Celso Garcia na década de 1940; ao centro, mais para adireita, prédio central da IRFM - reprodução de foto histórica publicada em www.facebook.com/industriasmatarazzo/
No terceiro dia do projeto CORRIDA POR MANOEL, saí de casa buscando o mesmo destino onde, há mais de sessenta anos, Thereza Fiel batia ponto dos os dias.

Descendo da região do espigão da Paulista, vou direto para o centro velho de São Paulo, cruzo viadutos, passo sobre a linha de trens –os trilhos são o primeiro marco divisório, espécie de cerca separando a região central, rica e movimentada, da periferia. É para lá que vou.

A rua do Gasômetro, repleta de lojas de ferragens e madeiras, é o caminho até o largo da Concórdia, onde ambulantes vendem desde produtos usados a camisetas de grife. Daí é um pulo até a Celso Garcia, avenida que há mais de 400 anos é uma espécie de porta oficial de entrada –ou saída, claro—da zona leste de São Paulo.

Sua história começa ainda no Brasil Colônia, ensina texto da faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da USP. Por lá passavam as romarias que seguiam para capela da Penha, fundada em 1667; antes do nome atual, chamou-se Estrada da Penha e Caminho do José do Brás.

No início do século passado, a Avenida Celso Garcia começa a ganhar grande número de comércio, cinemas, casarões de famílias afluentes e muitas fábricas.

Talvez para celebrar esse passado, uma construtora resolveu dar a um modesto prédio de construção sisuda o nome de Olga Benário Prestes (1908-1942), mulher do líder comunista Luiz Carlos Prestes (1898-1990).


A homenagem à combatente pela liberdade assassinada pelos nazistas parece deslocada do entorno em que está instalado o pequeno prédio: igrejas e templos das mais diversas denominações religiosas. Ao lado do edifício, por exemplo, fica o Ministério Mudanças de Vida.

Um pouco antes, no caminho de quem vai do centro para o bairro, há uma casa de orações da igreja Universal, depois o portentoso Templo de Salomão e, à frente dele, do lado par da rua, igreja São João Batista do Brás.

Talvez Olga se sentisse melhor em outra companhia, a dos trabalhadores que viveram na quase vizinha Vila Maria Zélia, construída a poucos quarteirões da avenida Celso Garcia, na rua dos Prazeres.

Primeira vila operária do Brasil, a Maria Zélia foi inaugurada no ano da graça de 1917. Marco do processo de industrialização do país, o conjunto habitacional foi construído para abrigar as famílias dos 2.100 operários que trabalhavam em uma indústria têxtil, a Companhia Nacional de Tecidos de Juta, do jovem magnata Jorge Street.

Sua construção naquela região é mais um indicador de como o bairro, nas primeiras décadas do século passado, estava em franco progresso. Hoje, porém, a Vila Maria Zélia, ainda que de reconhecida importância histórica, sofre do mal do esquecimento.



A maior parte das casas foi reformada pelas famílias que compraram as residências. Há ainda grandes e antigos prédios em tristes ruínas.

Convênios entre diversas instâncias do governo foram assinados para promover o restauro, e há placas nos prédios informando isso, mas o fato é que, pelo menos ao olhar deste corredor que hoje passou por lá, nada de concreto parece estar sendo feito.

Exatamente o oposto do que ocorria nos anos 1920, 1930, 1940. Tudo era novo, cuidado, em funcionamento. Grandes complexos empresariais tomavam conta do entorno da avenida Celso Garcia, a começar pelo conjunto da IRFM, cuja porta de entrada era no número 1907.

Lá Thereza mourejou por sete ou oito anos, não se recorda mais com certeza. Sabe , porém, que largou o emprego quando casou com Manoel. Sua missão, a partir dali, seria construir família.

Provavelmente nunca mais voltou para ver o que aconteceu com a fábrica de tecidos onde, menina ainda, dominava aquelas máquinas enormes.

Pois fábrica não há mais. No terreno onde há décadas se ouvia o barulho de engrenagens e circulavam operários em faina intensa, hoje há prédios orgulhosos e movimentado centro comercial.



São 28 torres, conta o pessoal da segurança do enorme condomínio. Nos edifícios de centenas de apartamentos, moram 8.000 pessoas; se o conjunto fosse uma cidade, seria maior do que mais de um quarto dos municípios brasileiros.
Dia 3 - Corrida Por Manoel
Percurso: 14 km concluídos em 1h47min48
Quilometragem acumulada: 32,58 km




 


1 comment:

  1. Muito bacana essa sua homenagem ao Manoel, quando.tudo aconteceu em 76, 2/anos depois eu ingressava no Sindicato dos Metalúrgicos, e seouvia de tudo a respeito do fato. O mais legal ainda é que hoje voltando do meu treino ye.vi do outro lado da rua e disse ao meu.marido: não é o Rodolfo? E ele me responde: tá louca o que ele estaria fazendo aqui? Brigaduuuu, não estou louca. Da.próxima vamos tirar uma.foto

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