13.2.17

Festa-corrida na avenida Paulista celebra etapa final do projeto 600 quilômetros aos 60 anos

Somos poucos, os velhos no Brasil. Chegar aos sessenta anos, passar dessa marca, é coisa de um tantinho só de gente, um em cada dez e olhe lá.
Pois mais raro ainda é quem fica casado, juntinho com seu amor, por esses tais sessenta anos. É difícil, mas acontece. Doutor Rosarinho é uma dessas figuras: vem de mãos dadas com dona Elza desde 1957, o exato ano em que nasci.
João Rosário, corredor veterano, participou da gloriosa São Silvestre de 1953, que foi vencida pela Locomotiva Humana, o tcheco Emil Zatopec, único ser no universo a conquistar o ouro olímpico na maratona e nas provas de 5.000 m e 10.000 m –o feito se deu em Helsinque, em 1952.
Doutor Rosarinho, decano dos corredores - foto RL
Pois neste último domingo Rosarinho voltou à avenida Paulista para outra corrida, bem mais modesta que aquela de 1953, mas igualmente festiva. O corredor de 89 anos foi o decano entre nós, os que comemorávamos a conclusão do meu projeto de percorrer 600 quilômetros até a data de meu aniversário de sessenta anos. 
O dia, mesmo, oficial, de papel passado e registrado em cartório, é amanhã, 14 de fevereiro. Para compartilhar a alegria, porém, tratei de correr e caminhar um bocadinho mais a cada etapa para conseguir completar a jornada no domingão de sol, naquela avenida que já virou uma espécie de praia paulistana, local de encontro de pedestres e ciclistas, skatistas e patinadores, caminhantes e vendedores, artistas e consumidores, famílias e solitários, cachorros e corredores, todos circulando pelo asfalto naquelas poucas, curtas horas em que o trânsito fica fechado para os veículos, aberto para o povo.
A marca de seiscentos quilômetros foi atingida em um período de 91 dias, incluindo nove folgas, o que deixa 82 dias de efetiva caminhada ou corrida. Não se trata de nenhum recorde mundial, mas, para mim, é um feito inédito, marca interplanetária, quiçá intergalática.


Acima de qualquer consideração esportiva, completar seiscentos quilômetros aos sessenta anos significa acordar a cada dia disposto a se mexer, planejar atividades, organizá-las, executá-las, sair da cama, arrastar-se para calçar os tênis e ir à rua para mandar um recado à vida: Aqui estou, ativo e operante.
Há que ter uma certa determinação e um tanto de cabeça dura para enfrentar os perrengues que a idade e a vida impõem ao corpo. Passei todo esse tempo me digladiando com uma fratura por estresse no fêmur esquerdo, sem contar as dores tantas que me vêm pelas costas, escalam os ombros e se arvoram em tendinite disso e daquilo, inflamação daquiloutro, hérnia ali um pouquinho mais para  baixo e, ainda por cima, alguma gripezinha sem-vergonha ou mesmo uma irascível gastrite.

A turma toda antes da largada - foto EL

Há dores, mas também há amores.
Um dos tantos prazeres que a corrida dá é que ela serve para a gente descobrir coisas. Neste projeto de 60 maratonas aos 60 anos, do qual os seiscentos quilômetros foram a primeira etapa, a corrida é uma ferramenta para que a gente discuta, cá nestas páginas, questões de saúde, qualidade de vida e inserção social dos mais velhos.
Por isso, busquei parceiros nas minhas caminhadas, convidados que pudessem trazer informação e sabedoria sobre o mundo dos veteranos. Já estiveram correndo e caminhando comigo treinadores, fisioterapeuta, psicólogos, artistas, dirigentes sindicais e ativistas políticos, uma gente variada e divertida.
Foi com o apoio, a presença e a companhia deles que cheguei até aqui, até o hoje. Mais exatamente, ao ontem, domingão em que cruzei, derrotei, superei a marca dos seiscentos quilômetros.
A festa-corrida estava marcada para as dez horas da manhã, que é o horário em que a Paulista fecha para os veículos e se entrega aos pés do povo. Concentração desde as 9h30, por aí, em frente ao prédio da Gazeta, no número 900 da avenida, local de chegada da mais tradicional corrida de rua do país, a São Silvestre.
Com o que deu para dormir um pouquinho a mais, ainda que a noite tivesse sido movimentada, tensa, cheia de emoções. Como um adolescente, acordei algumas vezes com a pergunta martelando o cérebro: E se não aparecer ninguém?
Ficava meditabundo por uns momentos, até decidir pelo óbvio: correria sozinho, não seria a primeira nem a última vez.
A solução me dava paz por algum tempo, me deixava voltar a dormir, mas as angústias que vêm pelos corredores da mente voltavam a me atropelar, mostrando que não basta ser velho e experiente e veterano e dono de si para ser velho, veterano e dono de si; há que lutar por si a cada dia e se conquistar, crescer e construir e reconstruir o ser que somos.
A luz do dia chegou e, meio tonto de sono, atravesso a cozinha para encher de água a chaleira para o chá matinal. No caminho, o revesgueio do olho direito pega uma sombra mais escura na porta da geladeira, que devia estar branquinha que só ela.
Na hora, não dou bola. Depois de aceso o fogo, volto à geladeira para tentar entender o que tinha visto, se é que tinha visto algo especial.
De fato, a geladeira já não estava mais branquinha da silva, mas sim coberta de adesivos, imãs, magnetos, cada um deles igualzinho ao outro, cada um uma homenagem, lembrança, referência ao dia que nascia, o dia em que completaria seiscentos quilômetros aos sessenta anos.
Para me acalmar, tive de puxar uma cadeira, sentar um pouco, ficar rindo admirando a criação idealizada por Eleonora e por minhas filhas –fiquei sabendo mais tarde. De algum canto, veio até um jeito de choro...
O desenho era “filhote” de uma aquarela criada pelo artista gráfico, designer e historiador Pedro Penafiel, que foi colega de faculdade  minha filha mais velha e vem a ser filho do fotógrafo e artista gráfico Carlos Penafiel  (1936-2009).

O velho “Penan”, como era chamado, ajudava a produzir documentos falsos para o povo da ALN, durante a ditadura militar; no final do século passado, foi diretor de arte do “Hora do Povo”, onde tive a honra de trabalhar com ele durante alguns meses.
Os detalhes da produção só fiquei sabendo depois. Na hora matinal, estávamos todos nos acertando para sairmos sem demora rumo ao encontro dos corredores que participariam de nossa celebração.
Será que haveria alguém lá?
Havia.
De longe dava para ver grupinhos no local marcado.  A multidão, mesmo, não tinha nada a ver comigo nem com corrida nem com seiscentos quilômetros nem como “Fora, Temer!”, era apenas um grupo que queria promover alguma coisa que não consegui entender o que era.
Antes deles, porém, um pouquinho mais para cá, pertinho da guia da calçada, conversando como quem não quer nada, havia um trio que me deu calafrios, a própria história da corrida de rua brasileira reunida ali.

Edgard, eu, Rosarinho, Del Roio e Losada - foto Eleonora de Lucena

Começo pelo mais velho da turma, o já citado João Rosário, Doutor Rosarinho, a quem tenho a honra de  ter como amigo. É um dos criadores do grupo Vovocops, poderosos corredores vetereanos. Esportista na juventude, largou o exercício para ganhar a vida e sustentar a família, só voltando às lides corredísticas aos 67 anos.
Retornou em grande estilo: no ano seguinte fez sua primeira maratona e completou em décimo-primeiro lugar em sua categoria. O que mostra que a turma dos velhinhos é supercompetitiva, pois Rosarinho cravou 4h11 em seu debute maratonístico. Hoje, caminhando para os 90 anos, já não voa no asfalto, mas segue firme e forte e decidido com a alegria dos que amam o mundo.
Rosarinho batia um papo com Edgard José dos Santos, administrador de empresas por profissão, corredor por missão, um dos ativistas que ajudaram a Corpore (Corredores Paulistas Reunidos) a ter uma superexpansão na derradeira década do século passado. Também é o cara que construiu a planilha que me infernizou a vida durante os últimos noventa dias, a cada manhã me desafiando a prosseguir e a conquistar.
Momento baguncinha durante a nossa jornada domingueira - foto Eleonora de Lucena

Explico melhor. Por pura gentileza e entusiasmo com a corrida, Edgard construiu uma planilha para acompanhar meu progresso diário na jornada iniciada em 14 de novembro passado e prevista para terminar neste 14 de fevereiro.
Eu deveria alimentar as planilhas com dados, informando a quilometragem realizada a cada dia. A soma aparece em barras no gráfico, que é cortado por uma linha diagonal azul, a meta prevista que deveria ser alcançada a cada dia.
Caminhando meros 3.000 metros por dia ao longo do primeiro mês e, depois, passando a 4.000 metros, a 5.000 metros e 6.000 metros, tudo caminhado e tudo ordenado pelo meu ortopedista para que eu me recuperasse de uma fratura por estresse, fiquei por muito tempo muito aquém da meta.
Para ser exato, foram 80 dias de sofrimento e frustração em que eu parecia o corredor de um maravilhoso cartum criado pela maravilhosa Laerte. É uma história em quadrinhos, em que aparece primeiro um corredor fazendo o maior esforço; no segundo quadrinho, ele avista uma placa, que diz: “Falta muito”. Mais suado, esforçado, sofrido, o corredor ocupa todo o terceiro quadrinho, imaginando (ou, pelo menos, é o que gostaríamos), que assim chegará mais cedo ao seu destino. Ledo engano, pois, no último quadrinho, o sofrido corredor dá de cara com outra placa, maldita, que anuncia: “FALTA MAIS AINDA”.

A cada dia parecia faltar mais, mas, no 81º dia do projeto, 2 de fevereiro, a barra verde cortou a linha azul e me deu certeza de que, se nada de errado acontecesse, eu conseguiria atingir a meta, superar a meta e dar um banho de bola nessa meta folgada que estava a me provocar ao longo de quase três meses.
Volta e meia voltava ao tal gráfico criado pelo Edgard, que agora, neste domingo, me dava a alegria e a satisfação de comparecer á festa-corrida e estava ali, conversando com a lenda Doutor Rosarinho e trocando ideia com outra figura histórica das corridas de rua, o Cachorrão.


Trata-se de Roberto Losada Pratti, um varapau, esquálido coberto por longos cabelos loiros (que já estão ficando um tanto esbranquiçados).  Professor de matemática em duas faculdades, o cara encontra tempo para correr todos os dias quilômetros sem fim, coisa que faz desde o final da década de 1970, primórdios dos anos 1980, o que o torna um dos pioneiros das corridas de rua no país.
Claro que há mais corredores mais velhos, pois Roberto entrou há pouco na Terceira Idade e ainda apresenta com orgulho e satisfação seu bilhete único de idoso. O próprio Rosarinho correu a São Silvestre em 1953, mas parou por décadas, só voltando às ruas em 1995.
Losada não só corre, é um militante da atividade física, um incentivador do exercício. Durante anos manteve o jornal “Atividade Física” (hoje apenas virtual, em portal do mesmo nome), em que tive a satisfação de publicar alguns de meus primeiros textos sobre corredores e corrida de rua, no final do século passado, ajuda a organizar corridas e está sempre incentivando  a turma do fundão a se manter firme e seguir até o final.



Esse trio de eminências era o abre-alas da turma que já se reunia por ali, perto da banca de revistas em frente ao número 900 da Paulista.
Outro representante da chamada Velha Guarda era ninguém menos que o senador italiano José Luiz Del Roio, comunista da gema, um dos participantes da criação da ALN, militando ombro a ombro com Marighella e Joaquim Câmara Ferreira.
Jornalista e escritor, ele recentemente me deu a subida honra de organizar uma homenagem corrida à militante da ALN Ísis Dias de Oliveira, com quem foi casado, e que foi sequestrada e assassinada sob tortura durante a ditadura militar. Ontem, esteve na Paulista com a filha, Lavínia.
Assim, fomos aos poucos nos organizando para a largada, que teve ainda a presença de Gregório Silva e Jan Lempens-Doenraedt, ambos do grupo Corredores Patriotas Contra o Golpe.

Laura e Mercedes aguardam os corredores - foto EL
Austríaco, o artista gráfico Jan deu, ao lado de Del Roio, caráter internacional à nossa baguncinha na Paulista, que ganhou ainda mais diversidade patriótica com a chegada da nicaraguense Maria Mercedes Salgado, amiga de minha mãe,  socióloga e sandinista.
A jornalista Anne Dias chegou a tempo de ver crescer o nosso grupo, pois logo se agregaram a educadora Claudia Aratangy e o jornalista Ari Meneghini, assim como o sensacional professor de educação física Jopa Sabóia Fiuza, mentor de minhas filhas no saudoso e extinto Logos.
Sob os olhos da minha maravilhosa Eleonora e de minha filha mais velha, Laura (a caçula, Claudia, viria para a  confraternização da chegada), partimos enfim para a volta na avenida, todos respeitando o ritmo deste atleta machucado.
Claudia, Eleonora e Laura

Fizemos blocos de 500 metros correndo e 500 metros caminhando, o que dava mais tempo para a gente conversar, contar piadas e relembrar histórias de vida.
Rosarinho se revelou um poeta de fôlego, capaz de declamar peças de sua autoria sem perder o ritmo e a passada na avenida.
Acompanhe uma das poesias do jovem quase nonagenário:

“Acordo e, dia sim, dia não, no portão fazer longão.
O sol ainda não nasceu pra clarear,  mas aos poucos vai clareando sem parar.
Sentir essa magia contagia, dá mais energia pra correr.
Pensamento positivo sempre, vendo tudo mudar na natureza.
Corredor determinado é assim.
Todo mundo vive correndo: correndo atrasado pro trabalho, correndo pra sair do trabalho, da chuva que está pra cair ou para pegar o ônibus que está saindo.
Mas eu corro por outra razão.
Corro pelo calor da alma, pela batida do coração, a pressa pelo indefinido, o limite que se amplia a cada dia, o suor que renova, o vento no rosto, a luz do sol, o brilho da lua e o cintilar das estrelas.
Isso sim é corrida.
É isso que eu acho da vida.”

Claudia, Jan, Jopa, eu e Meneghini; atrás, Rosarinho e Losada - foto EL

Eu bem que desconfiava da verve do veterano corredor, pois, em entrevistas passadas, ele sempre me aparecia com frases de bom ritmo, às vezes até rimadas, uma espécie de RAP de veterano...
Exemplo é esta mensagem, que ele mandou para mim há dois anos: “Testemunhei a partida precoce deste mundo de muitos irmãos, irmãs, parentes, filho, gente famosa e amigos queridos. Por isso, com esses meus 87 anos de vida bem vividos, serei meu próprio parceiro num treinamento de percurso ao ritmo das músicas inesquecíveis dos anos 40, 50, 60, 70. Se ao mesmo tempo quiser chorar ou sorrir, posso fazê-lo. Caminharei pela praia num traje de banho colado a este corpo magricelo e mergulharei no mar, despreocupadamente se assim o desejar, apesar dos olhares críticos das pessoas mais jovens, que também vão envelhecer. Tenho a marca da minha juventude gravada nas profundas rugas do meu rosto”.
Esbaforida, Eleonora corria à frente do grupo, tirando fotos. Seu desempenho foi testemunhado pelo triatleta Gregório, que nos acompanhava de bicicleta e fez o vídeo a seguir.


De vez em quando, algum passante reconhecia alguém do grupo, acenava, cumprimentava.

Lá pelas tantas nos encontramos com a jornalista Yara Achoa, corredora dedicada e autora de boas reportagens sobre nosso mundinho esportivo.

Marcante foi o encontro com a meta, a passagem da marca dos seiscentos quilômetros, que ocorreu quase em frente ao hospital santa Catarina, um dos mais tradicionais da cidade. Nos reunimos em abraço, cantamos parabéns, contei que minhas filhas tinham nascido ali –as do Jopa também, assim como as do Gregório, se não me engano.


Passados, enfim, os seiscentos quilômetros, precisávamos apenas voltar à base. E assim fomos, primeiro uma caminhadinha, depois trote e enfim uma passada mais larga.

Eleonora delegou a missão de fotógrafo para Tadeu Anderson, e veio correndo, as faces afogueadas, encontrar com a gente para de mãos dadas seguirmos até a meta.

Foto Tadeu Anderson

E assim foi. Uma chegada épica, disseram alguns. Uma festa, uma reencontro, um abraço, um aperto de mão, encontros, reencontros, dizeres de saudades, promessas de parcerias, brados de militância, corações ao vento.

VAMO QUE VAMO!!!!


Percurso de 12 de fevereiro de 2017
4,88 km percorridos em 54min49

Acumulado no projeto 600 km aos 60 anos
601,69 km percorridos em 119h11min36

Acumulado no projeto 60M60A
378,49 km percorridos em 72h12min43

2 comments:

  1. Tenho a honra de me considerar amigo de Rodolfo Lucena. Não fosse assim não estaria na lista de endereços dele. E congratulo-me sobremaneira com suas aventuras, corridas, desafios, escritos, fotografias, movimentações, provocações. Jacta-se já de ser um velho aos sessenta, pasmem. Tantos os são, como este seu vassalo, a meses dos 68. E corremos todos, e nos mantemos casados também - não com ele, é claro, mas como dizia meu pai "ele com a dele e o compadre co´a dela - há décadas. Prezado amigo, corredor, escritor, jornalista, blogueiro e mais que não sei Rodolfo Lucena, desejo-lhe vida longa e muito chão a percorrer, em boa companhia a julgar pelas fotografias. Vou tomar mais um mate hoje, brindando à sua, à nossa, à de sua família, a dos amigos saúde.

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