14.9.18

Corrida vai da pata de vaca à revolução esquecida


Totalmente encharcado, completei quase nove quilômetros na nona jornada de meu projeto RUMO AOS 100, série de corridas em homenagem a meu pai, Joaquim de Lucena, e aos joaquins de luta de nossa história.
Folha de pata de vaca
A chuva acordou o dia com raios e trovões, mas amansou depois de uma hora e qualquer coisa de lambança. Foi quando decidi sair seguir para o asfalto, torcendo para que o intervalo seco fosse suficiente para completar meu trajeto, que hoje celebra a vida e a luta de Joaquim Távora.
Daria, se eu tivesse ido correndo. Lesões e trabalho preventivo para que as coisas não fiquem piores, porém, me obrigaram a sair na caminhada. Demorei mais, portanto. Quando embiquei no final da rua Joaquim Távora, o céu de chumbo desabou.

Sob chuva, percorri pouco mais de um quilômetro pela rua que celebra um dos heróis vencidos na Revolução Esquecida.
O Joaquim militar participou com galhardia do início da revolta, em 5 de julho de 1924. Com o general Isidoro Lopes, articulou o assalto aos quartéis do Exército, e foi o responsável pela prisão do comandante geral das forças legalistas, o general Abílio de Noronha.
Como outros jovens oficiais, Távora lutava por ensino público, justiça gratuita e pelo voto secreto. Queriam, todos, o fim do governo de Artur Bernardes. Fracassaram. Alguns seguiram na luta, como o grande comandante Miguel Costa, que se somou aos rebeldes revolucionários da Coluna Prestes. Outros caíram no campo de batalha, como Joaquim Távora (foto), que não resistiu aos ferimentos sofridos durante uma das escaramuças em terras paulistanas.
O Joaquim meu pai também esteve no Exército, mas nunca se envolveu em nenhum entrevero. Longe disso. Ao longo da vida, buscou mais aprender e, quando possível, ensinar, como lembra uma das participantes em cursos de dinâmica de grupo que Joaquim de Lucena realizava no início dos anos 1970 no Rio Grande do Sul –confira o vídeo a seguir.


Chamado por muitos de “professor Lucena”, ele foi mais um eterno aprendiz, estudioso especialmente dedicado a tentar entender os mistérios do corpo e da mente. Fez-se terapeuta corporal no último terço de sua vida, buscando sempre encontrar técnicas e saberes –da eutonia ao rolfing, por exemplo—que lhe permitissem ampliar as capacidades curativas.
Desenvolvia os cremes que usava para massagens e acreditava com firmeza e fidelidade em medicamentos naturais. Vai daí que sempre me lembro dele quando corro, caminho ou passo ao largo da avenida Sumaré, por onde começou minha jornada de hoje.
É que ela é coalhada de árvores chamadas de pata de vaca, que também povoaram um pedaço da trajetória de meu pai. Durante vários anos, ele usou um unguento feito à base de extrato das folhas dessa árvore. Era quase uma ideia fixa, nem sempre bem aceita pelos filhos: recomendava o curativo para tudo, de unha encravada a arranhão, machucados quaisquer...
Conseguia a benzedura nas farmácias do Frei Hugolino, um religioso de Santa Catarina que supostamente tinha poderes curativos. Mas, depois de um período de aprendizado, começou também a fazer seus próprios unguentos.
Ninguém se machucou com o uso da pata de vaca. E hoje, pesquisando sobre o assunto, descubro que, na medicina natural, o chá dessas folhas é apontado com tendo efeito medicamentoso contra o diabetes, podendo também ajudar a diminuir os níveis de triglicérides e colesterol. Sem falar dos seus poderes analgésicos e de ajuda na coagulação –talvez fosse por isso que meu pai usava o extrato em arranhões e machucados.
VAMO QUE VAMO, RUMO AOS 100!


Percurso de hoje: 8,91 km (confira no 
vídeo  abaixo como foi a jornada do dia)
Quilometragem acumulada: 95,47 km




POR QUE RUMO AOS 100

Meu pai morreu no dia 10 de julho. Seu último aniversário, em 16 de setembro de 2017, foi passado no hospital.
Dias antes, a família havia recebido o resultado de uma série de exames que se desenrolavam a passos de tartaruga desde o final de agosto: câncer no estômago.
Por causa dos exames e das dores, meu pai recebia medicamentos que, às vezes, o deixavam meio grogue. Mesmo assim, estava lúcido, conversava e gostava de lembrar momentos do passado.
No dia do aniversário, a ordem do hospital foi subvertida com a chegada das gentes mais próximas, que trazia bolo, docinhos, refrigerante.
Como a presença das visitas era restrita, os festejos acabaram sendo em várias levas. Eu apareci para a segunda rodada de bolo, apagar as velinhas, cantar o “Parabéns”, repetindo também a versão gauchesca da canção, que termina assim: “Que tu tenhas, sempre e todo o dia, paz e alegria na lavoura da amizade”.
Apesar de parecer meio de saco cheio, meu pai enfrentou com galhardia as brincadeiras. Cantou junto, meio arrevesado, fez esforço para soprar as velinhas, posou para fotos e mais fotos, deu beijinhos, ofereceu a careca para outros beijinhos.
De vez em quando, dava uma risada meio tossida, falava qualquer coisa, enquanto eu chorava por dentro, tentando represar a emoção e me preguntando, em silencia, por que eu achava que tinha de segurar o choro.
Era melhor.
Chegou a hora das despedidas, os presentes já abertos, abraços apertados, copos largados pelos lados, docinhos devorados.
Fui ainda mais uma vez abraçar e cumprimentar meu pai. E falei: “Oitenta e oito anos, hein, que beleza!”
Ao que ele respondeu na lata, sem perder o embalo da conversa: “Rumo aos cem!”
É esse o espírito que quero guardar comigo, que quero aprender e tentar ensinar. É esse espírito que quero homenagear nesta série de corridas, que devem somar, até o dia 16 próximo, 89 anos do nascimento de Joaquim de Lucena, um percurso total de cem quilômetros.





No comments:

Post a Comment