Totalmente encharcado, completei quase nove quilômetros na
nona jornada de meu projeto RUMO AOS 100, série de corridas em homenagem a meu
pai, Joaquim de Lucena, e aos joaquins de luta de nossa história.
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Folha de pata de vaca |
Daria, se eu tivesse ido correndo. Lesões e trabalho
preventivo para que as coisas não fiquem piores, porém, me obrigaram a sair na
caminhada. Demorei mais, portanto. Quando embiquei no final da rua Joaquim Távora,
o céu de chumbo desabou.

O Joaquim militar participou com galhardia do início da
revolta, em 5 de julho de 1924. Com o general Isidoro Lopes, articulou o
assalto aos quartéis do Exército, e foi o responsável pela prisão do comandante
geral das forças legalistas, o general Abílio de Noronha.
Como outros jovens oficiais, Távora lutava por ensino público,
justiça gratuita e pelo voto secreto. Queriam, todos, o fim do governo de Artur
Bernardes. Fracassaram. Alguns seguiram na luta, como o grande
comandante Miguel Costa, que se somou aos rebeldes revolucionários da Coluna
Prestes. Outros caíram no campo de batalha, como Joaquim Távora (foto), que não
resistiu aos ferimentos sofridos durante uma das escaramuças em terras
paulistanas.
O Joaquim meu pai também esteve no Exército, mas nunca se
envolveu em nenhum entrevero. Longe disso. Ao longo da vida, buscou mais aprender
e, quando possível, ensinar, como lembra uma das participantes em cursos de dinâmica
de grupo que Joaquim de Lucena realizava no início dos anos 1970 no Rio Grande
do Sul –confira o vídeo a seguir.
Chamado por muitos de “professor Lucena”, ele foi mais
um eterno aprendiz, estudioso especialmente dedicado a tentar entender os
mistérios do corpo e da mente. Fez-se terapeuta corporal no último terço de sua
vida, buscando sempre encontrar técnicas e saberes –da eutonia ao rolfing, por
exemplo—que lhe permitissem ampliar as capacidades curativas.
Desenvolvia os cremes que usava para massagens e acreditava
com firmeza e fidelidade em medicamentos naturais. Vai daí que sempre me lembro
dele quando corro, caminho ou passo ao largo da avenida Sumaré, por onde
começou minha jornada de hoje.
É que ela é coalhada de árvores chamadas de pata de vaca,
que também povoaram um pedaço da trajetória de meu pai. Durante vários anos,
ele usou um unguento feito à base de extrato das folhas dessa árvore. Era quase
uma ideia fixa, nem sempre bem aceita pelos filhos: recomendava o curativo para
tudo, de unha encravada a arranhão, machucados quaisquer...
Conseguia a benzedura nas farmácias do Frei Hugolino, um
religioso de Santa Catarina que supostamente tinha poderes curativos. Mas,
depois de um período de aprendizado, começou também a fazer seus próprios unguentos.
Ninguém se machucou com o uso da pata de vaca. E hoje,
pesquisando sobre o assunto, descubro que, na medicina natural, o chá dessas
folhas é apontado com tendo efeito medicamentoso contra o diabetes, podendo
também ajudar a diminuir os níveis de triglicérides e colesterol. Sem falar dos
seus poderes analgésicos e de ajuda na coagulação –talvez fosse por isso que
meu pai usava o extrato em arranhões e machucados.
VAMO QUE VAMO, RUMO AOS 100!
Percurso de hoje: 8,91 km (confira no
vídeo abaixo como foi
a jornada do dia)
Quilometragem acumulada: 95,47 km
POR QUE RUMO AOS 100
Meu pai morreu no dia 10 de julho. Seu
último aniversário, em 16 de setembro de 2017, foi passado no hospital.
Dias antes, a família havia recebido o
resultado de uma série de exames que se desenrolavam a passos de tartaruga
desde o final de agosto: câncer no estômago.
Por causa dos exames e das dores, meu
pai recebia medicamentos que, às vezes, o deixavam meio grogue. Mesmo assim,
estava lúcido, conversava e gostava de lembrar momentos do passado.
No dia do aniversário, a ordem do
hospital foi subvertida com a chegada das gentes mais próximas, que trazia
bolo, docinhos, refrigerante.
Como a presença das visitas era
restrita, os festejos acabaram sendo em várias levas. Eu apareci para a segunda
rodada de bolo, apagar as velinhas, cantar o “Parabéns”, repetindo também a
versão gauchesca da canção, que termina assim: “Que tu tenhas, sempre e todo o
dia, paz e alegria na lavoura da amizade”.
Apesar de parecer meio de saco cheio,
meu pai enfrentou com galhardia as brincadeiras. Cantou junto, meio arrevesado,
fez esforço para soprar as velinhas, posou para fotos e mais fotos, deu
beijinhos, ofereceu a careca para outros beijinhos.
De vez em quando, dava uma risada meio
tossida, falava qualquer coisa, enquanto eu chorava por dentro, tentando
represar a emoção e me preguntando, em silencia, por que eu achava que tinha de
segurar o choro.
Era melhor.
Chegou a hora das despedidas, os
presentes já abertos, abraços apertados, copos largados pelos lados, docinhos
devorados.
Fui ainda mais uma vez abraçar e
cumprimentar meu pai. E falei: “Oitenta e oito anos, hein, que beleza!”
Ao que ele respondeu na lata, sem
perder o embalo da conversa: “Rumo aos cem!”
É esse o espírito que quero guardar
comigo, que quero aprender e tentar ensinar. É esse espírito que quero
homenagear nesta série de corridas, que devem somar, até o dia 16 próximo, 89
anos do nascimento de Joaquim de Lucena, um percurso total de cem quilômetros.
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