Um intelectual de estirpe, campeão da liberdade, pioneiro da
construção de uma pátria livre, soberana e igualitária foi o homenageado de
hoje no projeto Rumo aos 100, série de corridas em que celebro a vida, a luta,
a memória e os ensinamentos de meu pai, Joaquim de Lucena.
A cada jornada, desde primeiro de setembro e até o próximo
domingo, quando seria o aniversário de meu pai, saio rumo a um destino Joaquim.
Por isso mesmo, o projeto Rumo aos 100, que eu explico com mais detalhes ao
final deste texto, já virou para mim a Corrida dos Joaquins.
O Joaquim de hoje é o Nabuco, que tem por nome completo Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo, pernambucano nascido em Recife em 1849
que se consagrou como uma das lideranças do movimento abolicionista. Advogado,
historiador, jornalista, dedicou-se também às lides da literatura, tendo sido
um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, ao lado de outro Quincas, o
Joaquim Maria Machado de Assis, já lembrado cá no projeto (abaixo, os dois).
Para celebrá-lo, parti da zona oeste de São Paulo em direção
à zona sul, a um dos pedaços ricos da zona sul, o Brooklyn, onde fica a rua que
homenageia a nossa figura do dia.
Ainda que quase todo plano, não foi um percurso fácil. Foi
muito difícil, na verdade, por causa das péssimas condições em que me encontro.
Na corrida de domingo passado, senti um repuxão do lado de fora da coxa
esquerda, mas decidi completar a jornada nas condições que fossem. Descansei
segunda e terça, tomando também medidas reduzir a dor. Não foram suficientes.
Mesmo fazendo um aquecimento caminhado de mais de vinte
minutos, mal comecei o trote já senti a fisgada do lado esquerdo. Melhor não
forçar, mas também melhor não parar: segui caminhando, o que não provoca
sofrimento, mas torna mais demorado o percurso.
Reclamações à parte, segui num bom ritmo, completando dez
quilômetros em pouco menos de duas horas, sem cansar, em boas condições para a
reta final, de quase dois quilômetros subindo e descendo a Joaquim Nabuco, que
é a continuação, na direção do centro, da avenida Morumbi, bem mais conhecida.
No percurso, das anotações mentais que fiz da vida urbana,
talvez a mais significativa seja a do alto uso, pelo menos na região da avenida
Faria Lima, das bicicletas de aluguel por meio de aplicativos. A ciclovia era
dominada por gente nessas magrelas, indicando sabe-se lá o quê: uma opção mais saudável
para o transporte para o trabalho? Mais econômica? Mais confortável? Mais
suarenta?
Não sei a resposta, mas posso garantir que o perfil de uso
da ciclovia na Faria Lima, pelo menos entre as avenidas Rebouças e Hélio
Pelegrino, com certeza é muito diferente do que era há um ano –talvez mesmo
seis meses.
Voltemos ao Nabuco que, além de político, era um romântico
apaixonado, dedicando-se com afinco a casos de amor profundos e prolongados:
durou 14 anos seu primeiro romance, como jovem adulto. Depois, quase quarentão,
casou-se com Evelina, com quem teve cinco filhos.
Com o quê, dou entrada aqui a um depoimento sobre o romance
de outro Joaquim, o Lucena, com minha mãe. A história é contada por Maria
Teresa Sanseverino, que foi colega de faculdade dos dois na década de 1950 –clique
no vídeo abaixo para saber como eram os namoros há setenta anos.
Paixão, romance, família, filhos, trabalho, tudo isso e
ainda a política, a disposição por construir um país melhor, mais justo e
igualitário –há mesmo uma relação direta dos dois joaquins aqui lembrados.
Volto ao Nabuco, que não era apenas de palavrório. Dedicou seu
trabalho a construir a luta que defendia em livros e palanques: seu primeiro trabalho
como advogado, por exemplo, foi defender um escravo que havia sido condenado à
morte sob a acusação de ter matado seu proprietário –entre outras. Conseguiu a comutação
da pena.
No terreno literário, a principal obra de Nabuco foi “O
Abolicionismo”, uma leitura ainda terrivelmente atual nestes tempos em que a
violência, o fascismo e a discriminação voltam a aparecer com força na
sociedade.
Qualquer pesquisa simples na internet dá acesso ao texto
integral, gratuito. Cito aqui um trechinho, parte das definições que ele
estabelece no livro: “No Brasil, o abolicionismo é antes de tudo um movimento
político, para o qual, sem dúvida, poderosamente concorre o interesse pelos escravos
e a compaixão pela sua sorte, mas que nasce de um pensamento diverso: o de
reconstruir o Brasil sobre o trabalho livre e a união das raças na liberdade”.
Nas minhas pesquisas sobre o Nabuco, encontrei ainda outro
elo de ligação entre ele e o meu Joaquim, o Lucena: adorava Camões e,
especialmente, “Os Lusíadas”, tal e qual meu pai, que vivia a ler e reler e
treler a epopeia lusitana, deitando de quando em vez a declamar alguns dos
versos mais dramáticos da monumental obra.
Nabuco foi um estudioso do poeta. Tanto que foi chamado a
ser o orador em cerimônia que celebrava os 300 anos do nascimento de Camões.
O discurso é uma peça rara, em que combina biografia em
rápidas pinceladas com análise da obra, concluindo com a defesa de sua
importância para a construção de um caráter nacional –não só português, mas de
sentimento de nação, de povo, de pátria.
Por isso, defende no discurso que “Os Lusíadas” sejam
distribuídos nas escolas “para serem lidos, decorados e comentados pela mocidade”.
Elenca razões sem fim, das quais destaco:
“Não é um livro que torne ninguém Português, é um livro que
torna todos patriotas; que ensina muita coisa numa idade em que estão sendo
lançados no menino os alicerces do homem; que faz cada um amar a pátria, não
para ser nela o escravo, mas o cidadão; não para adular-lhe os defeitos, mas
para dizer-lhe com doçura a verdade.”
VAMO QUE VAMO, RUMO AOS 100!
Percurso de hoje: 12,26 km (confira o vídeo abaixo para saber mais
sobre a jornada deste dia)
Quilometragem acumulada: 86,55 km
POR QUE RUMO AOS 100
Meu pai morreu no dia 10 de julho. Seu
último aniversário, em 16 de setembro de 2017, foi passado no hospital.
Dias antes, a família havia recebido o
resultado de uma série de exames que se desenrolavam a passos de tartaruga
desde o final de agosto: câncer no estômago.
Por causa dos exames e das dores, meu
pai recebia medicamentos que, às vezes, o deixavam meio grogue. Mesmo assim,
estava lúcido, conversava e gostava de lembrar momentos do passado.
No dia do aniversário, a ordem do
hospital foi subvertida com a chegada das gentes mais próximas, que trazia
bolo, docinhos, refrigerante.
Como a presença das visitas era
restrita, os festejos acabaram sendo em várias levas. Eu apareci para a segunda
rodada de bolo, apagar as velinhas, cantar o “Parabéns”, repetindo também a
versão gauchesca da canção, que termina assim: “Que tu tenhas, sempre e todo o
dia, paz e alegria na lavoura da amizade”.
Apesar de parecer meio de saco cheio,
meu pai enfrentou com galhardia as brincadeiras. Cantou junto, meio arrevesado,
fez esforço para soprar as velinhas, posou para fotos e mais fotos, deu
beijinhos, ofereceu a careca para outros beijinhos.
De vez em quando, dava uma risada meio
tossida, falava qualquer coisa, enquanto eu chorava por dentro, tentando
represar a emoção e me preguntando, em silencia, por que eu achava que tinha de
segurar o choro.
Era melhor.
Chegou a hora das despedidas, os
presentes já abertos, abraços apertados, copos largados pelos lados, docinhos
devorados.
Fui ainda mais uma vez abraçar e
cumprimentar meu pai. E falei: “Oitenta e oito anos, hein, que beleza!”
Ao que ele respondeu na lata, sem
perder o embalo da conversa: “Rumo aos cem!”
É esse o espírito que quero guardar
comigo, que quero aprender e tentar ensinar. É esse espírito que quero
homenagear nesta série de corridas, que devem somar, até o dia 16 próximo, 89
anos do nascimento de Joaquim de Lucena, um percurso total de cem quilômetros.
No comments:
Post a Comment