9.9.18

Homenagem a Joaquim Seixas no projeto Rumo aos 100



A polícia já chegou dando porrada. Aos gritos, de armas em punho, agarram o homem de rosto de lua e bigode fino, batem nele, o arrastam até o carro. Com o menino, ao lado, a brutalidade se repete: aos trancos, abaixo de cassetada, o adolescente é atirado na viatura.
O garoto é Ivan Seixas. O homem é seu pai, Joaquim Seixas, o homenageado de hoje no projeto Rumo aos 100, que celebra a memória de meu pai, Joaquim de Lucena, e de todos os joaquins de luta de nossa história.
Saio correndo pela cidade rumo aos destinos joaquins, percorrendo trajetos que mergulham na memória da resistência democrática, das campanhas por um Brasil melhor.
Hoje foram quase treze quilômetros até chegar ao ponto onde, há 47 anos, pai e filho foram presos pelos esbirros da ditadura militar. Era em frente a uma padaria, que hoje não existe mais, na altura do número 9.000 da rua Vergueiro, na zona sul de São Paulo.
Chegar até lá foi quase fácil, na corrida, não fosse a própria rua Vergueiro. Ela desce de uma das regiões mais altas da área urbana paulistana, a continuação do chamado espigão da Paulistas, até cruzar rios, riachos e arroios nos baixios da cidade. De fato, se encabrita em colinas, com descidas íngremes e subidas desafiadoras.
Isso até parece bom para corredores que gostam de testar suas habilidades, mas é desagradável por causa das calçadas irregulares, estreitas, cheias de obstáculos.
Não faz mal. Para mim e meu colega de jornada, Gregório, ele também filho de um militante assassinado pela ditadura militar –Virgílio Gomes da Silva, o “Comandante Jonas”--, fazer a homenagem, chegar ao destino em que não há marco nenhum nem referência ao herói que ali caiu eraq incentivo suficiente para seguirmos na jornada.
Mais ainda: eu corria com a lembrança das palavras de Ivan Seixas, que mandou para o projeto Rumo aos 100 um emocionado depoimento, que você acompanha no vídeo a seguir.



Seixas também mandou um texto em que conta a trajetória do pai e relata, com mais detalhes, o calvário que a família toda enfrentou naqueles dias de abril de 1971. Dando a dimensão da brutalidade e da desumanidade vigentes na ditadura militar, é um documento contra a violência e ódio, publicado abaixo na íntegra.

JOAQUIM ALENCAR DE SEIXAS, MEU PAI

por Ivan Seixas
Nascido em 02 de janeiro de 1922, em Bragança-PA, Joaquim Alencar de Seixas começou a militar aos 19 anos. Operário mecânico, era filho de Estolano Pimentel Seixas e Maria Pordeus Alencar Seixas.
Foi mecânico de aviões em grandes empresas como Varig, Aerovias e Panair. Sua militância política acabou sendo motivo de demissão diversas vezes. Uma das demissões foi porque Joaquim apresentou uma denúncia contra a Varig --empresa cujos donos eram de origem alemã--, mostrando a relação entre o governo nazista e o governo de Getúlio Vargas, então vigente no país.
Em 1964, como funcionário da Petrobrás, era ativo militante sindical. Na madrugada do golpe de Estado, ele e vários companheiros sindicalistas, para não serem presos pela repressão militar, foram retirados da Refinaria simulando um acidente para passar pelo cerco que tomou a refinaria Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. Enquanto o Exército prendia lideranças sindicais, o alarme de segurança da refinaria foi acionado e ambulâncias passavam com os líderes cobertos de lençóis sujos de tinta vermelha, simulando sangue.
Ele e todos os sindicalistas tiveram suas residências vigiadas. Ao tentarem retornar ao trabalho nos dias seguintes, foram todos demitidos e incluídos em listas que não permitiam que conseguissem emprego. Assim, Joaquim se mudou com sua esposa Fanny e o restante da família para o Rio Grande do Sul.  
Joaquim Seixas e a esposa, Fanny
No Sul, trabalhou por dois anos como marceneiro e montou postos de gasolina até ser contratado pela Pepsi-Cola em 1967. Seria o encarregado pelo setor de mecânica da empresa. Novamente sua militância política e resistência à ditadura foi um transtorno para os patrões, servindo de motivo para mais uma demissão.
Sem conseguir outro emprego, toda a família se mudou novamente para o Rio de Janeiro, onde Joaquim seguiu por um tempo como motorista de táxi, até ser contratado pela Coca-Cola de Niterói-RJ, para ocupar mais uma vez o setor de mecânica e manutenção. Foi seu último emprego.
Em 1970, Joaquim e família se mudaram novamente. Desta vez, o destino foi a cidade de São Paulo, onde Joaquim militaria pelo Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), tornando-se um de seus dirigentes.
No dia 16 de abril de 1971, Joaquim Alencar de Seixas e seu filho Ivan, então com 16 anos, seriam presos na rua Vergueiro, altura do número 9000, e encaminhados para a 37ª Delegacia de Polícia, localizada na mesma rua.
Ambos eram acusados de participar do justiçamento de Albert Henning Boilesen, presidente da Ultragás, diretor da FIESP, financiador e instrutor de torturas na Oban –Operação Bandeirante, órgão de torturas e assassinatos não legal, depois oficalmente conhecida como DOI-CODI, destacamento de Operações de Informação do Centro de Operações de Defesa Interna, do Exército brasileiro. A morte do empresário havia sido um dia antes, resultado de uma ação conjunta do MRT e da Ação Libertadora Nacional (ALN).
Joaquim e Ivan foram espancados no estacionamento da 37ª DP enquanto os policiais trocavam os carros utilizados em sua captura. De lá foram levados para o DOI-CODI/SP e torturados um na frente do outro. No mesmo dia a casa da família foi invadida e saqueada pelos militares. Fanny, esposa de Joaquim, e suas duas filhas, Ieda e Iara, foram presas para serem torturadas no mesmo local. 
Em 17 de abril, os jornais paulistanos publicariam notas oficiais sobre a morte de Joaquim como se tivesse ocorrido em um tiroteio entre guerrilheiros e militares. Na realidade, Joaquim estava vivo e sendo torturado pelos militares quando a notícia de sua morte era publicada pelos jornais da grande imprensa. 
Ivan foi levado para as matas do Parque do Estado para ser submetido a um fuzilamento simulado, uma farsa recorrente realizada pelos torturadores como forma de intimidação e que já havia sido feita anteriormente.
Pela manhã, quando era levado de volta ao DOI-CODI, os agentes pararam em um estabelecimento para tomar café. Do carro, Ivan leu a manchete do jornal “Folha da Tarde”, que anunciava a morte de seu pai. Mas, ao retornar ao centro de tortura, encontrou seu pai ainda vivo e sendo muito torturado.
A família Seixas no RIo Grande do Sul, em um das poucas fotos
 que sobraram depois da invasão policial à casa dos Seixas
Na noite daquele dia 17 de abril de 1971, Joaquim Alencar de Seixas foi assassinado pelos militares torturadores do DOI-CODI. No processo contra o MRT, a foto de seu cadáver mostra visíveis sinais de torturas e um tiro na altura do coração, que foi apontado como a causa de morte no laudo assinado pelos legistas Pérsio José Ribeiro Carneiro e Paulo Augusto Queiroz da Rocha. 
A versão oficial da morte de Joaquim divulgava que ele havia falecido após levar sete tiros durante um confronto com policiais, ao reagir à voz de prisão.
O médico legista Nelson Massini, responsável por revelar muitas das verdadeiras causa mortis da ditadura, examinou os documentos de Joaquim e identificou que o militante havia falecido durante uma sessão de tortura, com oito lesões pelo corpo incluindo pancadas na cabeça.
Naquele dia 17, a esposa de Joaquim, Fanny, assistiu à retirada do corpo de seu marido do DOI-CODI. Ao ouvir a menção da morte dele, Fanny ergueu-se na ponta dos pés a tempo de ver os policiais forrarem o porta-malas da van C-14 no estacionamento e colocarem ali o corpo de Joaquim. Ainda chegou a ouvir um policial perguntar ao outro: “De quem é esse presunto?”. E ouviu de volta a confirmação: “Esse era o Roque”, o codinome de Joaquim na militância.
Os familiares e companheiros de militância identificaram como assassinos de Joaquim o major Carlos Alberto Brilhante Ustra, conhecido por “Doutor Tibiriçá”; o capitão Dalmo Lúcio Muniz Cirillo, conhedido por “Doutor Hermógenes”; o capitão Ênio Pimentel da Silveira, de codinome “Doutor Nei” ou “Nazistinha”; o capitão André Leite Pereira, conhecido por “Doutor Edgar”; o delegado Davi dos Santos Araújo, conhecido por “Capitão Lisboa”; o investigador de polícia Pedro Mira Granziere, conhecido por “tenente Pedro Ramiro”; o delegado João José Vetoratto, conhecido por “Capitão Amicci”, e outros torturadores conhecidos apenas pelos apelidos.
Ivan denuncia que o “Capitão Lisboa” foi o responsável pela pancada que vitimaria de vez seu pai, além de ter abusado sexualmente de sua irmã mais velha, Ieda.

VAMO QUE VAMO, RUMO AOS 100!


Percurso de hoje: 12,99 km (confira mais detalhes no vídeo abaixo)
Quilometragem acumulada: 71,29 km



POR QUE RUMO AOS 100
Meu pai morreu no dia 10 de julho. Seu último aniversário, em 16 de setembro de 2017, foi passado no hospital.
Dias antes, a família havia recebido o resultado de uma série de exames que se desenrolavam a passos de tartaruga desde o final de agosto: câncer no estômago.
Por causa dos exames e das dores, meu pai recebia medicamentos que, às vezes, o deixavam meio grogue. Mesmo assim, estava lúcido, conversava e gostava de lembrar momentos do passado.
No dia do aniversário, a ordem do hospital foi subvertida com a chegada das gentes mais próximas, que trazia bolo, docinhos, refrigerante.
Como a presença das visitas era restrita, os festejos acabaram sendo em várias levas. Eu apareci para a segunda rodada de bolo, apagar as velinhas, cantar o “Parabéns”, repetindo também a versão gauchesca da canção, que termina assim: “Que tu tenhas, sempre e todo o dia, paz e alegria na lavoura da amizade”.
Apesar de parecer meio de saco cheio, meu pai enfrentou com galhardia as brincadeiras. Cantou junto, meio arrevesado, fez esforço para soprar as velinhas, posou para fotos e mais fotos, deu beijinhos, ofereceu a careca para outros beijinhos.
De vez em quando, dava uma risada meio tossida, falava qualquer coisa, enquanto eu chorava por dentro, tentando represar a emoção e me preguntando, em silencia, por que eu achava que tinha de segurar o choro.
Era melhor.
Chegou a hora das despedidas, os presentes já abertos, abraços apertados, copos largados pelos lados, docinhos devorados.
Fui ainda mais uma vez abraçar e cumprimentar meu pai. E falei: “Oitenta e oito anos, hein, que beleza!”
Ao que ele respondeu na lata, sem perder o embalo da conversa: “Rumo aos cem!”
É esse o espírito que quero guardar comigo, que quero aprender e tentar ensinar. É esse espírito que quero homenagear nesta série de corridas, que devem somar, até o dia 16 próximo, 89 anos do nascimento de Joaquim de Lucena, um percurso total de cem quilômetros.

No comments:

Post a Comment