2.9.18

Homenagem a Joaquim Câmara Ferreira no projeto RUMO AOS 100


Para mim, a ditadura militar começou no dia em que abri a porta do apartamento onde morávamos, em Porto Alegre, e dei de cara com meu pai de olhos arregalados, branco, suado, assustado, exaltado, meio eufórico até.
Foi entrando e falando qualquer coisa: “Foi por pouco! Escapei!” ou algo assim, que se esfuma na memória.
Finalmente se acalmou um pouco para conseguir sentar e contar a história: quase tinha sido espancado por soldados que atacavam o povo. “A borrachada veio, eu me abaixei e caí fora!” é uma frase que guardo na lembrança.
Saíra do trabalho no meio da tarde, naqueles dias conflituosos. Caminhou pela Sete de Setembro e, quando passava pelo prédio da Prefeitura para chegar ao terminal de ônibus na praça XV, em frente ao mercado, encontrou uma grande manifestação de estudantes, sindicalistas, gente que protestava contra o golpe que derrubara o presidente João Goulart.
Sem apoiar nem desapoiar, ficou de plateia, assistindo ao movimento. De repente viu, descendo a Borges de Medeiros, a própria avenida em que se davam os protestos, a soldadesca enfurecida.


Soldados em rua de Porto Alegre, 1º de abril de 1964
Já chegaram batendo, sem nem saber em quem, nos manifestantes e em quem estivesse por ali, na rua. Naquele dia, a praça não era do povo.
Meu pai contou que tratou de escapar da violência atravessando a praça, subindo a Marechal Floriano, tentando encontrar ruas em que não se vissem as forças da repressão.
Alcançou enfim a avenida Salgado Filho, que poderia ser rota de fuga, pois já mais longe do fervo que tinha sido armado em frente à Prefeitura, nos arredores do Mercado.
Qual o quê!
Do nada, mais percebeu que viu chegarem os soldados, o cassetete baixando, o alvo era ele, que se abaixou, boleou o corpo, driblou a borrachada. O susto foi pior do que a lambada, e a vitória foi maior, pois dali conseguiu seguir para outras ruas menos movimentadas e acabou chegando em casa.
Eu tinha sete anos. Meu pai e minha mãe faziam parte do Movimento Familiar Cristão. Chegamos a ir assistir aos filmes que eram passados na igreja Santa Terezinha –a paróquia de nosso bairro, ao lado da escola de freiras que eu frequentava, a Nossa Senhora de Fátima--, promovidos por apoiadores da Cruzada do Rosário em Família, uma organização liderada pelo padre norte-americano Patrick Peyton.
Disfarçada de empreitada religiosa, a campanha do padre Peyton tinha o objetivo de fazer campanha contra o governo eleito de João Goulart, arregimentando as famílias com o bordão do anticomunismo.
No pós-golpe, a carolagem excessiva, a vinculação de parte da igreja à repressão e seu afastamento do povo, mais o trabalho que meus pais desenvolviam como assistentes sociais, atuando junto às populações mais carentes fez com que eles, aos poucos, fossem se bandeando para a oposição à ditadura militar.
Começaram a se articular com setores da igreja progressista e mesmo com organizações clandestinas que atuavam de forma imbricada com o pessoal da Teologia da Libertação. Articularam grupos de estudos e promoviam reuniões para debater a situação do país, formas de melhorar a condição do povo –como lembra uma das participantes desses encontros, Diles Tombini, que gravou um depoimento especialmente para o projeto Rumo aos 100.

De vez em quando, abrigávamos em casa gente que precisava se esconder da polícia. No início da adolescência, eu estranhava um pouco aquelas pessoas que não tinham sobrenome, apenas apelido. Fomos aprendo com eles, com a vida.
Em 1968/69, meu pai foi demitido do emprego por causa de perseguição política. Chegou a sofrer processo, acusado de subversão, por ter publicado um livreto sobre a Igreja e a história, falando sobre a teologia da libertação.
“Um padre amigo meu escreveu a história da igreja sob o ponto de vista socialista. A direção do Senai achou que o regime da ditadura podia não gostar daquele texto. A direção do Senai, onde eu trabalhava, ofereceu o folheto para exame pelo DOPS do Estado, a polícia política. Finalmente a leitura do folheto foi oferecida à Justiça do Exército, mas, ao final de um ano, o Exército não me indiciou na Lei de Segurança Nacional”, contou meu pai em depoimento a minha filha mais velha, Laura, em 2010.
Apesar do impacto provocado pela perseguição, nem meu pai nem minha mãe deixaram de participar das lutas pela democracia, de organizar cursos e grupos de discussão, sempre buscando a promoção das pessoas, a inclusão. Muitos desses cursos que, na década de setenta, meu pai ministrava, deixavam frutos –as pessoas continuavam a se encontrar mesmo depois da semana de aulas.
Foi assim que se gestou a pequena turma que, lá por volta de 1974, serviu de base, suporte, apoio para o grupo que viria a ser conhecido, anos mais tarde, como Organização Comunista do Sul, em que eu também participei.
Para celebrar essas lutas, esse passado de jornadas contra a ditadura, pela democracia, pelo Brasil e pelo povo brasileiro, que faço hoje, neste segundo dia de minha série de corridas memorialistas, uma homenagem a outro combatente da justiça, da liberdade e da esperança: Joaquim Câmara Ferreira, comunista e guerrilheiro, apelidado de “Toledo” ou “Velho”.
Foi o percurso mais longo que já enfrentei em quase um ano. É que recomecei a correr há pouco, depois de quase sete meses de limitação para exercícios mais fortes, por causa de lesões seguidas. Venho reconquistando a rua aos poucos, hoje me embebedei de asfalto, sol e algumas lombas beeem desafiadoras.


O objetivo era chegar à rua Joaquim Câmara Ferreira, na periferia do Jardim Elisa Maria, nas colinas da zona norte (acima). A rua, uma subida de cerca de 150 metros sem saída, faz parte de um conjunto de ruas nomeadas em homenagem a lutadores do povo, daqui e do exterior, de Carlos Lamarca e Olga Benário a Steve Biko e Patrice Lumumba.
Os nomes foram escolhidos pelos moradores do bairro, na década de 1990, depois de vitoriosa luta para regularizar o loteamento da época e conseguir a ampliação e pavimentação das vielas de terra que cortavam a comunidade.
Fiz todo o caminho com a companhia ilustre de outro filho de lutador das causas da democracia. Gregório Gomes da Silva não chegou a conhecer o pai, Virgílio, que estava em Cuba quando o filho nasceu. Apelidado de “Comandante Jonas”, foi uma das grandes figuras da ALN, ao lado de Joaquim, o “Velho”.


Contar a trajetória de Joaquim Câmara Ferreira, que dedicou mais de 40 anos à luta popular às causas povo, encerrada brutalmente em 1970, quando Toledo foi assassinado sob tortura, demandaria milhares de páginas.
Neste dia cinco de setembro, completam-se 105 anos do nascimento de “Toledo”, um dos apelidos que teve durante a guerrilha. Ele foi declarado, pela Comissão de Anistia, “jornalista e combatente herói do povo brasileiro". A Câmara de Vereadores de São Paulo lhe concedeu o título de cidadão paulistano "in memoriam". Câmara deixou dois filhos, Denise Fraenkel-Kose e Roberto Cardieri Câmara Ferreira, que receberam o "Diploma de Gratidão" e a "Medalha Anchieta" em nome do pai.
Pois Roberto nos deu a alegria de participar desse projeto Rumo aos 100. Como eu, filho de um joaquim de luta, lembra no vídeo abaixo os caminhos do “Velho” –para a família, “Zinho” (de Joaquinzinho).


Para encerrar esta homenagem a Toledo, ao meu pai, aos joaquins de fé cega e faca amolada, trago um depoimento de um dos grandes sobreviventes da luta contra a ditadura, o jornalista e escritor José Luiz del Roio, que foi militante do PCB no período pré-64 e, como Joaquim Câmara Ferreira, atuou na ALN ao lado de Marighella.


Vamo que vamo, rumo aos 100!


Percurso do dia: 13,44 km (abaixo, vídeo produzido logo após a corrida mostra um pouco da rua Joaquim Câmara Ferreira)
Acumulado no projeto: 20,63 km

POR QUE RUMO AOS 100
Meu pai morreu no dia 10 de julho. Seu último aniversário, em 16 de setembro de 2017, foi passado no hospital.
Dias antes, a família havia recebido o resultado de uma série de exames que se desenrolavam a passos de tartaruga desde o final de agosto: câncer no estômago.
Por causa dos exames e das dores, meu pai recebia medicamentos que, às vezes, o deixavam meio grogue. Mesmo assim, estava lúcido, conversava e gostava de lembrar momentos do passado.
No dia do aniversário, a ordem do hospital foi subvertida com a chegada das gentes mais próximas, que trazia bolo, docinhos, refrigerante.
Como a presença das visitas era restrita, os festejos acabaram sendo em várias levas. Eu apareci para a segunda rodada de bolo, apagar as velinhas, cantar o “Parabéns”, repetindo também a versão gauchesca da canção, que termina assim: “Que tu tenhas, sempre e todo o dia, paz e alegria na lavoura da amizade”.
Apesar de parecer meio de saco cheio, meu pai enfrentou com galhardia as brincadeiras. Cantou junto, meio arrevesado, fez esforço para soprar as velinhas, posou para fotos e mais fotos, deu beijinhos, ofereceu a careca para outros beijinhos.
De vez em quando, dava uma risada meio tossida, falava qualquer coisa, enquanto eu chorava por dentro, tentando represar a emoção e me preguntando, em silencia, por que eu achava que tinha de segurar o choro.
Era melhor.
Chegou a hora das despedidas, os presentes já abertos, abraços apertados, copos largados pelos lados, docinhos devorados.
Fui ainda mais uma vez abraçar e cumprimentar meu pai. E falei: “Oitenta e oito anos, hein, que beleza!”
Ao que ele respondeu na lata, sem perder o embalo da conversa: “Rumo aos cem!”
É esse o espírito que quero guardar comigo, que quero aprender e tentar ensinar. É esse espírito que quero homenagear nesta série de corridas, que devem somar, até o dia 16 próximo, 89 anos do nascimento de Joaquim de Lucena, um percurso total de cem quilômetros.


No comments:

Post a Comment