3.9.18

Dor e raiva, memória e arte no caminho do projeto Rumo aos 100


A minha corrida de hoje, terceira da série em homenagem à memória de meu pai, começou marcada pela dor, pela tristeza, pela revolta e indignação: desde a noite de ontem o mundo é inundado pelas terríveis imagens do incêndio que destruiu o Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro.

Foto Tânia Rego/Agência Brasil
“Perda irreparável”, frase feita usada por golpistas e por críticos do governo –responsável direto pela [falta de] manutenção dos prédios do Estado--, é insuficiente para abarcara o significado da destruição do prédio e do acervo do museu, que completou 200 anos neste ano.
“A maior parte do acervo, de cerca de 20 milhões de itens, foi totalmente destruída. Fósseis, múmias, registros históricos e obras de arte viraram cinzas. Pedaços de documentos queimados foram parar em vários bairros da cidade”, diz texto de reportagem publicada no portal G1.
Trata-se, afirmam especialistas, de tragédia anunciada. A manutenção do museu, mantido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, vem sofrendo com arrocho do orçamento, fruto do estrangulamento das instituições federais realizado pelo governo golpista –expressão máxima do projeto de destruição é a chamada PEC da Morte, que congela por vinte anos os investimentos públicos.
A corrida de hoje, então, fica dedicada também aos que lutam e lutaram pelo museu nacional, apesar de todas as dificuldades.
Homenagem a meu pai, Joaquim de Lucena, o projeto Rumo aos 100 é também uma defesa da memória, que nos faz ser o que somos –sejamos homens, mulheres ou Nação. Também em homenagem ao Joaquim, que foi assistente social e chegou a presidir o sindicato de sua categoria, publico a seguir nota emitida pelo povo da Faculdade de Serviço Social da UFRJ a respeito do incêndio do Museu Nacional.


Dito isso, volta à corrida de hoje, em que percorri dez quilômetros pela zona oeste de São Paulo para chegar até o parque Cândido Portinari.
Que raios de “destino joaquim” é esse?, talvez alguém possa perguntar.
Explico.
O pintor Cândido Portinari, progressista de quatro costados, dedicado a representar em suas telas a alegria e o sofrimento do povo brasileiro, foi um dos colaboradores de uma revista cultural de curta vida, mas grande impacto na cena modernista, “Joaquim”, lançada em Curitiba por um grupo de intrépidos intelectuais em que despontava Dalton Trevisan, autor de “O Vampiro de Curitiba” –nada a ver com uma certa figura dos dias de hoje.
A “Joaquim” durou pouco, apenas 21 exemplares de 1946 a 1948. Morreu de morte matada: Trevisan resolveu acabar com o periódico depois que a revista foi elogiosamente citada por ninguém menos que o deputado federal Gilberto Freyre -é, ele mesmo, o autor de “Casa Grande & Senzala”.
Trevisan achou que isso poderia indicar que a revista estava se institucionalizando, que sua rebeldia intelectual estaria prestes a ser cooptada e poderia perder seu caráter contestador e polêmico.
Vai saber.
É por isso, então, que meu destino foi o agradável parque da zona oeste. No caminho, cruzei por dois preás, que parecia fazer pose para a foto. Quando, porém, enfim consegui colocar minha câmera a postos, os bichinhos ficaram nervosos, e o máximo que eu consegui foi um registro da fuga deles...


Encerro aqui o registro de hoje, não sem antes trazer mais um depoimento sobre Joaquim de Lucena. A história contada no vídeo abaixo tem a ver com a vivência de assistente social de meu pai.

VAMO QUE VAMO, RUMO AOS 100!
Percurso de hoje: 10,52 km (acompanhe como foi no vídeo abaixo)
Distância acumulada: 31,14 km



POR QUE RUMO AOS 100

Meu pai morreu no dia 10 de julho. Seu último aniversário, em 16 de setembro de 2017, foi passado no hospital.
Dias antes, a família havia recebido o resultado de uma série de exames que se desenrolavam a passos de tartaruga desde o final de agosto: câncer no estômago.
Por causa dos exames e das dores, meu pai recebia medicamentos que, às vezes, o deixavam meio grogue. Mesmo assim, estava lúcido, conversava e gostava de lembrar momentos do passado.
No dia do aniversário, a ordem do hospital foi subvertida com a chegada das gentes mais próximas, que trazia bolo, docinhos, refrigerante.
Como a presença das visitas era restrita, os festejos acabaram sendo em várias levas. Eu apareci para a segunda rodada de bolo, apagar as velinhas, cantar o “Parabéns”, repetindo também a versão gauchesca da canção, que termina assim: “Que tu tenhas, sempre e todo o dia, paz e alegria na lavoura da amizade”.
Apesar de parecer meio de saco cheio, meu pai enfrentou com galhardia as brincadeiras. Cantou junto, meio arrevesado, fez esforço para soprar as velinhas, posou para fotos e mais fotos, deu beijinhos, ofereceu a careca para outros beijinhos.
De vez em quando, dava uma risada meio tossida, falava qualquer coisa, enquanto eu chorava por dentro, tentando represar a emoção e me preguntando, em silencia, por que eu achava que tinha de segurar o choro.
Era melhor.
Chegou a hora das despedidas, os presentes já abertos, abraços apertados, copos largados pelos lados, docinhos devorados.
Fui ainda mais uma vez abraçar e cumprimentar meu pai. E falei: “Oitenta e oito anos, hein, que beleza!”
Ao que ele respondeu na lata, sem perder o embalo da conversa: “Rumo aos cem!
É esse o espírito que quero guardar comigo, que quero aprender e tentar ensinar. É esse espírito que quero homenagear nesta série de corridas, que devem somar, até o dia 16 próximo, 89 anos do nascimento de Joaquim de Lucena, um percurso total de cem quilômetros.
    

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