6.3.16

Em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, saudamos a pioneira Bertha Lutz

Equiparação salarial com os homens, tratamento digno no local de trabalho e redução da jornada diária de 16 horas para dez horas –em nome dessas reivindicações, as operárias de uma fábrica de tecidos de Nova York foram à greve.

Era o ano de 1857, e os direitos civis e democráticos estavam longe das mulheres na terra que se dizia a maior democracia do planeta. A repressão foi violenta, feroz, assassina: no dia 8 de março, a fábrica foi incendiada, todas suas saídas trancadas.

Cerca de 130 tecelãs morreram queimadas.

Em uma conferência na Dinamarca, em 1910, o 8 de Março passou a ser reconhecido como Dia Internacional da Mulher. Mais de sessenta anos mais tarde, em 1975, a data foi oficializada pela Organização das Nações Unidas.

Na delegação brasileira presente no Primeiro Congresso Internacional da Mulher (esse da ONU, de 1975) estava uma senhora de 83 anos, aposenta havia mais de dez.

Foto Reprodução
Era Bertha Lutz.

Zoóloga de profissão, Bertha Lutz é reconhecida como a maior líder da luta pelos direitos políticos das mulheres no Brasil. 
É uma espécie de matriarca do feminismo verde-amarelo.

Filha do pioneiro da medicina tropical Adolfo Lutz e da enfermeira britânica Amy Fowler, Bertha nasceu em 1984. Estudou na Europa –fez biologia na Sorbonne, de Paris--, onde entrou em contato com as sufragistas britânicas.

Voltou ao Brasil em 1918. Um ano depois, já atuando na sua profissão, botou fogo na campanha pelo voto feminino, arregimentando apoiadoras e ativistas: com elas, criou a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher, que foi o embrião da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF).

A página do Senado Federal ensina: “Em 1922, Bertha representou as brasileiras na Assembleia-Geral da Liga das Mulheres Eleitoras, nos Estados Unidos, sendo eleita vice-presidente da Sociedade Pan-Americana. Somente dez anos depois do ingresso das brasileiras na Liga das Mulheres Eleitoras, em 1932, por decreto-lei do presidente Getúlio Vargas, foi estabelecido o direito de voto feminino”.

Não bastava para ela –nem apara as mulheres. Organizou o primeiro congreso feminista no Brasil e ainda diversas associações: União Universitária Feminina, Liga Eleitoral Independente, União Profissional Feminina e União das Funcionárias Públicas. Foi deputada federal e, na Câmara, batalhou pelos direitos das mulheres.

Chegando à rua Bertha Lutz, Gabriela, Yara e  eu - Fotos Eleonora de Lucena


Em homenagem a ela e à luta das mulheres, o percurso de hoje, na 17ª etapa da CORRIDA POR MANOEL, teve como destino a rua Bertha Lutz, uma vielinha na zona norte de São Paulo, onde se chega depois de um monte de curva para cá e para lá, subidonas e fortes descidas.

É uma rua de família: não notamos nenhum estabelecimento comercial, nem barzinho de esquina.

Falo “não notamos” porque estávamos em três: a promotora Gabriela Manssur e a jornalista Yara Achôa participaram comigo dessa jornada dedicada às lutas femininas.

Começamos no centrão, um pouco abaixo da praça da Sé, atrás do Solar da Marquesa de Santos, em frente à Primeira Delegacia de Defesa da Mulher.

Pioneira no Brasil, a DDM foi criada em São Paulo em 6 de agosto de 1985 pelo então governador André Franco Montoro (1916-1999).

“A ideia era oferecer um espaço diferenciado para a mulher, que seria atendida por outras mulheres, para que ela ficasse mais à vontade para falar a respeito desse assunto”, lembra Rosmary Correa, a primeira delegada da repartição, em entrevista à EBC. Hoje há nove delegacias da mulher na capital e 130 no Estado de São Paulo.

Pode parecer muito bom –e é. Mas as delegacias da mulher funcionam em regime especial. Não abrem à noite nem nos finais de semana; nesses dias e horários, as mulheres vítimas de violência têm de buscar ajuda nas delegacias comuns, onde nem sempre são bem atendidas.

Na corrida de hoje, portanto, a largada foi em frente à uma casa fechada.



Tudo bem.

Saímos para enfrentar um percurso bem acidentado, começando com um “mergulho” desde a Sé até avenida do Estado, onde cruzamos o primeiro viaduto do trajeto. 

O segundo seria para chegar ao largo da Concórdia, que hoje estava mesmo em paz e tranquilidade, mas que, nos dias de semana, ferve com vendedores ambulantes que oferecem de um tudo aos passantes.

Enquanto corríamos, Yara e Gabriela contaram um pouco de suas aventuras mais recentes.

As duas estão trabalhando firme na promoção da corrida Movimento pela Mulher, que foi idealizada por Gabriela em parceria com duas atletas-blogueiras, Deborah Aquino  e Paula Narvaez.

A prova serve como propaganda e divulgação das lutas femininas, além de ser um estímulo à atividade física. “A ideia é levar mulheres e homens a refletir e discutir temas como empoderamento, igualdade e justiça e conscientizar a sociedade e o poder público sobre o grave problema social que é a violência contra a mulher” –assim diz o material de divulgação da corrida (saiba mais AQUI).

Pois falando de corrida e maratona, da vida do dia a dia e das lutas femininas, acabamos conseguindo chegar à rua Bertha Lutz sem nos perdermos muito.

É pouco mais de uma viela, não chega a ter nem cem metros. Mas é uma lomba de respeito, que nós tratamos de subir como se deve: correndo à toda, desafiando um ao outro para ver quem chega no alto primeiro.

Chegamos todos. E festejamos.

Depois de baixados os batimentos cardíacos –subir a toda a lombinha da Bertha Lutz manda o coração aos píncaros da glória, pode me acreditar--, conversei mais um pouco com Gabriela Manssur sobre seu trabalho como promotora de Justiça.

Casada, mãe de três filhos, ela tem 42 anos e é promotora há 13 anos; antes, atuou como advogada.  Trabalha em Taboão da Serra no Núcleo de Combate à Violência contra a Mulher e é diretora da Associação Paulista do Ministério Público – diretoria da mulher.

Eis a seguir um resumo de nossa conversa.

RODOLFO LUCENA - Começamos nossa corrida em frente à Delegacia de Defesa da Mulher. Por que é preciso existir uma delegacia da mulher?

GABRIELA MANSSUR - A DDM é imprescindível, porque ela tem um atendimento com um olhar para essa mulher vítima de violência.

Se a mulher chega numa delegacia comum e fala que foi vítima de violência, não é dada a ela a atenção devida. É como se fosse um crime de menos importância; passam na frente homicídio, tráfico de drogas, roubo, e aquela mulher fica esperando horas e horas para ser atendida.

Às vezes ela vai relatar uma ameaça, contar que levou um tapa, enfim, não é um crime importante [para a delegacia comum]. A Delegacia da Mulher é própria para isso, então ela recebe um atendimento muito mais humanizado, com esse olhar de gênero.

Há um atendimento mais confidencial, com mais habilidade; muitas vezes é feito por mulheres. É um atendimento muito melhor para essa mulher abrir o coração dela, falar, denunciar.

Por que a senhora passou a atuar nessa área de combate à violência contra a mulher?

Eu sempre gostei de trabalhar com o empoderamento da mulher. Antigamente não se falava de empoderamento, mas de conquista de direitos, luta por direitos já conquistados.

Empoderamento da mulher, para mim, nada mais é do que dar às mulheres consciência dos direitos delas, para que elas exercitem esses direitos que já foram conquistados.

Quando eu ingressei no Ministério Público, percebi que as mulheres sofriam muita violência física, muita violência psicológica, muita violência sexual, e que nós não tínhamos um instrumento legal, jurídico, à altura do combate, do enfrentamento, da prevenção dessa violência.

Isso me trazia uma certa indignação, um certo inconformismo, próprio já aí dos promotores de Justiça.

Comecei a acompanhar já aí a evolução do texto da Lei Maria da Penha, que foi aprovado em 2006. Eu já era promotora de Justiça. E aí eu me interessei muito por todos os institutos legais que estavam na Lei Maria da Penha, que é uma lei muito ampla, de proteção integral à mulher vítima de violência, que prevê não só a parte criminal e a parte da punição do autor de violência com também a parte assistencial da vítima de violência doméstica, que é o que as mulheres mais procuram, mais precisam.

Então passei a me dedicar muito a isso: aplicar a lei, lutar por sua aplicabilidade e fazer valer todos esses dispositivos que estão na lei.

A Lei Maria da Penha é um legado que vamos deixar para nosso país e para o mundo, mas nós temos ainda um alto índice de violência contra a mulher.

Então precisamos identificar onde está essa lacuna. E é nisso que eu trabalho muito.

A lei deu a visibilidade para esse tema, e hoje em dia nós falamos muito mais abertamente sobre a violência contra a mulher.

Antes, era como se estivesse entre quatro paredes. Hoje essas portas dessas quatro paredes se abriram, e isso deixou de ser um problema particular.

Hoje em dia a violência contra a mulher é uma causa pública, que deve ser encarada de frente por todos e todas.

A mulher está reagindo mais?

Muito mais. Logo no começo da Lei Maria da Penha, eu percebi que as mulheres passaram a denunciar mais, a procurar mais a Justiça. Ainda um pouco ressabiadas, com um pé atrás, sem saber o que elas iriam encarar pela frente.

Mas elas demoravam para denunciar. A gente pegava casos em que a mulher sofria violência havia cinco anos, dez anos, vinte anos... Aquela lei foi como se tivesse sido aberta a porta da liberdade, para sair daquele ciclo de violência. Eram mulheres mais velhas, mais de 40 anos, mais de 30 anos.

Hoje em dia, a procura pela Justiça, a denúncia feita por essas mulheres, elas partem de jovens, que já estão conscientes de seus direitos e não aceitam a violência, seja numa balada, seja num bar, seja no ambiente universitário, na escola... Elas já procuram denunciar a situação de violência.

Eu vejo também que as mulheres que estão em algum relacionamento abusivo, em que ainda não existe uma violência explícita, elas já conseguem identificar que isso pode se tornar um relacionamento violento e elas procuram ajudam mais rápido.

Isso é importante por que é uma forma de prevenir a violência mais grave contra a mulher. Porque nem sempre você consegue identificar e agir de forma segura para a mulher; muitas vezes ela já está em um ciclo de violência forte, em que ele está sofrendo violência física muito forte, ela está sofrendo tentativa de homicídio, ela está sofrendo estupros constantes, e aquela mulher está tão enfraquecida que ela não consegue mais se enxergar como sujeito de direitos e perceber que ela consegue sair desse ciclo da violência.

Isso acaba evoluindo para o feminicídio.

Hoje a gente consegue identificar os fatores de risco em que ela está. É como se uma mulher estivesse com câncer de mama, fosse a um médico e ouvisse do médico: “Você tem de fazer uma quimioterapia porque senão você vai morrer”. E aquela mulher fala: “Não quero fazer quimioterapia...”

É a mesma coisa no caso da violência. Ela procura uma porta de entrada do acesso à Justiça. A gente diz: “Você tem de denunciar, você tem de medir uma medida protetiva”, e ela não quer, e aí você não consegue impedir que aquela “doença”, a violência, se alastre de uma forma incontrolável, e a gente não consegue salvar a vida dessa mulher.

É bem aí que eu atuo: quebrando esse ciclo da violência.

O que a senhora faz?

Trabalho com a autoestima dessa mulher, as mulheres que chegam para mim nos processos no Ministério Público e na sociedade em geral.

A gente determina a instauração do inquérito policial e acompanha essa mulher por dois pilares: um, fazendo o empoderamento dessa mulher, vendo o que essa mulher precisa como sujeito de direitos –ela precisa trabalhar?, ela precisa estudar?, ela precisa de saúde?, ela precisa de transporte?, ela precisa – uma atendimento psicológico, ou psiquiátrico?. 

Então a gente faz essa parte assistencial.

O segundo pilar é a parte da Justiça: a gente faz toda a parte do acompanhamento do caso dela para que esses fatos sejam punidos.

A sensação da punição do autor da violência daquela mulher é muito importante, porque ela sente que o que ela falou tem valor e que alguém está preocupado com a vida dela. E que o que foi feito contra ela é grave, é crime, e existe uma punição, existe uma resposta da Justiça.

E eu criei uma nova frente, que é trabalhar com o agressor.

Porque muito embora a gente faça todo esse trabalho, a violência contra a mulher não diminuiu.

Percebi que, em muitos casos, o homem é reincidente. Ele cometeu   aquela violência contra aquela mesma vítima ou contra outras mulheres –filha, mãe, namoradas anteriores. Você percebe que o comportamento dele está enraizado, ou culturalmente ou pela criação dele, por aquilo que ele viu durante toda a sua vida, ou porque foi criado em ambiente violento, porque viu a mãe ser agredida ou ele mesmo foi agredido.

Entende que aquilo que ele pratica não é violência, acha que a mulher realmente merece ser violentada porque ela estava com saia curta ou porque ela traiu ou porque ela quer trabalhar ou porque ela quer ser mãe ou porque ela optou por não ser mãe. Ou seja, ele não consegue respeitar as escolhas e a autonomia da mulher.

Comecei a trabalhar com esses homens que estão sendo processados. Tentar transformar esse comportamento deles ou, pelo menos, tentar conscientizá-los de que aquilo que ele fez é errado. Buscar o comprometimento dele de que não vai se comportar mais daquele jeito, o que também vai lhe dar um benefício legal.

Como as mulheres enfrentam a violência institucional?

Toda a mulher sofre a violência institucional. Não é uma violência física, que alguém te agride ou te assedie; são as poucas oportunidades que a mulher tem para ocupar espaço de liderança, espaços de poder dentro das instituições, dentro das empresas, dentro dos escritórios de advocacia.

Existe uma pesquisa que fala que o Brasil é o terceiro pior país do mundo em termos de incentivo à participação das mulheres em cargos de liderança e poder. Está atrás do Japão e da Alemanha, que são piores.

Como é um aspecto cultural, as pessoas não percebem que não estão incentivando as mulheres a participar. Simplesmente não tem mulher [em cargos de liderança] e é como se isso não fosse uma meta a ser cumprida em termos de igualdade entre homens e mulheres nos cargos de liderança em empresas públicas e privadas.

Hoje em dia, o ingresso na carreira [de promotor público] é equilibrado, ou seja, não existe uma vedação para a mulher ingressar no Ministério Público. Não: é concurso público. Mas o que eu vejo é o seguinte: a mulher tem aquela dupla ou tripla jornada de trabalho, em que via de regra ela não pode abrir mão da sua vida pessoal, familiar, para ir para determinadas promotorias ou comarcas no interior, e isso acaba atrasando um pouco a carreira dela.

Isso também afasta a mulher profissional da vida institucional. Ela não consegue, além de dar conta da casa, cuidar de filho, cuidar da vida pessoal, trabalhar –e o nosso trabalho é muito sacrificante, é muito duro, são vários processos com pouca estrutura, o que é próprio dos órgãos públicos—e ainda fazer parte da vida institucional. Participar de reuniões, de projetos, de movimentos de política institucional. Isso é muito difícil para a mulher conseguir. Então ela acaba se afastando dessa vida política.

Para os homens, é bem mais fácil. E eles acabam dominando esses espaços de poder, que poderiam, sim, ser ocupados por mulheres.

Eles estão vedando as mulheres de participar? Não. Mas também não estão enxergando que nós não estamos participando. E precisam ser desenvolvidas políticas de participação das mulheres, com flexibilização de horários, adotando algum tipo de meta a ser alcançada, mas que sejam de alguma forma abertas as portas para nossa participação.

E o esporte? Qual o papel do esporte nisso tudo?

É total. Dá uma sensação de liberdade, de conhecer pessoas novas, compartilhar histórias, saber que você faz parte da história.

É bom para a autoestima, dá uma sensação de que você pode, você consegue se relacionar com pessoas que não conhecia antes, entender a história dessas pessoas. Isso de alguma forma te acrescenta. Você se sente importante por isso, você se sente parte dessa sociedade.

Você transfere isso para sua vida profissional, você também quer mudar a realidade dentro de sua vida profissional. 

Empreendedorismo social, liderança, desenvolvimento de projetos que atinjam a sociedade mais carente. Você acaba construindo metas e transferindo isso para sua vida pessoal.

Fora a sensação de liberdade, a saúde, que é muito importante ter saúde física e mental para lidar com todo esse tipo de violência de que você acaba indiretamente sofrendo, quando você atende casos de violência muito graves, violência contra criança, pedofilia, abusos sexuais, violência muito forte contra a mulher.

O esporte é uma satisfação pessoal. Você começa a ver que existe felicidade, existe vida fora daquele relacionamento ruim, daquele trabalho ruim, daquela situação em que você está infeliz.

Quando você corre você enxerga isso de uma forma diferente. Você vê isso como uma possibilidade de mudar a sua vida, seja na parte profissional seja na parte pessoal seja na sua forma física , na sua saúde.

Muita gente começa a correr para parar de fumar, para emagrecer, para melhorar a autoestima.


Eu comecei a correr há anos, corro há muito tempo, e o esporte sempre me clareou as ideias. Quando você começa a atingir objetivos dentro do esporte, você fala: poxa, eu consigo mudar de vida, eu também quero isso na minha vida pessoal. 

Essa sensação de felicidade, de liberdade, de autonomia, você quer ter para sempre.


CORRIDA POR MANOEL – 17ª etapa

Destino: Rua Bertha Lutz, com largada em frente à 1ª Delegacia de Defesa da Mulher, percurso de 10,46 km, realizado em 1h20min

Distância total já percorrida: 163,29 km

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