3.3.16

No DOI-Codi, ditadura militar expõe sua face mais sangrenta

Quem sai da região do Ibirapuera, na zona sul de São Paulo, e sobe a rua do Livramento chega direto na pontinha do paredão que cerca o conjunto de prédios onde funcionou o DOI-Codi, a sucursal da inferno ou a “Casa da Vovó”.

Talvez seja ilação meio doida deste corredor que roda a cidade em busca de algum sentido que venha das ruas. Quem deu o nome à rua do Livramento, imagino eu, nem pensava na ironia urbana feita no encontro dela com a rua Tutóia, número 921.

Quem estivesse nas celas traseiras de qualquer um dos prédios do conjunto talvez pudesse ver, ao longe, as árvores da rua do Livramento. Que, por outra ironia, é de mão única: nelas, os carros só vão para longe, se afastam do prédio maldito, rodam sempre na direção dos ares mais benfazejos do Ibirapuera.

Notícias de jornal, conversas de políticos e até textos acadêmicos já se acostumaram a usar sempre a sigla como identificador do mais brutal serviço de repressão que atuou durante a ditadura militar.

É bom lembrar, porém, seu nome completo e sobrenome, para que ninguém esqueça e nunca mais aconteça. O Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) faz parte da história de um sem número de brasileiros que lutaram pela liberdade.

Nas suas celas foi torturado até a morte o operário Manoel Fiel Filho. Vou deixar para mais tarde o relato das barbaridades que Manoel lá enfrentou; hoje, 14º dia desta jornada jornalístico-esportiva em homenagem a Manoel, apresento tão somente o prédio e o serviço de atrocidades que lá se instalou.

Na minha corrida, tratei de fazer uma amarração no conjunto de edifícios onde hoje funciona o 36º Distrito Policial. Dei duas voltas completas no bloco, que não é um quarteirão bem formado: o desenho que fica é irregular, estrambótico, parece um rim machucado.


Assim também foram as decisões envolvendo a criação do DOI-Codi. Ele é a versão legalizada de um organismo criado em São Paulo depois da decretação do Ato Institucional nº 5, o AI-5: era a Oban, Operação Bandeirantes. O relatório da Comissão Nacional da Verdade resume a encrenca:

“A partir de uma Diretriz para a Política de Segurança Interna expedida em 2 de julho de 1969, o comandante do II Exército, general José Canavarro Pereira, juntamente com a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, chefiada por Hely Lopes Meirelles, resolveu unificar “os esforços” do Exército, da Polícia Federal e das polícias estaduais, civil e militar do estado de São Paulo para o combate aos opositores do regime, criando a Oban. O governador Abreu Sodré transformaria as dependências do 36º Distrito Policial, localizado na esquina das ruas Tomás Carvalhal e Tutóia, em um centro de torturas e assassinatos. Na Polícia Civil havia um grupo de policiais chefiados pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, da Delegacia de Roubos, que se notabilizou pela prática do extermínio (“Esquadrão da Morte”), transplantando seus métodos para a Oban, com o apoio do governo estadual. Por sua vez, a prefeitura de São Paulo, governada por Paulo Salim Maluf, providenciou o asfaltamento da área da Oban, reformou a rede elétrica e iluminou a região com lâmpadas de mercúrio.”

Na Oban foi torturado até a morte Virgílio Gomes da Silva, ex-líder sindical e comandante do sequestro do embaixador norte-americano no Brasil.

A mão armada e assassina da ditadura militar teve o apoio entusiasmado de grande parte do empresariado, segundo documento da Comissão Nacional da Verdade. As articulações passavam pela Fiesp, a organização que reúne os capitães de indústria do Estado –onde completei minha jornada de hoje.

Prédio da Fiesp, na avenida Paulista

Diz o texto: “Um número incerto de empresários paulistas também contribuiu, já que a arrecadação de recursos contava com o apoio ativo da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), por meio de seu presidente, Theobaldo De Nigris”.

E Paulo Egydio Martins, que viria a ser governador de São Paulo, afirmou, segundo registra o jornalista Elio Gaspari: “Àquela época, levando-se em conta o clima, pode-se afirmar que todos os grandes grupos comerciais e industriais do estado contribuíram para o início da Oban.”

O organismo se instalou direto no endereço da Tutóia, que também tem entrada pela Tomás Carvalhal, 1.030. 



Desde o início da década era usado como centro policial: em 1960 foram desapropriados três lotes, num total de 2.858,40 metros quadrados, para a instalação da Delegacia de Polícia da Vila Mariana”.

Pois no final daquela década o local se tornou um antro de criminosos  a soldo do Estado. 

Talvez por sua estrutura independente demais dos poderes executivos instituídos, a Oban não durou muito: criada em julho de 1969, deixou de existir em setembro do ano seguinte.

Não que tenha sido desarticulada. Foi transformada no DOI-Codi, que estava devidamente incluído na cadeia de comando dos órgãos repressivos. O que não significa que respeitasse a lei, como é sobejamente sabido.

Talvez nunca se venha a saber exatamente quantas pessoas sofreram nas celas do conjunto de prédio da Tutóia.



O artigo “Estatísticas do DOI-CODI”, assinado por Pedro Pomar e publicado na Revista da Adusp, lança alguma luz sobre esses números tão escondido.

O texto cita um relatório secreto do Exército dando conta da morte de  que 50 pessoas sob custódia do DOI-CODI, além da passagem de 6.700 pessoas por ali num período que vai entre 1970 e 1975 e detalhados no Relatório Periódico de Informações 6/75 (RPI 6/75), datado de junho de 1975.

Claro que esse não foi o número total de mortos. Há pelo menos mais três casos conhecidos de assassinatos depois de junho de 1975: o tenente José Ferreira de Almeida, o Piracaia, foi morto em agosto; em outubro Vladimir Herzog foi assassinado e, em janeiro de 1976, a vítima foi Manoel Fiel Filho.

O jornalista Marcelo Godoy, em seu livro “A Casa da Vovó”, em que faz uma espécie de biografia do DOI-Codi, crava 66 mortes, das quais 39 sob tortura após a prisão e outras 27 depois de gravemente baleadas durante a detenção.

Os crimes do regime militar acabaram contribuindo para sua derrocada.

A revolta contra a barbárie foi um dos combustíveis que ajudaram a retomado do movimento popular, das lutas sindicais e da oposição política à ditadura. O regime militar ainda sobreviveu por quase uma década, mas acabou enterrado.

Muitos algozes daquela época trataram de esconder documentos e provas de seus crimes. Por outros motivos, a tentativa de esquecimento da barbárie, até gente que combateu a ditadura pensou em botar abaixo a central de tortura.

Nana nina.

Há que “conhecer o passado, entender o presente, construir o futuro”, como diz o slogan do Núcleo Memória, entidade que reúne ex-presos políticos.

Em 2010, Ivan Seixas, um de seus fundadores e então integrante da Conselho de Defesa da Pessoa Humana, entrou com pedido de tombamento do conjunto de prédios onde funcionou a sucursal do inferno.

A reivindicação, apoiada por diversas entidades de direitos humanos e de vítimas da ditadura, saiu vitoriosa: em janeiro de 2014 o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat), órgão estadual de preservação, aprovou o tombamento.

A instrução do processo foi feita por uma jovem historiadora, Deborah Neves, que atua na Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo..

Eu pedi para outra jovem historiadora, Laura Lucena –que é minha filha e tem me ajudado enormemente  na pesquisa e na produção deste projeto CORRIDA POR MANOEL--, conversar com a Deborah. Trocaram várias mensagens por e-mail,e o resultado você acompanha a seguir.

LAURA LUCENA -  O que te motivou a estudar o DOI-CODI?

DEBORAH NEVES - Sou historiadora no Condephaat desde setembro de 2010, período em que estava com um projeto de mestrado pronto.

Nesse mesmo ano, havia ingressado aqui um pedido de tombamento formulado pelo Núcleo Memória, na figura de Ivan Seixas e outros coletivos de defesa de direitos humanos. Quando soube que havia esse pedido em andamento aqui, pedi à Diretora para que eu pudesse fazer a instrução do processo, já que o tema era diretamente relacionado ao tema de minha pesquisa de mestrado.

O processo foi aberto no ano de 2012, quando estava no segundo ano de meu mestrado e então a minha pesquisa e a elaboração do parecer acabaram influenciando um ao outro. Foi muito importante na minha formação profissional e acadêmica e tenho colhido muitos frutos de ambos.

Imagem incluída no texto sobre o tombamento do conjunto de prédios do DOI-Codi publicado no Diário Oficial de São Paulo


Quais os principais desafios enfrentados no processo de tombamento?
Alguns desafios foram impostos. O primeiro deles era criar uma argumentação que desse consistência à proposta de tombamento que não considerasse os aspectos estéticos e arquitetônicos dos edifícios como motivação principal para a preservação.

Por outro lado, era importante assegurar que os poucos locais identificados como próximos do "original" permanecessem preservados pelo tombamento. Era necessário convencer 26 conselheiros --muitos deles arquitetos e outros habituados à preservação por razões estéticas mais do que históricas-- de que o DOI CODI, uma edificação ordinária, merecia preservação por sua relevância para a história do país, muito além que para a história de São Paulo.

O desafio seguinte foi justamente identificar a história da construção: datar quando foi construído cada um dos edifícios e se havia muitas transformações externas e internas nele.

O primeiro passo foi coletar imagens de mapas históricos da região e fotografias aéreas. Depois a pesquisa em Diários Oficiais que levassem a  compreender como a edificação foi idealizada e depois transformada em DOI CODI, e por fim, identificar outros documentos administrativos que dessem conta da história desses prédios, pois sobre a estrutura já havia trabalhos conhecidos.

Nesse momento tive a ajuda de um investigador da Polícia Civil --que não trabalhou ali, ele é bem mais jovem- e que por curiosidade coletou algumas informações importantíssimas sobre o prédio.

A partir da colaboração dele e de alguns documentos "soltos" que ele me forneceu, encontrei processos junto à Procuradoria do Patrimônio Imobiliário que deram conta de revelar muitos pormenores importantes do uso pelo Exército. Foi determinante para datar e identificar como se deu a cessão do espaço do Governo do estado para o II Exército. A colaboração da Polícia Civil também foi importante, pois cederam algumas plantas do prédio da delegacia que foram determinantes para compreender como era a edificação, quais foram as alterações e a partir daí elaborar uma proposta de preservação.

Com isso, um terceiro desafio foi imposto: levar e ouvir as pessoas que ali ficaram detidas ou que ali trabalharam para fazer uma identificação in loco. Esse talvez tenha sido o momento mais importante do processo.

Separamos as pessoas por ano de detenção para que pudessem explicar como era o prédio no momento em que estiveram presos, pois sabia que internamente as disposições mudaram de acordo com as "necessidades" do DOI-CODI.

Esse momento foi bastante desafiador por algumas razões: a primeira era reunir o maior numero de pessoas para termos diversidade de informações; a segunda, pela sensibilidade de as pessoas ali retornarem depois de tantos anos.

Todas ficaram bastante emocionadas, mas as reações foram distintas: houve quem falasse muito, numa espécie de catarse, houve quem se resignou, houve quem chorou, houve quem se revoltou, mas todos, ao final, sentiam que aquele era um momento importante para sua própria história, por estar em uma outra posição nesse momento.

O terceiro desafio era manter o trabalho com o caráter técnico --havia o receio de que essa "incursão" com ex-presos tivesse uma conotação excessivamente política. Embora eu tenha tentado contatar ex-funcionários do DOI-Codi, nunca localizei nenhum.

Onde funcionava cada organismo, de acordo com croqui publicado no Diário Oficial de SP

Quais os benefícios desse tombamento?
Sob o meu ponto de vista, esse tombamento talvez seja o mais importante como registro da história da ditadura no Brasil.

Foi neste DOI-CODI que nasceu a estratégia militar de repressão, foi aqui que nasceu o modelo que se espalhou pelo país.

É um edifício emblemático para compreender como o estado lidou com a oposição e quais forças mobilizou em nome de um projeto.

É um espaço de morte, de dor, de censura, repressão e desaparecimento que ainda envolve as forças de segurança do país. É um modelo que, embora extinto em 1983, perpetuou uma mentalidade. Portanto, é um tombamento que nos conta sobre o passado mas nos explica ainda mais sobre o presente.
É também um reconhecimento simbólico do Estado que um dia torturou e matou pessoas por discordarem de um sistema. Uma reparação à sociedade e também aos perseguidos e suas famílias.

Pode vir a ser um compromisso com a interrupção desse modelo de segurança pública, mas aí já é uma esperança e uma construção que cabe a todos nós.

Por fim, é a preservação de um espaço em que se cometeram atrocidades e que pode permitir, através de sua visitação, que cada indivíduo tire suas conclusões a partir da percepção individual sobre o que ali aconteceu. A experiência de estar no local em que tantos crimes ocorreram é única e individual.

CORRIDA POR MANOEL – 14º dia

Destino – Prédio onde funcionou o DOI-Codi e passagem em frente à Fiesp, percurso de 11,58 km realizado em 1h36min48

Distância total: 135 km






1 comment:

  1. Rodolfo e Laura
    Muito obrigada pela oportunidade de participar de um projeto tão nobre.
    Nesse momento tão intrigante da história do nosso país, relembrar o que aconteceu de forma tão lúdica e simbólica faz-se não só necessária, mas urgente, para que não permitamos repetições.
    um abraço e parabéns pelo lindo projeto.

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