10.3.16

Morte de Manoel rompe unidade precária no interior da ditadura

Duas orquídeas brancas enfeitam uma árvore magra e alta, de copa bem verde, em frente ao número 815 da alameda Casa Branca, nos Jardins, bairro rico de São Paulo.

Sob a árvore, um marco de pedra informa: ali foi executado em emboscada Carlos Marighella, comandante da resistência armada ao regime militar.

Passei por lá na manhã de hoje, um dia cinzento, chuvadonho. Meu caminho tinha como destino a área de quartéis no Ibirapuera; ia correr em volta do Quartel General do Segundo Exército, a primeira instituição a sofrer as ondas do abalo sísmico provocado no regime pelo assassinato de Manoel Fiel Filho em 17 de janeiro de 1976.

Àquela altura, o general-presidente Ernesto Geisel encaminhava o que chamava de “distensão”, mais tarde transformada em “abertura lenta e gradual, porém segura”. Supostamente, queria encaminhar o processo de redemocratização do país; para isso, precisava conter o superextremistas que se aninhavam nas esferas de poder, eram o poder, compartilhavam o poder.

Ao longo de 1975, os terroristas que se aninhavam nas estruturas governamentais tinham assassinado em São Paulo o tenente PM José Ferreira de Almeida e o jornalista Vladimir Herzog.

Apesar de toda a repressão, o povo não aguentou calado o crime. Mais de 8.000 pessoas lotaram a catedral da Sé no culto ecumênico por Herzog –ali tomava corpo uma mobilização que já tinha se expressado nas urnas, no ano anterior, quando o regime fora fragorosamente derrotado.

Geisel não queria saber de resistência, queria tudo sob controle. A violência de seus subordinados, porém, podia chacoalhar seus propósitos. Pelo menos, é que contou Paulo Egydio Martins, então governador de São Paulo, em depoimento à Globonews em 2012.

Ele testemunhou encontro entre Geisel e o general Ednardo D`Ávila Mello, que comandava o Segundo Exército, pouco depois do assassinato de Vladimir Herzog. Assim transcorreram os fatos, segundo Paulo Egydio:

“Eu já tinha me recolhido com o presidente Geisel para a ala residencial do Palácio dos Bandeirantes. Estávamos sentados na biblioteca. Ednardo subiu para a ala residencial. Quando apareceu na porta, fiz um gesto de me levantar. Não ia ficar presente a uma reunião do Presidente da República com o comandante do II Exército, os dois generais. Geisel virou para mim e disse:  “Não, não, Paulo. Quero que você fique aí e escute”. E o general Ednardo D`Ávila Melo, perfilado, em posição de sentido, na frente de Geisel e na minha, ficou ouvindo Geisel se dirigir a ele assim:  “Ednardo, você me conhece muito bem. Você sabe do meu passado. Você sabe da minha história. Não vou admitir que fatos como esses que ocorreram aqui no II Exército se repitam. Quero que você saiba que vou tomar medidas. Você vai tomar conhecimento pelo seu ministro do Exército e pelo Diário Oficial. Vou tornar isso um decreto: proibir que alguém seja preso antes de uma comunicação ao meu gabinete – ao gabinete militar, ao SNI ou a mim, pessoalmente. Só depois dessa comunicação é que posso admitir que um preso político seja levado ao recinto de um quartel do Exército. O senhor está me ouvindo? Está entendendo? “. E o general: “Sim, senhor  Presidente; sim, senhor Presidente”. Geisel: “Pode se retirar”. Escutei tudo aquilo quieto e calado. Meses depois, houve o caso de Manoel Fiel Filho – que contrariou juridicamente, formalmente e hierarquicamente todas as determinações do Presidente da República, comandante-em-chefe das Forças Armadas do Brasil. Consequência: o general, fiel às palavras que tinha proferido na minha frente, exonerou um general de quatro estrelas do comando do II Exército, fato inédito na história do Exército brasileiro”.



A tortura e os crimes praticados no DOI-Codi, que era subordinado ao comandante do Segundo Exército, eram sobejamente conhecidos. Houve militares que, sabendo das diferenças internas da estrutura de comando, tentaram até se aproveitar disso, segundo relato do ex-governador Paulo Egydio na mesma entrevista à Globonews:

“Quando o coronel Erasmo Dias ( secretário de segurança ) me procurou, me disse o seguinte: “Governador, o general Marques me procurou, nervosíssimo, extremamente tenso, porque um sargento e um cabo, integrantes da equipe do DOI-Codi, foram a ele pedindo um volume de dinheiro. Senão, iriam delatar para a imprensa o que se passava dentro do DOI-Codi. E ele ficou sem saber o que fazer. Veio me pedir se eu podia arranjar esse dinheiro da verba secreta da Secretaria de Segurança.
“Quando eu assumi o governo, extingui a verba secreta do gabinete do governador. E disse a Erasmo que a verba secreta da Secretaria de Segurança era de responsabilidade dele. Jamais eu iria intervir. Virei para ele e disse: “Erasmo, a decisão é sua, sobre se vai atender ao Marques ou se não vai atender. Chantagem só tem duas respostas: “Ou você mata ou você morre”. Porque qualquer tentativa de aceitar chantagem é horrível, é péssima. É minha reação pessoal. Você faz o que você quiser fazer.
“Nunca mais tive retorno dessa conversa. Nada aflorou dessa chantagem. Mas ela mostra o que significa, como quebra de hierarquia militar: a gravidade deste episódio. Porque, quando um cabo e um sargento procuram um general comandante do Estado Maior de um Exército e chantageiam pedindo dinheiro para não contar o que estava se passando dentro do recinto pertencente a esse mesmo Exército, acabou qualquer hierarquia militar, qualquer espírito militar. Isso é absoluta e totalmente incompreensível e inaceitável”.

O comandante Ednardo sabia de tudo, aprovava e defendia. Em pelo menos uma vez, apareceu pessoalmente nas salas de tortura do DOI-Codi, a cerca de três quarteirões do Quartel general do Segundo Exército.

Quem conta é uma prima dele, Sarita D`Ávila Mello, militante do Partido Comunista, que esteve presa nas câmaras de tortura da rua Tutóia.



Em depoimento à Comissão Municipal da Verdade, Sarita relatou que o general Ednardo D’Ávila Mello chegou à sala quando ela estava começando a receber choques elétricos. Segundo ela, o general pediu aos torturadores que preservassem a vida da moça.

Não foi torturada naquele dia nem nos dias seguintes em que esteve presa. Sua libertação, no dia 24 de outubro de 1975, não significa, porém, que o esquema de tortura no DOI-Codi tinha sido abrandado ou contido: no dia seguinte Vladimir Herzog foi assassinado.

Apesar das ordens dadas por Geisel a Ednardo, a fúria brutal dos ultradireitistas continuou.

Menos de três meses depois do assassinato de Herzog, Manoel Fiel Filho é morto sob tortura. A tentativa de disfarçar o crime, transformando assassinato em suicídio, não serviu nem para as “internas”, conforme descobriu o coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Claudio Fonteles, analisando documentos guardados no Arquivo Nacional. Eis o que ele relata em entrevista a Luciana Lima, do site Ig:

“No caso da morte do operário Manoel Fiel Filho, preso num episódio periférico, distribuindo panfletos, há no Arquivo Nacional um bilhete manuscrito informando que o general Ednardo (D’Ávila Mello,  comandante do então II Exército, São Paulo) manda prender e manter incomunicável toda a equipe (um tenente, dois delegados e dois agentes) que participou do interrogatório. Mostra que o Estado sabia que ele havia sido morto (sob tortura) pelos agentes e não se suicidado (por enforcamento), como informaria a versão oficial (a alegação de que o operário usara as meias para se enfocar, segundo o bilhete, deixara o general “preocupado, contrariado e constrangido” antes que o assunto tivesse sido noticiado.”

Mais contrariado ainda ficou o general-presidente, que soube da morte na noite de domingo, dia 18 de janeiro de 1976, mais de 24 horas depois do crime ter ocorrido. Foi avisado pelo governador de São Paulo, Paulo Egydio, por telefone.

“Presidente! Matando-se assim, um por mês, no DOI-Codi do Segundo Exército, não ganharemos eleição em São Paulo”, disse o governador, segundo registra Sylvio Frota, então ministro do Exército, em seu livro “Ideais Traídos”.

As traições foram em penca, naqueles dias, a crer no relato de Frota –mais tarde também defenestrado por Geisel.

Frota, por sinal, diz ter sido o último a saber: foi informado apenas na manhã de segunda-feira. O subchefe do Centro de Informações do Exército, que estava de plantão no fim de semana, não achara necessário informar ao ministro quando soube do assassinato do operário em São Paulo.

O próprio comandante do Segundo Exército, de acordo com o livro, só teria sabido na manhã de segunda-feira –Manoel fora preso na sexta e morto no sábado. O então chefe do SNI (Serviço Nacional de Informações), general João Baptista Figueiredo, mais tarde sucessor de Geisel também só recebeu a informação na manhã do dia 19.

Eram indicadores de que a divisão e a discórdia reinavam no interior do regime. Geisel decidiu pela exoneração de Ednardo –a notícia foi publicada na terça-feira, na mesma página da Folha de S. Paulo em que saiu uma nota oficial do Segundo Exército dando conta da morte de Manoel.

Ainda que as Forças Armadas aceitassem o comando de Geisel,  a situação era instável. Para Frota e muitos aliados dele, “o Governo estava traindo a Revolução, insultando o Exército e estimulando a subversão”.

Cinco generais chegaram a oferecer a Frota suas tropas. Pelas propostas, o ministro do Exército deveria se demitir e tomar a frente de um movimento de reação ao governo de Geisel.

No livro, Frota não explica por que não aceitou a chamada para um golpe de ultradireita em uma ditadura já de superdireita. O certo é que, naquele momento, ficaram mais evidentes e expostas as fissuras no regime.

Para muitos analistas, a morte de Fiel Filho é um divisor de águas. O cineasta Jorge Oliveira, que produziu um documentário sobre o caso, deixa claro sua opinião no próprio título do filme: “Perdão, Mr. Fiel – O Operário Que Derrubou a Ditadura no Brasil”.

Isso provavelmente é um exagero. Mas não muito, como analisa o ex-presidente Lula em declaração ao documentarista: “Depois da morte [de Fiel] começou o processo de democratização no país e não parou nunca mais”.



CORRIDA POR MANOEL – 20ª etapa
Destino: QG do Segundo Exército, percurso de 13,71 km realizado em 1h47min08
Distância percorrida até agora: 209,08 km





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