23.3.16

Marcos e monumentos lembram mortos e desaparecidos da Universidade de São Paulo

Eu adoro a USP.

Simples assim. Quando cheguei a São Paulo, migrando do Rio Grande do Sul, caminhava pelas alamedas monumentais da Cidade Universitária imaginando como deveria ser legal estudar ali. Criava cenários, analisava possibilidades, me via nas salas de aula, nas bibliotecas, nos clubes, nos botecos.

Vivíamos ainda no tempo da ditadura, no início dos anos 1980. Já respirávamos ares mais limpos, estudantes, operários, partidos e movimentos sociais tinham conquistado a anistia, o povo botava o pé na porta, estava prestes a raiar de novo a democracia no Brasil.

Já lá se foram 35 anos. Hoje volto à USP sem sonhar com suas salas de aula, mas sim para aproveitar novamente suas alamedas, a sombra, o asfalto bem alinhado: a USP virou, nas últimas décadas, palco de esportes, ponto de encontro para corredores.

Sem deixar de ser ambiente de debates –ainda que diversas administrações tenham procurado limitar o direito à palavra e à livre manifestação, enquanto outras chegaram, em plena democracia, a chamar a polícia para bater na meninada em revolta.

Com tudo isso na cabeça –a cidade universidade libertária e a academia opressora, os centros de recreação e o asfalto aberto para o corredor--, voltei hoje ao campus principal da Universidade de São Paulo, na zona oeste da cidade.

Na 31ª etapa da corrida por Manoel, rodei pela Cidade Universitária em busca da memória da luta dos estudantes e professores uspianos. Dali saíram figuras maravilhosas, que tiveram papel destacado na história da resistência democrática.


Iara Iavelberg dava aulas na Faculdade de Psicologia, Vladimir Herzog era professor de jornalismo, Alexandre Vannucchi Leme estudava geologia, Olavo Hansen era aluno da Poli, Frei Tito estudava psicologia.

Na minha corrida de hoje, visitei a todos eles.

Entrei pela portaria principal, o Portão 1, para fazer a volta de 10 km. Corredor é assim: não sabe nome de rua, não se lembra de mão nem contra-mão, mas tem percursos decorados na cabeça: a volta de 10, a volta de 6, a volta de 10 sem biologia, a subida do cavalo, a volta da prefeitura, a volta da raia.

Minha volta de dez quilômetros seria a tradicional, completa, com a subida da Biologia –uma rampa de cerca de dois quilômetros que testa a determinação do atleta e a força das panturrilhas (e dos quadríceps, dos pés, do coração...).

Comecei na reta da raia, que acompanha a lagoa –raia olímpica—em que o povo faz disputas de remo. Passei de passagem pela praça do relógio –é lá que fica o memorial em homem aos mortos e desaparecidos da USP durante o regime militar—e me fui para a subida do cavalo.



Essa rampinha é assim nomeada porque ao pé dela fica uma estátua equestre, em uma rótula em frente à entrada do IPT, o Instituto de Pesquisas Tecnológicas. O monumento é em homenagem ao arquiteto e ex-prefeito de São Paulo Ramos de Azevedo.

Fiquei pensando se os heróis da resistência não seriam mais merecedores de memorial tão imponente. O fato é que a USP --sua administração, não seu povo—maltratou a memória dos uspianos combatentes da democracia.


Quando, finalmente, na segunda metade da década passada, foi decidido produzir um marco em homenagem aos uspianos mortos ou desaparecidos, o nome do projeto inicial falava em “vítimas da revolução” –o que provocou revolta na comunidade. 

Houve até um documento de protesto assinado por professores, alunos, ex-presos políticos e familiares de mortes e desaparecidos.

O que parecia –parece ainda, como veremos—é que a homenagem era envergonhada, apenas para cumprir uma obrigação. O que já é alguma coisa, penso eu enquanto faço a volta no monumento cavalar e subo em direção ao bosque da USP.

Esse é um dos lugares mais agradáveis da Cidade Universitária, cheio de sombras, de verde, de vida. Quando minhas filhas eram pequenas, a família passou horas caminhando pela trilha de um quilômetro, que oferece alguns equipamentos para exercícios ao longo do percurso.



Hoje me delicio apenas com os mil metros de chão batido, que ainda guarda trechos escorregadios. É uma trilha traiçoeira, com leves descidas e subidinhas progressivas: se o passante descuidar do chão, pode acabar de cara nele.

Subi a rampa da Biologia, desci pela rampa da FAU –no mapa, ruas do Matão e do Lago. De novo cá embaixo, fui para o Instituto de Geociências, minha primeira parada na jornada de hoje.

Ali, numa praça interna muito bem arrumadinha, está um marco em homenagem a Alexandre Vannucchi Leme.



Trata-se de monumento simples ao extremo, apenas um bloco de concreto que serve de base a uma placa de bronze em que se lê a seguinte inscrição:

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA


Comissão de Anistia

DIREITO À MEMÓRIA, À VERDADE E À REPARAÇÃO
Aos que lutaram e morreram por um Brasil democrático
Em 15 de março de 2013, realizou-se no Instituto de Geociências da USP a 68ª Caravana da Anistia em homenagem a ALEXANDRE VANNUCCHI LEME, nascido em Sorocaba em 05 de outubro de 1950. 
Excelente aluno e querido de seus colegas por sua liderança, cursou geologia neste Instituto entre 1970 e 17 de março de 1970, quando foi morto sob torturas nas dependências do DOI-CODI de São Paulo.
Foi declarado anistiado político por unanimidade pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, oficializando-se o pedido de desculpas do Estado brasileiro à sua família bem como o reconhecimento público ao seu legítimo direito de resistência contra o autoritarismo e a opressão.
Para que não se esqueça. Para que nunca mais aconteça.

Bem bacana. A placa está um pouco maltratada, mas até que a preservação é razoável. E o marco foi colocado num ponto bacana, nessa praça central que também tem outros ícones do mundo geológico, como blocos de madeira petrificada e colunas de rochas. Há ainda a inusitada presença de um modelo em ferro de um assustador tiranossauro.



Saí dali bem impressionado. E fiquei mais satisfeito ainda ao ver a estátua instalada no hall do Instituto de Química em homenagem à professora Ana Rosa Kucinski.

Militante da ALN (o grupo comandando por Marighella),  Ana Rosa desapareceu junto com seu marido, físico e também militante da ALN, Wilson Silva, em 1974. No ano seguinte a seu sequestro e desaparecimento, Ana Rosa foi demitida da USP por “abandono de função” –o que demonstra que nem sempre a academia se levantou contra a opressão, muito antes pelo contrário.

O monumento em homenagem a ela –uma rosa estilizada—foi inaugurado em 22 de abril de 2014, quando se completavam 40 anos de seu desaperceimento. Dias antes, a Congregação do Instituto de Química da USP  havia decidido por unanimidade revogar a exoneração da professora.



O então vice-reitor da USP, Vahan Agopyan, considerou a homenagem um reconhecimento de que a universidade cometeu um erro ao ter demitido a professora.  “É um reconhecimento, é a nossa história sendo passada a limpo. Nós temos de lembrar bem a história para não repetir os erros do passado. Para as novas gerações, isso é um marco físico", disse ele à “Folha de S. Paulo”.

Na placa de bronze colocada na parte frontal do bloco que sustenta a escultura da flor estilizada, está escrito o seguinte:

Homenagem do Instituto de Química da 

USP a

ANA ROSA KUCINSKI

PROFESSORA SEQUESTRADA E MORTA 

PELA DITADURA

12/01/1942 – desaparecida em 

22/04/1974

Que sua lembrança inspire as futuras 

gerações a lutar, como ela, contra os que 

tentam sufocar a liberdade.

Abril de 2014



Essas homenagens a Ana Kucinski e a Alexandre Vannucchi Leme são especiais, abrigadas nos prédios onde eles viveram sua vida acadêmica. O triste –e emocionante—é que praticamente todos os prédios da Cidade Universitária 
poderiam ter memoriais assim.

Foram quase 40 os uspianos assassinados pela ditadura militar, mortos ou desaparecidos entre 1964 e 1985. Eles evidenciam a face mais brutal e criminosa da ditadura, que também perseguiu a produção intelectual, cultural, acadêmica sem torturar nem matar, mas sim colocando um torniquete sobre a comunidade pensante.



Levantamento feito pela Comissão da Verdade da USP (Universidade de São Paulo) identificou 664 professores, alunos e funcionários que foram de alguma forma perseguidos durante a ditadura militar. 

Além dos atos explícitos –prisão, tortura, morte, expulsão, degredo--, havia controle  das ações de professores, alunos e funcionários .

Os mortos, pelo menos, foram homenageados pela USP. O monumento em sua honra fica em uma área pouco movimentada da praça do Relógio, num cantinho, a bem dizer.



São 11 blocos de concreto em que estão colocados, em com  letras de metal, os nomes dos uspianos que deram suas vidas combatendo pela democracia e pela liberdade.

O jornal da Associação dos Docentes da USP fez um levantamento dos casos, indicando o departamento em que eles atuavam e quando foram mortos ou despareceram.

Simples e mal cuidado, o monumento não é chamado de homenagem “às vítimas da revolução. Alguns blocos estão pichados; a sensação deste visitante é que a área é um tanto esquecida.



O nome oficial, impresso no primeiro bloco de concreto, é “Memorial em homenagem aos membros da comunidade USP que foram perseguidos e mortos por motivações políticas durante o regime militar (1964-1985)”.

Logo abaixo do nome há uma citação de um trecho da Declaração Universal de Direitos Humanos: “Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”.

Pois é.



CORRIDA POR MANOEL – 31ª etapa

Destino – Cidade Universitária, USP, 

percurso de 24,53 km realizado em 3h15

Distância já percorrida: 330,91 km


ADENDO

Como disse acima, o processo de construção do Memorial provocou polêmica na comunidade uspiana e entre familiares de mortos e desaparecidos políticos. Eles chegaram a produzir um documento sobre o assunto. O texto, divulgado em março 
de 2012, é o seguinte:


Manifesto pela Democratização da USP


Nós, perseguidos pelo regime militar, parentes dos companheiros assassinados durante esses anos sombrios e defensores dos princípios por eles almejados assinamos este manifesto como forma de recusa ao monumento que está sendo construído em homenagem às chamadas “vítimas de 64” na Praça do Relógio, Cidade Universitária, São Paulo.

Um monumento na USP já deveria há muito estar erguido. É justo, necessário, e precisa ser feito. Porém, não aceitamos receber essa homenagem de uma reitoria que reatualiza o caráter autoritário e antidemocrático das estruturas de poder da USP, reiterando dispositivos e práticas forjadas durante a ditadura militar, tais como perseguições políticas, intimidações pessoais e recurso ao aparato militar como mediador de conflitos sociais. Ao fazer isso, essa reitoria despreza a memória dos que foram perseguidos e punidos pelo Estado brasileiro e pela Universidade de São Paulo por defenderem a democratização radical de ambos.

Esse desprezo pela memória dos que sofreram por defender a democracia, dentro e fora da Universidade, se manifesta claramente na placa que inaugurava a construção de tal monumento. A expressão “Vítimas da Revolução de 1964” contém duas graves deturpações: nomeia de “vitimas” os que não recearam enfrentar a violência armada, e, mais problemático ainda, de “revolução de 1964” o golpe militar ilegal e ilegítimo.

Essa deturpação da linguagem não é, portanto, fortuita. Resulta da ideologia autoritária predominante na alta cúpula da USP.

Durante a ditadura, essa ideologia autoritária levou a direção central da USP a perseguir, espionar, afastar e delatar muitos dos que então resistiam à barbárie disseminada na Universidade e na sociedade brasileira como um todo. Ainda macula a imagem desta Universidade a dura lembrança (i) dos inquéritos policiais-militares, instaurados com apoio ou conivência da reitoria; (ii) das comissões secretas de vigilância e perseguição; (iii) das delações oficiais de alunos, funcionários e professores para as forças de repressão federais e estaduais; (iv) da mobilização do aparato militar na invasão do CRUSP e da Faculdade de Filosofia em 1968; (v) da colaboração quase institucional da USP, na figura do seu então reitor, Luis Antonio Gama e Silva, na redação do Ato Institucional Número 5 – AI5; (vi) e da aprovação, por Decreto, do regimento disciplinar de 1972, que veda a docentes e discentes qualquer forma de participação política e confere à reitoria poder para perseguir os que o fazem.

Atualmente, essa mesma prática autoritária se manifesta não apenas na inadmissível preservação e utilização do regimento disciplinar de 1972 para apoiar perseguições políticas no interior da Universidade, mas também (i) na reiterada recusa da administração central da USP em reformar o seu estatuto antidemocrático, mais afeito ao arcabouço jurídico da ditadura militar do que à Constituição Federal de 1988; (ii) na forma pouco democrática das eleições dos dirigentes da USP, que assume sua forma mais absurda no processo de escolha do reitor por meio de um colégio eleitoral que representa menos de 1% da comunidade universitária; (iii) na ingerência do governo do Estado na eleição do reitor desta Universidade; (iv) e, mais grave ainda, na recorrente mobilização da força policial-militar para a resolução de conflitos políticos o interior desta universidade, tal como ocorreu, recentemente, na desocupação da reitoria da USP.

Nesse sentido, em memória dos que combateram as práticas da barbárie autoritária e suas manifestações, defendemos que a melhor forma de homenagear os muitos uspianos e demais brasileiros que tombaram nesta luta não é um monumento; mas, sim, a adoção dos princípios verdadeiramente democráticos em nossa Universidade, o que demanda o fim do convênio com a Polícia Militar, bem como o fim das perseguições políticas pela reitoria e pelo Governo de São Paulo a 98 estudantes e 5 dirigentes sindicais, através de processos administrativos e penais, e a imediata instauração de uma estatuinte livre, democrática e soberana, eleita e constituída exclusivamente para este fim.

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