5.3.16

Ruela na zona sul homenageia o tenente José Ferreira de Almeida

Maria Sierra morreu de tristeza e dor. Não deixou herdeiros, não tinha marido.

Tivera.

Dona Maria era viúva do tenente José Ferreira de Almeida, assassinado pela ditadura militar em agosto de 1975 na mesma cela em que, dois meses depois, seria morto o jornalista Vladimir Herzog. Como no caso Herzog, a versão oficial foi de que o militar se enforcara com um cinto.

Na última vez em que viu o marido com vida, no prédio do Dops de São Paulo, não pode sequer abraçar o companheiro. 

“Estou muito dolorido”, disse ele à mulher e à sobrinha –filha aditiva, a bem dizer--, segundo registra reportagem de Paula Sacchetta publicada em “O Estado de S. Paulo” em 2012.

Maria e Nazareth, então com 28 anos, voltaram várias vezes ao prédio do Dops. Esperavam por horas, até que alguém lhes mandava embora, dizendo que ele não poderia receber visitas ou que não estava ali naquele dia –de fato, durante o mês em que esteve preso, Almeida transitou entre as celas e as câmaras de tortura do Dops, na região central de São Paulo, e do DOI-Codi, na zona sul.

“Piracaia”, como era conhecido o tenente nascido naquela cidade do interior paulista, se entregou à polícia política no dia 7 de julho de 1975.

Vinha sendo procurado havia vários dias. Sua casa, na rua Ibirajá, zona sul de São Paulo, tinha sido diversas vezes “visitada” por policiais. Finalmente um deles ameaçou Nazareth, a sobrinha-filha adotiva de Almeida: “Ou ele se entrega ou levamos você”.

Almeida, então com 63 anos, decidiu se entregar.

Ele era diretor de Clube de Oficiais da Reserva. Para a repressão, era um perigoso membro do Partido Comunista Brasileiro. A família, porém, nega relações de Piracaia com o PCB: “Só tinha ideia avançadas demais para o período”, disse Nazareth à repórter Paula Sacchetta.

O certo é que era um líder classista, defendia sua categoria e fazia reivindicações em nome dos trabalhadores na Polícia Militar do Estado de São Paulo. Foi preso com outros militantes, soldados e oficiais da PM, acusados de pertencerem ao PCB.


Reprodução de imagem publicada no portal Memórias da Ditadura

No seu livro “A Ditadura Encurralada”, o jornalista Elio Gaspari registra: “Descobrira-se uma base do Partidão dentro da Polícia Militar paulista. Ela estivera invicta desde sua montagem, em 1946. Funcionava sob as rígidas normas de segurança do Setor Militar, ligando-se diretamente a um representante pessoal do secretário-geral do PC. Segundo o CIE, conseguira infiltrar um sargento no DOI por dois anos. Na sua liquidação, prenderam-se 63 policiais. Entre eles, nove oficiais da ativa, inclusive um tenente-coronel, e doze da reserva”.

O tenente Almeida sobreviveu às torturas durante um mês.

A farsa montada pela ditadura, atribuindo sua morte a suicídio, foi desmascarada quase imediatamente. Durante o velório, apesar da proibição imposta pela autoridades da repressão, familiares abriram o caixão, constatando marcas de tortura no corpo.


Logo em seguida, militantes de resistência à ditadura distribuíram panfletos denunciando o caso. Um deles ficou nos arquivos do Dops e vai aqui reproduzido na íntegra:

“Faleceu no dia 07 do corrente nas dependências do DOI, segundo consta, em hora incerta, o 2º Tenente José Ferreira de Almeida, da Polícia Militar, Diretor do Clube dos Inativos e do centro dos oficiais da reserva da P.M. Casado com 63 anos de idade, havia sido preso no dia 07 de julho p.p. e encaminhado para o DOI. Dalí foi removido para o DOPS e novamente voltou ao DOI. Sua esposa pôde vê-lo uma única vez, quando da quebra da incomunicabilidade. Havia sido espancado, submetido a choques elétricos, socos e pontapés. Tiraram-lhe também os dentes da frente (uma pequena ponte móvel) prometendo-lhe que a mesma só lhe seria devolvida quando estiver morto. Sua casa foi vasculhada. José Ferreira de Almeida sofria de úlcera duodenal e necessitava de tratamento médico. Em virtude das torturas a que foi submetido e considerando o seu estado de saúde e a sua idade este soldado MORRE.

“Sua morte, decretada pela repressão reinante no País é justificada perante a família como o caso de um suicídio por estrangulamento ou asfixia. Com a frieza de ditadores que detêm o poder sobre a vida humana, um militar comunica a notícia à família, “por ordem superior”. Nenhuma noticia se tem sobre o suspeito “suicídio”. Testa a necropsia não se evidenciaram sinais no pescoço. A morte de José Ferreira de Almeida inaugura uma nova forma de assassinato sem qualquer prurido frente à opinião pública e ao mundo dos homens livres. A repressão assume essa morte no território de outras tantas mortes - a Oban (DOI-Codi). Já não há mais preocupação em forjá-las nas ruas sob a forma de eventuais acidentes.

“Na medida em que em nosso País tais fatos se sucedem e se acumulam de forma tão acelerada é impossível a qualquer brasileiro menos avisado acreditar nas promessas de distensão política, de busca de desenvolvimento pacífico e de redemocratização para a família brasileira. Não há falas presidenciais nem discursos ministeriais que possam encobrir a ditadura vigente. Ela está presente na cidade e no campo, penetra na nossa casa, amordaça nossas bocas, algema nossas mãos, tira nossas vidas.

“Para os brasileiros conscientes que lutam pelos Direitos Humanos e pelas liberdades Políticas o nome de José Ferreira de Almeida entra para a História como um combatente que COMBATEU UM BOM COMBATE!.”

A morte de Piracaia foi analisada pela Comissã da Verdade do Estado de São Paulo, que concluiu: “Diante das circunstâncias do caso e das investigações realizadas, pôde-se concluir que a vítima foi executada por agentes do Estado brasileiro, restando desconstruída a versão oficial de suicídio divulgada à época dos fatos”.

E recomendou: “Retificação do atestado de óbito, identificação e responsabilização dos agentes envolvidos na prisão, tortura e morte de José Ferreira de Almeida nas dependências do DOI-Codi/SP”.



A cidade de São Paulo homenageia o tenente José Ferreira de Almeida com uma rua na zona sul de São Paulo. Fui visitá-la hoje, na 16ª etapa da CORRIDA POR MANOEL.

Trata-se, de fato, de uma ruazinha, uma ruela, pouco mais do que uma viela de uns 120 metros de comprimento, sufocada entre duas outras vias.

A maior parte de um dos lados da rua é tomada por um muro, que cerca condomínio de vários prédios. Do outro lado, casas modestas, alguns sobrados.

No asfalto, sobram algumas lembranças do início do século, marcas de desenhos feitos provavelmente na época da Copa do Mundo de 2002  --há bandeiras do Brasil e do Japão que, junto com a Coreia do Sul, sediou a competição daquele ano.

Na única placa que identifica a rua, na esquina com a rua José Gervásio Artigas, a inscrição está incompleta, não dá para saber que o homenageado era militar. 

Numa linha, sobra apenas uma letra “a”. Na segunda linha, parte da primeira palavra está apagada; resta apenas: “te. José Ferreira de Almeida”.

É pouco.

CORRIDA POR MANOEL – 16ª etapa

Destino do dia: Rua Tenente José Ferreira de Almeida, percurso de 16,62 km realizado em 2h13min37


Distância total: 152,83 km

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