Neste Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, estabelecido
pelas Nações Unidas no final do século passado, faço aqui uma homenagem aos
atletas com necessidades especiais.
Conto a história de Paulo Almeida, que teve uma perna
destruída em um acidente de trabalho e acabou se tornando maratonista de
altíssima qualidade, chegando mesmo a disputar provas mais longas: foi o
primeiro atleta amputado a enfrentar a temida Comrades. Realizada na África do
Sul, é a mais importante ultramaratona do mundo, reunindo mais de dez mil
pessoas em cada edição, num trajeto encabritado de 89 quilômetros (ou 87
quilômetros, conforme o sentido em que é percorrida e que se alterna ano a
ano).
Conheço Paulo de vista há muitos anos, em encontros
passageiros em corridas ou treinos pelas alamedas do Ibirapuera ou pelas ruas
da cidade. Tem passada firme e rápida, mal fazendo barulho ao bater no chão com
sua prótese especial para corrida.
Tive uma oportunidade de fazer uma longa e proveitosa
caminhada ao lado dele no final de 2013, quando eu realizava um projeto
jornalístico-esportivo-cultural em homenagem a São Paulo, que em janeiro de
2014 faria 460 anos. Paulo me acompanhou em uma das etapas do projeto (CLIQUEAQUI PARA VER A HISTÓRIA), que era de percorrer 460 quilômetros pela cidade,
mergulhando em suas entranhas, descobrindo lugares e personagens.
Aquele projeto, por
sinal, foi uma das inspirações para minha empreitada de agora, em que uso a
corrida e as caminhadas para discutir questões envolvendo a vida do povo da
terceira idade, que chega aos sessenta anos, de acordo com definição da Organização
Mundial da Saúde e do Estatuto nacional do Idoso.
Sigo fazendo minhas caminhadas diárias. Neste Dia
Internacional das Pessoas com Deficiência, meus pensamentos e minha escrita
ficam com Paulo de Almeida.
Ele é quase uma lenda entre os corredores com necessidades
especiais; a bem da verdade, é admirado por todos nós. Foi cinco vezes campeão
da maratona de Nova York na categoria de amputados, duas vezes ouro em uma
maratona no Brooklin, bicampeão em Chicago, tricampeão na maratona de São
Paulo.
Em 2001, tornou-se o primeiro atleta amputado a participar
da mais importante ultramaratona do mundo, a Comrades, na África do Sul.
Naquele ano, não conseguiu completar a prova no tempo limite –sua prótese
quebrou no km 81.
Mas estou me adiantando. Reproduzo a seguir reportagem que
escrevi sobre ele e foi originalmente publicada na revista “O2” em 2014.
A COMRADES NUM PÉ SÓ
O plantão estava tranquilo, uma beleza. Claro que ninguém
gosta de trabalhar na virada do ano, ficar preso no escritório enquanto o mundo
todo festeja. Ainda mais longe de casa, sem os amigos, a família. Tirando isso,
porém, o dia seguia sem maiores problemas. Não havia novas compras nem
equipamentos a serem entregues, não estava prevista a chegada de ninguém. Tudo
ia seguir em brancas nuvens, 1998 chegaria cheio de promessas de um futuro
ainda melhor.
Até que se deu o desastre.
Os comandos da empilhadeira elétrica entraram em curto, e a
máquina desembestou na plataforma, fazendo tudo tremer, acelerando como se
estivesse roncando motores numa largada de Fórmula Um. E se foi embora.
“Eu não consegui frear a empilhadeira. Ela caiu da
plataforma, eu caí junto. Saltei, mas ela me pegou. Caiu em cima do meu pé, deu
esmagamento na hora. Para tirar, tiveram
de chamar os bombeiros, porque ninguém
conseguia mexer a empilhadeira.
Quando tentavam movimentar a minha perna debaixo da empilhadeira, o asfalto
afundava. Era mais ou menos 16 mil quilos. A amputação foi traumática, foi na
hora.”
Acabou o plantão para Paulo de Almeida. A virada do ano de
1997 para 1998 ele passou em um hospital em Itapecerica da Serra, onde
aconteceu o acidente. “Fizeram os primeiros socorros lá e depois me trouxeram
para o Hospital Metropolitano, em São Paulo. Eu peguei uma infecção hospitalar,
precisei ficar em isolamento, passei mais ou menos 30 dias nisso. Tiver de
fazer quatro amputações. Ia dando gangrena e amputação ia subindo. Hoje eu
tenho mais ou menos 20 cm de perna abaixo do joelho”, relembra ele.
Com esse pedaço de perna, mais uma prótese especial, Paulo
corre pelo mundo inteiro dando exemplo de força de vontade e espírito
esportivo. Ele que nunca correra provas longas antes do acidente, hoje, aos 47
anos, já tem no currículo de atleta amputado cerca de 60 maratonas e outras
provas longas, inclusive duas Comrades, a mais famosa ultramaratona do mundo,
realizada sempre sob forte calor em uma estrada cheia de longas subidas e
descidas, na África do Sul.
Mora em um belo apartamento na zona sul de São Paulo, é
casado, tem um filho. Corre todos os dias, de madrugada, rodando pelas ruas de
São Paulo. Passa bastante tempo com a família, que adora. Escolhe a dedo as
provas em que vai participar, faz palestras motivacionais. “Sou um cara feliz”,
me diz ele em uma conversa no bosque do parque da Independência, depois de uma
caminhada de mais de dez quilômetros pela cidade, no final do ano passado.
Mas não foi sempre assim. “Quando adolescente, não estava
satisfeito com a vida em Caruaru, eu era meio que ovelha negra da família, eu
era um moleque meio virado”, lembra ele.
Paulo nasceu em 1965, em uma cidadezinha do interior
pernambucano que tem sertão até no nome: Sertânia. Terra boa, em região
escolhida pelos antigos donos do Brasil: por ali viveram os índios cariris
–piripães, caraíbas, rodelas, jeritacés, todos da nação tapuia, que acabaram
escravizados quando do início da povoação pelos brancos, no século 18.
Para a família Almeida, porém, depois da metade do século
20, a cidade não trazia esperança. Com o menino Paulo ainda bebê, mudaram-se
todos para Caruaru, onde ele cresceu e virou aquele moleque “meio virado”. Tão
insatisfeito e rebelde que um dia disse, sem falar: “Deu, acabou”. E se mandou
da terrinha.
“Eu vim dentro de uma carga de um caminhão. O cara
estacionou o caminhão próximo da minha casa, eu sabia que ele estava vindo para
São Paulo, então peguei uma sacolinha de supermercado, coloquei algumas roupas,
um short, umas camisetas e entrei na carga do caminhão do cara. Juntei uns
cocos verdes e fiquei lá. Quando chegou à Bahia, a fome apertou, só então o
cara descobriu que estava me trazendo de clandestino”, conta Paulo.
O caminhoneiro não sabia o que fazer, primeiro ficou
furioso, queria mandar o garoto de volta, avisar a família, fazer alguma coisa,
temendo ser acusado de qualquer coisa. Já maior de idade, Paulo argumentou que
não ia adiantar, que não voltaria, que precisavam dar um jeito...
Acabaram chegando a um
acordo, e o menino de 19 anos seguiu viagem como uma espécie de clandestino
conhecido... Sem dinheiro, dava jeito de fazer uma boquinha nem sempre dentro
dos cânones sagrados da legalidade. “Eu entrava nos restaurantes, comia, depois
saía de fininho. Entrava na carga do caminhão de novo. Vim do Nordeste para cá
fazendo isso. Foram três dias e meio de viagem.”
Boa praça, o motorista largou sua carga indesejada na
estrada, antes de chegar ao destino. Paulo ficou na Castelo Branco, pertinho de
Osasco, e tratou de descobrir um teto. Passou dias na estação de trem da
cidade, dormindo onde dava, comendo o que encontrava, vivendo como lhe fosse possível.
Precisava mesmo era de um emprego.
Conseguiu uma vaga numa empresa, ajudante, pau para toda a
obra. Não ganhava quase nada, mas a firma tinha alojamento. Melhor do que
dormir na rua.
Por pouco que fosse, o salário lhe permitia pensar em
melhorar de vida. Do alojamento, saiu para morar em uma pensão. Mais um tempo, o grande salto, alugou um
barraco para viver sozinho, no bairro operário Veloso, em Osasco. “Eu olhava
para o barraco, pensava, é aqui mesmo que eu vou morar, aqui vou ser feliz.”
Comprou móveis, uma cama, um aparelho de som. “Um belo dia,
depois que eu comprei tudo para minha casinha, deu uma chuva lá e encheu o meu
barraco, eu perdi tudo... Eu achava que estava indo para um lugar melhor e
fiquei sem nada.”
Hoje ele filosofa a respeito: “Acho que aprendi muito com
essa de saber perder. O ser humano, acho, está treinado só para ganhar. Então
aprender a perder, a vida me ensinou muito, com essa de saber perder e
levantar...”
Tratou de se levantar. Foi faxineiro, balconista de padaria,
funcionário de lanchonete, segurança. Nas horas vagas, jogava futebol com a
turma, fazia boa figura no campo e no salão.
“Isso me ajudou nos relacionamentos, em me relacionar com outras
pessoas. Você numa cidade dessas, sem ter nenhum parente. A solidão é uma coisa
muito ferrada, você ficar numa cidade do tamanho de São Paulo sem ter um primo,
uma parente, é duro. O esporte me trouxe isso também, essa parte
de relacionamento, de interagir com outras pessoas.”
Assim, conseguiu empregos melhores. No final de 1997, já
trabalhava no setor de emissão de nota fiscal, estava na área administrativa,
progredia na empresa. Então a empilhadeira endoidou, perdeu o pé direito,
depois parte da perna. Mas até que deu sorte.
“No hospital, eu tive todas as informações sobre o cara que
eu poderia ser no futuro, dali para a frente. É uma mudança de identidade.
Quando você perde um membro, não é só o membro que você perde, você perde sua
identidade também. Você passa a ser um cara com deficiência, a sociedade vai te
olhar de outra maneira.”
Isso não significa que a pessoa com deficiência precise ou
deva aceitar esse outro olhar, condescendente. “Os médicos me disseram que eu
poderia ter uma vida normal, que eu poderia trabalhar, que eu poderia correr,
que eu poderia fazer tudo. Poderia tomar banho de mar, poderia nadar , poderia
pedalar.. Hoje, quando alguém sabe que eu corri 90 km, não pode me olhar com se
eu fosse um coitadinho”, diz Paulo.
Apesar do apoio, porém, houve momentos em que ele se sentiu
mesmo abandonado, sem rumo. “Eu passei por depressão. Bebi. Bebia junto com o tratamento. Você tem
os altos e baixos, porque não foi só maravilha, e não é para ninguém. Acho que
todos têm seus altos e baixos, só que eu tive o privilégio de ter os profissionais
ali para poder passar a mão na minha cabeça e dar continuidade ao tratamento.”
Assim, aos trancos e barrancos, conversando com médicos
especializados –o próprio cirurgião que lhe amputou a perna era também um
amputado--, decidiu experimentar fazer esporte. Com uma prótese convencional,
de caminhada mesmo, partiu para algumas corridas.
“No início, tinha vergonha da prótese. Morava no km 17 da
Raposo Tavares, pegava um ônibus com a calça de agasalho e ia fazer caminhada
em Vargem Grande Paulista. Fazia tudo de calça, porque tinha vergonha de
mostrar a prótese. Até que eu belo dia eu falei: meu, hoje vou fazer caminhada
de shorts para ver o que vai acontecer. E aí, no primeiro dia que eu fiz essa
caminhada, eu via aqueles caras de carro buzinarem, dando parabéns, isso aí foi
levantando a autoestima, eu achava superlegal aquelas pessoas me parabenizando
porque eu estava fazendo meu esforço ali, de ir de uma cidadezinha para outra.”
Isso fortaleceu seu espírito, ajudou que viesse a decisão:
“Aqui foi elevando minha autoestima e aí um belo dia eu fui lá e falei para o
meu médico: meu, já sei o que eu quero. Vou partir para o atletismo, vou fazer
corridas”.
Dito e feito. Participou de algumas provas realizadas em São
Paulo, foi ganhando confiança, partiu logo para correr a maratona de São Paulo.
“A prótese não absorvia nada do impacto, machucava muito. Pensei em desistir
várias vezes ao longo do percurso, mas segui. Estourei o tempo, terminei em
mais de seis horas, mas cheguei. No final da prova, o coto estava em carne
viva.”
Apesar das dores, ficou fascinado pela maratona, pela
conquista. Com os apoios que conseguiu, foi correr a maratona de Nova York,
ainda com a prótese comum. Percebeu que tinha de mudar: precisava de uma
prótese para corrida, aquelas lâminas de liga especial, que absorvem o impacto
e ainda ajudam no movimento.
“Eu fui sempre um cara de brigar por meus objetivos. Fui
falar com a assistente social da empresa, dizer que queria a tal prótese. De
cara, a empresa falou que não ia dar essa prótese, porque não fazia parte do
processo de recuperação. Aí eu falei que estava fazendo atividade física e que
eu queria uma prótese para fazer atividade física, porque quando eu tinha as
duas pernas eu jogava bola, fazia tudo.”
Nova negativa, mas Paulo não desistiu. “Falei que a partir
de amanhã iria ficar num banquinho na Anhanguera, no local em que o presidente
da empresa entrava, fazer uma faixa e esperar o presidente...”. Não precisou: a
empresa acabou cedendo, ele ganhou sua primeira prótese de corrida.
Mudou tudo. Correu novamente a maratona de Nova York, foi
saudado pelo público, começou a ter mais apoios, as primeiras conversas sobre
patrocínio. No Brasil, experimentou correr provas de velocidade, de 100 m e 200
m, de olho na Paraolimpíada de Sydney, no ano 2000.
“Fiz os Jogos regionais paraolímpicos, o campeonato brasileiro,
fui campeão brasileiro. Nos 200 m, cheguei a ter o quarto melhor tempo do
mundo. Fui convocado para a Paraolimpíada.”
Chegou mesmo a fazer o passaporte, mas a festa não durou muito: uma
semana antes da viagem, foi cortado, o Comitê precisava economizar, a delegação
brasileira era limitada.
“Dá dor, mas a vida tem de continuar. Eu não sou muito
aquele cara de ficar martelando em uma coisa que não depende de você. Eu martelo
em coisas que dependem de mim. O que depende de outra pessoa não me pertence,
cada um pensa diferente, cada um age diferente, não sou eu quem vai mudar.”
Seguiu nos treinos, voltou para as provas longas, arriscou
tudo na Comrades, tentando mostrar ao mundo que um amputado podia fazer uma
prova de quase 90 km. Por mais que sua vontade fosse grande, porém, parecia que
os deuses da corrida não concordavam com tal esforço.
“No quilômetro 81, a
prótese quebrou. Terminei andando.
Encontrei um amigo, o médico Milton Mizumoto, que correu comigo. Eu tinha de
ficar parando, passando fitas na prótese, amarrando, mas não dava para correr,
mal dava para apoiar. Eu parava algumas vezes, arrumava. E o final, aqueles
últimos quilômetros, é a parte mais difícil para mim, porque tem muita descida.
Como eu não tenho o calcanhar na prótese de corrida, a descida fica mais
complicada. Mas terminei. Estourei o tempo, fiz em 12 horas. Fui o único
amputado.”
Foi uma vitória, mas ficou a dor de não ter conquistado a
medalha. Seis anos depois, em 2007, Paulo teve sua “vingança” contra a
Comrades. Estava bem treinado, conhecia o percurso e foi com apoio, levando uma
prótese sobressalente. Trocava as lâminas a cada dez quilômetros. O resultado:
sopa no mel. “Terminei sobrando. Terminei com um pé só mesmo: tirei a prótese
quando faltava uns dez metros e terminei a Comrades pulando. Fiz em 10h56.”
A conquista se somou a um longo currículo de vitórias em
provas longas. Fez até uma corrida de 24 horas e tem vários títulos nas
maratonas de Nova York, Chicago e São Paulo, para citar só algumas. Precisou
montar uma empresa para administrar sua carreira.
Não passa por cima de sua perda. “Você pode ser amputado há
50 anos, essa falta sempre vai ser cobrada. É uma coisa que seu cérebro vai mandar.
Hoje já faz 16 anos do acidente e eu ainda vou calçar meia num pé que eu não
tenho. Esse negócio de falar que você não sente a falta, não é verdade: isso aí
é para o resto da vida. Nada substitui um membro.”
Mesmo assim, talvez ele esteja hoje melhor do que se tivesse
continuado a vida que levava no século passado, antes do desastre. “Não imagino como seria se não tivesse
ocorrido o acidente. Acho que eu não estaria mais aqui não. Acho que estaria
morto. Tive uma infância meio ferrada. Eu era muito bagunceiro, andava com más
companhias. Até uns 23 anos, eu era virado mesmo...”
O que importa, porém, não é o que poderia ter sido, mas o
que aconteceu e o que Paulo Almeida é hoje. “A corrida me devolveu tudo o que o
ser humano precisa. Autoestima. A corrida
me mostra um mundo diferente, que eu não via antes. Acho que sou um cara mais
humano hoje do que antes; antes eu pensava só em mim, hoje eu penso no próximo,
em ajudar as pessoas, acho que sou um cara que gosto mais de mim, cuido da
minha saúde. A corrida me devolveu tudo isso.”
VAMO QUE VAMO!!!
600 aos 60 – etapa 19 – 2016 dez 03
4,61
km caminhados em 1h05min10
Quilometragem
acumulada: 69,77 km
Tempo
acumulado: 15h17min05
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