Hoje juntei a fome com a vontade de comer.
Caminhei, conheci um sujeito sensacional, fiz entrevista e
ainda divulguei –e continuo divulgando neste exato momento em que você lê este
texto— um evento em defesa da democracia no Brasil.
Tudo ao mesmo tempo agora.
Explico.
Estou trabalhando na divulgação da sensacional Corrida e
Caminhada Fora Temer, organizada pelo grupo Corredores Patriotas Contra o Golpe
(CLIQUE AQUI para saber mais).
Uma das minhas atividades é fazer contato com outros grupos,
coletivos, entidades e associações democráticas e esportivas (ou não),
convidá-los para o evento, conquistar seu apoio, presença e companhia nessa
jornada.
Na manhã de hoje, tinha uma reunião com um dos organizadores
da Marcha da Consciência Negra, que já está em sua décima-terceira edição.
Ela será realizada também na Paulista, e
nossa ideia era fazer um combo político-esportivo das duas manifestações, pois
a Corrida e Caminhada Fora Temer também será realizada nesta manhã domingueira
na Paulista.
Legal, mas isso prejudicava meus planos de caminhada. Todos
os dias preciso caminhar pelo menos três quilômetros para dar fôlego ao meu
projeto de chegar aos 600 quilômetros no dia de meu aniversário, 14 de
fevereiro.
Se eu não fizer isso pela manhã, é difícil conseguir realizar ao
longo do dia, pois as outras tarefas, responsabilidades, o lazer e o descanso
se acavalam.
E o meu parceiro de hoje trabalha em Diadema, o encontra
fora marcado lá no Jabaquara, que fica a mais de 15 quilômetros de meu ponto de
partida para a caminhada –por enquanto não posso correr, preciso tratar de uma
fratura por estresse que atingiu meu joelho esquerdo.
Resolvi então flexibilizar um pouquinho as orientações do
médico. Em lugar de uma caminhadinha de três quilômetros, uma jornada de quase
o dobro. Iria até a estação Paraíso e lá pegaria o metrô até o Jabaquara para
encontrar Wilson Roberto Levy, uma das lideranças do movimento negro
brasileiro.
Dito e feito, juntei a fome com a vontade de comer, fiz
minha caminhada, e não descuidei de minhas responsabilidade cívico-esportivas.
O Wilson é uma simpatia. Paulistano, tem 64 anos. Nascido no
Brás, é filho de uma empregada doméstica e de um trabalhador na área de
transporte que deram o sangue para o menino estudar e ter melhores chances na
vida. Hoje ele é contador, tem uma microempresa na área e dedica a vida à militância
no movimento negro e pela democracia no Brasil.
Juntos fizemos uma transmissão ao vivo convocando o povo
para a Corrida Fora Temer e para a Marcha da Consciência Negra. Confira aí o
vídeo.
Depois, fiz ainda uma breve entrevista com ele, que
reproduzo a seguir. E já adianto que ele voltará a frequentar essas páginas,
vamos organizar uma caminhada juntos num futuro muito próximo.
Enquanto isso, confira aí um pouco da história desse grande
sujeito a quem tive o prazer e a honra de conhecer hoje.
RODOLFO LUCENA - Como
começou sua militância no movimento negro?
WILSON LEVY - Minha
ex-mulher do primeiro casamento –eu já estou no quarto—costumava dizer que eu
era um “homem de movimento”, como dizia
uma música do Caetano. Eu nasci nos movimentos sociais.
Na juventude, fiz parte dos centros acadêmicos, dos grêmios
estudantis. Participei depois do movimento universitário, naveguei com as
tendências políticas do movimento estudantil.
E aí, do movimento estudantil, participei também do movimento
negro. Fui ao ato que criou, em 1978, o Movimento Negro Unificado em São Paulo,
na praça Ramos.
Ao mesmo tempo, estava me aproximando do movimento sindical,
fui ser diretor do Sindicato dos Marceneiros. Participei do processo de construção
da CUT (Central Única dos Trabalhadores), estive no congresso da CUT e estive
na Praia Grande, na grande Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras, a
Conclat, estava lá também.
No movimento negro, pude perceber toda uma mudança de
intervenção, produzindo conquistas, como a criação da Secretaria de Promoção da
Igualdade Racial, que foi criada por força desse movimento.
O Lula assinou em 2003 a lei 10.639, que obriga o ensino de
história da África na escola. Foi nesse processo de pressão do movimento.
Estive nesse movimento, continuo nesse movimento e vejo que,
neste momento, está havendo um retrocesso, estamos voltando lá para 1940,
quando não havia nenhuma dessas conquistas e era tido como se não houvesse
racismo no Brasil, que no Brasil todos eram totalmente iguais e que havia
liberdade...
RODOLFO LUCENA - E há
racismo no Brasil?
WILSON LEVY - O
Brasil é o país mais racista do mundo. É extremamente racista.
É preciso entender o conceito de racismo, que é um mecanismo
de dominação e exploração de uma raça sobre a outra, uma raça tomando
privilégios sobre a outra. O conceito do racismo no Brasil é mais complicado
ainda, porque ele não é de origem, mas sim da pele, da cor, do tom da pele.
Ao mesmo tempo, existe uma ideologia de branqueamento,
criada por Silvio Romero e Nina Rodrigues, que são antropólogos, sociólogos do
período do escravagismo, que acabam contando a ideia que no Brasil não tem
racismo porque, na miscigenação, todo mundo embranquece, e a cultura eurocêntrica
se sobrepõe.
RODOLFO LUCENA - O
Brasil é o país em que o escravagismo durou mais...
WILSON LEVY - Algumas
dessas questões remontam ao Brasil Colônia. O tráfico de escravos não foi
buscar negros para trabalhar aqui porque eles eram ignorantes, não tinham
conhecimento. Havia, nos anos 1400 e 1500, uma relação entre Europa e África
que era de troca de conhecimentos, de culturas diferentes.
A partir de um dado momento, os europeus resolveram que o
tráfico de escravos e o mercantilismo iriam fazer com que nada navio, passando
pelo continente africano, vindo para a América e voltando para a Europa, ele
acumulasse muito dinheiro, e a acumulação primitiva do capital.
O navio sai da Europa, deixa quinquilharias na África, traz
escravos para a América, pega cana de açúcar (isso no primeiro ciclo) e leva
açúcar para a Europa. Só ganha dinheiro o tempo todo. Isso vai gerar o Banco
Mundial, isso vai gerar o FMI (Fundo Monetário Internacional).
O tráfico traz para cá reis, rainhas, gente com uma cultura
maravilhosa, e aproveita e troca isso com as sesmarias, com os europeus que
vieram para cá “colonizar” nosso país. O regime escravocrata vai enriquecendo
exclusivamente o europeu. Eles não trabalkam e fazem esse processo de
circulação...
Agora, por que durou até 1888 oficial? No período pós-Brasil
Colônia, quando a corte vai embora para Portugal, não tinha legislação de posse
da terra. Quem estivesse na terra tinha poder sobre ela.
Em 1850 é que vai ser criada a primeira lei da terra, que
dizia o seguinte: só tem terra quem pode pagar por ela. E o escravizado não
podia comprar, porque ele trabalhava e não ganhava nada pelo seu trabalho.
A luta de Zumbi dos Palmares e de seus companheiros foi os
quilombos, e hoje existem quilombos no Brasil inteiro. Pela nossa luta, nós
conseguimos o reconhecimento de que as terras dos quilombos são de propriedade
doss negros que hoje lá estão, os quilombolas.
A dificuldade hoje é brigar com os especuladores de terra em
todo o Brasil, que estão caçando gente, matando gente. É a mesma relação que
eles têm com o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).
RODOLFO LUCENA - O regime
escravocrata deixou uma herança perversa...
WILSON LEVY - André
Rebouças (este, homenageado na avenida Rebouças), tinha uma tese de que era
preciso indenizar os escravos. Os senhores de terra diziam que não, que eles é
que precisam ser indenizados, porque estavam perdendo capital. A Lei Áurea não
fez nem uma coisa nem outra.
E o que deu para a negrada, logo depois da proclamação da
República? Mano, é o seguinte: capoeira proibida, preto é fedido, toda uma
coisa querendo dizer que tudo que era negro era negativo. E aí, como é que esse
negro ia trabalhar, se ele não tinha terra, não tinha coisa nenhuma?
Os europeus, que migraram naquele momento, para trabalhar,
ganhavam salário, começaram a construir o movimento sindical, uma história que
a gente conhece. Mas nós, negros, ficamos de fora desse movimento sindical,
ficamos de fora das fábricas, ficamos de fora das próprias fazendas.
Em algumas fazendas –no Maranhão aconteceu muito disso--, o
fazendeiro decidiu que não queria mais a terra. Dava a terra para os
trabalhadores, desde que, durante cem anos, eles entregassem ao dono 80% da produção. Maravilhoso, não é?
Estão aí algumas das origens dos problemas que vivemos hoje.
RODOLFO LUCENA - E
quais são esses problemas?
WILSON LEVY - Nós
vamos falar na Marcha da Consciência Negra, denunciar neste domingo: a
violência contra a juventude negra, que está sendo assassinada no Brasil
inteiro, é uma política de extermínio, nós temos os dados estatísticos.
Além disso, as mulheres negras, apesar da Lei Maria da
Penha, são as principais vítimas da violência domésticas. Sofrem mais do que as
mulheres brancas.
Nossas conquistas estão sendo eliminadas.
RODOLFO LUCENA - Eliminadas
pelo governo golpista, não é?
WILSON LEVY - Pelo
governo golpista.
Nos governos de Lula e Dilma, e desde o governo Montoro,
aqui em São Paulo, tivemos conquistas, graças ao enfrentamento que tivemos com
elles.
Agora, para a negrada, o pior que acontece é o desemprego,
que nos ataca mais ainda. A relação no mercado de trabalho é diferente. Eu sou
contador, um contador negro ganha menos do que um branco...
RODOLFO LUCENA - E o
que o movimento negro pretende fazer para enfrentar esses problemas, essas
ameaças do governo golpista?
WILSON LEVY - Nossa
luta por nenhum direito a menos significa nenhuma tolerância com esse governo;
estaremos em todas as manifestações, participando de todas as atividades.
Estamos junto com as centrais sindicais, discutindo a greve geral.
Neste domingo, a Marcha da Consciência Negra será “Fora
Temer”, e não vai ser apenas na Paulista. Estamos colocando no Brasil inteiro,
em todas as capitais, nossa marcha exigindo que permaneçam os direitos
conquistados.
As formas de luta serão discutidas paulatinamente. O Movimento
Negro é muito grande, tem muitas entidades, e estamos também próximos da Frente
Brasil Popular, da Frente do Povo Sem Medo, temos uma ligação com os movimentos
sindicais e com os partidos de esquerda que também estão nesta luta.
RODOLFO LUCENA - Quem
quiser se aproximar do movimento negro, participar dele, o que deve fazer?
WILSON LEVY - A
primeira coisa é vir para a Paulista neste domingo. Depois, há várias entidades
do movimento negro em São Paulo, como o Movimento Negro Unificado e Coordenação
Nacional de Entidades Negras, a Unegro (União de Negros pela Igualdade).
Procure as entidades negras organizadas para continuar na luta.
RODOLFO LUCENA - Quem
não tem a pele negra também pode participar?
WILSON LEVY - Nunca
a luta do negro foi de exclusão da presença do branco. O branco, para estar nessa
luta, tem de ter uma consciência do que é isso, não é para querer dominar,
comandar apenas por ser branco. Nossa realidade é outra; toda a vez que um
branco entra na cultura negra e tem uma relação de troca, ele é muito bem
acolhido, seja em um baile black, seja em uma escola de samba, seja nas
entidades negras.
A maioria das pessoas no Brasil é afrodescendente. Ao olhar
para você, Lucena, ao ver seu nariz e o meu nariz aqui, ele é banto. Você tem,
na sua árvore genealógica, a presença do negro. No Brasil, essa luta é de
todos.
600
aos 60 – etapa 5 – 2016 nov 18
5,02 km caminhados em 56min01
Quilometragem acumulada: 19,32km
Tempo acumulado: 3h42min40
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