18.11.16

Quilômetros de luta contra a discriminação racial e pela democracia no Brasil

Hoje juntei a fome com a vontade de comer.
Caminhei, conheci um sujeito sensacional, fiz entrevista e ainda divulguei –e continuo divulgando neste exato momento em que você lê este texto— um evento em defesa da democracia no Brasil.
Tudo ao mesmo tempo agora.
Explico.
Estou trabalhando na divulgação da sensacional Corrida e Caminhada Fora Temer, organizada pelo grupo Corredores Patriotas Contra o Golpe (CLIQUE AQUI para saber mais).
Uma das minhas atividades é fazer contato com outros grupos, coletivos, entidades e associações democráticas e esportivas (ou não), convidá-los para o evento, conquistar seu apoio, presença e companhia nessa jornada.
Na manhã de hoje, tinha uma reunião com um dos organizadores da Marcha da Consciência Negra, que já está em sua décima-terceira edição.
Ela será realizada também na Paulista, e nossa ideia era fazer um combo político-esportivo das duas manifestações, pois a Corrida e Caminhada Fora Temer também será realizada nesta manhã domingueira na Paulista.
Legal, mas isso prejudicava meus planos de caminhada. Todos os dias preciso caminhar pelo menos três quilômetros para dar fôlego ao meu projeto de chegar aos 600 quilômetros no dia de meu aniversário, 14 de fevereiro.
Se eu não fizer isso pela manhã, é difícil conseguir realizar ao longo do dia, pois as outras tarefas, responsabilidades, o lazer e o descanso se acavalam.
E o meu parceiro de hoje trabalha em Diadema, o encontra fora marcado lá no Jabaquara, que fica a mais de 15 quilômetros de meu ponto de partida para a caminhada –por enquanto não posso correr, preciso tratar de uma fratura por estresse que atingiu meu joelho esquerdo.
Resolvi então flexibilizar um pouquinho as orientações do médico. Em lugar de uma caminhadinha de três quilômetros, uma jornada de quase o dobro. Iria até a estação Paraíso e lá pegaria o metrô até o Jabaquara para encontrar Wilson Roberto Levy, uma das lideranças do movimento negro brasileiro.
Dito e feito, juntei a fome com a vontade de comer, fiz minha caminhada, e não descuidei de minhas responsabilidade cívico-esportivas.
O Wilson é uma simpatia. Paulistano, tem 64 anos. Nascido no Brás, é filho de uma empregada doméstica e de um trabalhador na área de transporte que deram o sangue para o menino estudar e ter melhores chances na vida. Hoje ele é contador, tem uma microempresa na área e dedica a vida à militância no movimento negro e pela democracia no Brasil.
Juntos fizemos uma transmissão ao vivo convocando o povo para a Corrida Fora Temer e para a Marcha da Consciência Negra. Confira aí o vídeo.


Depois, fiz ainda uma breve entrevista com ele, que reproduzo a seguir. E já adianto que ele voltará a frequentar essas páginas, vamos organizar uma caminhada juntos num futuro muito próximo.
Enquanto isso, confira aí um pouco da história desse grande sujeito a quem tive o prazer e a honra de conhecer hoje.



RODOLFO LUCENA - Como começou sua militância no movimento negro?
WILSON LEVY - Minha ex-mulher do primeiro casamento –eu já estou no quarto—costumava dizer que eu era um “homem de  movimento”, como dizia uma música do Caetano. Eu nasci nos movimentos sociais.
Na juventude, fiz parte dos centros acadêmicos, dos grêmios estudantis. Participei depois do movimento universitário, naveguei com as tendências políticas do movimento estudantil.
E aí, do movimento estudantil, participei também do movimento negro. Fui ao ato que criou, em 1978, o Movimento Negro Unificado em São Paulo, na praça Ramos.
Ao mesmo tempo, estava me aproximando do movimento sindical, fui ser diretor do Sindicato dos Marceneiros. Participei do processo de construção da CUT (Central Única dos Trabalhadores), estive no congresso da CUT e estive na Praia Grande, na grande Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras, a Conclat, estava lá também.
No movimento negro, pude perceber toda uma mudança de intervenção, produzindo conquistas, como a criação da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, que foi criada por força desse movimento.
O Lula assinou em 2003 a lei 10.639, que obriga o ensino de história da África na escola. Foi nesse processo de pressão do movimento.
Estive nesse movimento, continuo nesse movimento e vejo que, neste momento, está havendo um retrocesso, estamos voltando lá para 1940, quando não havia nenhuma dessas conquistas e era tido como se não houvesse racismo no Brasil, que no Brasil todos eram totalmente iguais e que havia liberdade...

RODOLFO LUCENA - E há racismo no Brasil?
WILSON LEVY - O Brasil é o país mais racista do mundo. É extremamente racista.
É preciso entender o conceito de racismo, que é um mecanismo de dominação e exploração de uma raça sobre a outra, uma raça tomando privilégios sobre a outra. O conceito do racismo no Brasil é mais complicado ainda, porque ele não é de origem, mas sim da pele, da cor, do tom da pele.
Ao mesmo tempo, existe uma ideologia de branqueamento, criada por Silvio Romero e Nina Rodrigues, que são antropólogos, sociólogos do período do escravagismo, que acabam contando a ideia que no Brasil não tem racismo porque, na miscigenação, todo mundo embranquece, e a cultura eurocêntrica se sobrepõe.

RODOLFO LUCENA - O Brasil é o país em que o escravagismo durou mais...
WILSON LEVY - Algumas dessas questões remontam ao Brasil Colônia. O tráfico de escravos não foi buscar negros para trabalhar aqui porque eles eram ignorantes, não tinham conhecimento. Havia, nos anos 1400 e 1500, uma relação entre Europa e África que era de troca de conhecimentos, de culturas diferentes.
A partir de um dado momento, os europeus resolveram que o tráfico de escravos e o mercantilismo iriam fazer com que nada navio, passando pelo continente africano, vindo para a América e voltando para a Europa, ele acumulasse muito dinheiro, e a acumulação primitiva do capital.
O navio sai da Europa, deixa quinquilharias na África, traz escravos para a América, pega cana de açúcar (isso no primeiro ciclo) e leva açúcar para a Europa. Só ganha dinheiro o tempo todo. Isso vai gerar o Banco Mundial, isso vai gerar o FMI (Fundo Monetário Internacional).
O tráfico traz para cá reis, rainhas, gente com uma cultura maravilhosa, e aproveita e troca isso com as sesmarias, com os europeus que vieram para cá “colonizar” nosso país. O regime escravocrata vai enriquecendo exclusivamente o europeu. Eles não trabalkam e fazem esse processo de circulação...
Agora, por que durou até 1888 oficial? No período pós-Brasil Colônia, quando a corte vai embora para Portugal, não tinha legislação de posse da terra. Quem estivesse na terra tinha poder sobre ela.
Em 1850 é que vai ser criada a primeira lei da terra, que dizia o seguinte: só tem terra quem pode pagar por ela. E o escravizado não podia comprar, porque ele trabalhava e não ganhava nada pelo seu trabalho.
A luta de Zumbi dos Palmares e de seus companheiros foi os quilombos, e hoje existem quilombos no Brasil inteiro. Pela nossa luta, nós conseguimos o reconhecimento de que as terras dos quilombos são de propriedade doss negros que hoje lá estão, os quilombolas.
A dificuldade hoje é brigar com os especuladores de terra em todo o Brasil, que estão caçando gente, matando gente. É a mesma relação que eles têm com o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).

RODOLFO LUCENA - O regime escravocrata deixou uma herança perversa...
WILSON LEVY - André Rebouças (este, homenageado na avenida Rebouças), tinha uma tese de que era preciso indenizar os escravos. Os senhores de terra diziam que não, que eles é que precisam ser indenizados, porque estavam perdendo capital. A Lei Áurea não fez nem uma coisa nem outra.
E o que deu para a negrada, logo depois da proclamação da República? Mano, é o seguinte: capoeira proibida, preto é fedido, toda uma coisa querendo dizer que tudo que era negro era negativo. E aí, como é que esse negro ia trabalhar, se ele não tinha terra, não tinha coisa nenhuma?
Os europeus, que migraram naquele momento, para trabalhar, ganhavam salário, começaram a construir o movimento sindical, uma história que a gente conhece. Mas nós, negros, ficamos de fora desse movimento sindical, ficamos de fora das fábricas, ficamos de fora das próprias fazendas.
Em algumas fazendas –no Maranhão aconteceu muito disso--, o fazendeiro decidiu que não queria mais a terra. Dava a terra para os trabalhadores, desde que, durante cem anos, eles entregassem ao dono 80%  da produção. Maravilhoso, não é?
Estão aí algumas das origens dos problemas que vivemos hoje.

RODOLFO LUCENA - E quais são esses problemas?
WILSON LEVY - Nós vamos falar na Marcha da Consciência Negra, denunciar neste domingo: a violência contra a juventude negra, que está sendo assassinada no Brasil inteiro, é uma política de extermínio, nós temos os dados estatísticos.
Além disso, as mulheres negras, apesar da Lei Maria da Penha, são as principais vítimas da violência domésticas. Sofrem mais do que as mulheres brancas.
Nossas conquistas estão sendo eliminadas.

RODOLFO LUCENA - Eliminadas pelo governo golpista, não é?
WILSON LEVY - Pelo governo golpista.
Nos governos de Lula e Dilma, e desde o governo Montoro, aqui em São Paulo, tivemos conquistas, graças ao enfrentamento que tivemos com elles.
Agora, para a negrada, o pior que acontece é o desemprego, que nos ataca mais ainda. A relação no mercado de trabalho é diferente. Eu sou contador, um contador negro ganha menos do que um branco...

RODOLFO LUCENA - E o que o movimento negro pretende fazer para enfrentar esses problemas, essas ameaças do governo golpista?
WILSON LEVY - Nossa luta por nenhum direito a menos significa nenhuma tolerância com esse governo; estaremos em todas as manifestações, participando de todas as atividades. Estamos junto com as centrais sindicais, discutindo a greve geral.
Neste domingo, a Marcha da Consciência Negra será “Fora Temer”, e não vai ser apenas na Paulista. Estamos colocando no Brasil inteiro, em todas as capitais, nossa marcha exigindo que permaneçam os direitos conquistados.
As formas de luta serão discutidas paulatinamente. O Movimento Negro é muito grande, tem muitas entidades, e estamos também próximos da Frente Brasil Popular, da Frente do Povo Sem Medo, temos uma ligação com os movimentos sindicais e com os partidos de esquerda que também estão nesta luta.

RODOLFO LUCENA - Quem quiser se aproximar do movimento negro, participar dele, o que deve fazer?
WILSON LEVY - A primeira coisa é vir para a Paulista neste domingo. Depois, há várias entidades do movimento negro em São Paulo, como o Movimento Negro Unificado e Coordenação Nacional de Entidades Negras, a Unegro (União de Negros pela Igualdade). Procure as entidades negras organizadas para continuar na luta.

RODOLFO LUCENA - Quem não tem a pele negra também pode participar?
WILSON LEVY - Nunca a luta do negro foi de exclusão da presença do branco. O branco, para estar nessa luta, tem de ter uma consciência do que é isso, não é para querer dominar, comandar apenas por ser branco. Nossa realidade é outra; toda a vez que um branco entra na cultura negra e tem uma relação de troca, ele é muito bem acolhido, seja em um baile black, seja em uma escola de samba, seja nas entidades negras.
A maioria das pessoas no Brasil é afrodescendente. Ao olhar para você, Lucena, ao ver seu nariz e o meu nariz aqui, ele é banto. Você tem, na sua árvore genealógica, a presença do negro. No Brasil, essa luta é de todos.



600 aos 60 – etapa 5 – 2016 nov 18
5,02 km caminhados em 56min01
Quilometragem acumulada: 19,32km

Tempo acumulado: 3h42min40

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