Estou chegando aos 60 anos e não posso mais correr –pelo
menos, pelos próximos 45 dias, mais ou menos. Minha última corrida, um treino
gostoso com amigos percorrendo a região central de São Paulo—terminou antes de
completarmos dez quilômetros. Dor, dor, dor, pontada terrível no joelho
esquerdo me deixou a mancar o dia todo.
Era uma fratura por estresse, me disse dias depois o
laudo da ressonância magnética que, orientado por médico que me atendeu no
pronto-socorro. Achei que estava terminado meu projeto-sonho de percorrer, no
ano em que completarei 60 anos, distância equivalente à de 60 maratonas.
Meu médico ortopedista-maratonista me proibiu de
correr; o corpo em ação ao longo do
tempo colam o que foi rasgado no osso pelo estresse da distância, do peso e do
tempo. Mas posso caminhar. Pouco, mas posso.
Então caminho. E, só de raiva (e de esperança, muita
esperança), inicio já, agora, imediatamente um novo projeto, filhote daquele
outro: a partir de dia 14 de novembro passado e até o dia do meu aniversário em
2017, 14 de fevereiro, pretendo completar seiscentos quilômetros de fio a
pavio.
Hoje é o terceiro dia da jornada que, por enquanto,
terá apenas caminhadas; haverei de voltar a correr, mas agora é o que temos.
Trago, junto com minhas passadas, histórias de quem chega à velhice, de quem já
está nela, de nossas lutas e desafios, de nossas conquistas, perrengues, dores
e prazeres.
Meu percurso de
hoje, seguindo sempre atrás de meu nariz, me levou a passar em frente ao
portentoso prédio do Instituto do Câncer, um monumento de 112 metros de altura,
28 andares com um total de mais de 84 mil metros quadrados, que atende por mês
cerca de seis mil pacientes.
O câncer está presente na vida de todos nós, velhos e
jovens, doentes e são, não há quem não tenha tido amigo ou parente atingindo
pela doença, quando não a gente mesmo...
Ao longo desses tantos dias de caminhada e corrida pelo
mundo da Terceira Idade, vou falar de câncer várias vezes –pelo menos, é o que
imagino.
Hoje falo apenas do hospital e das vezes que lá estive.
Foram apenas duas, e não estava lá para visitar ninguém em particular nem para
buscar ajuda, tratamento ou orientação qualquer que fosse: fui lá para cantar.
Na época, eu fazia parte do então chamado Coral da
Fundap –Fundação do Desenvolvimento Administrativo, um dos tantos órgãos
extintos pelo governo Alckmin. A entidade acabou, e o coral, que era mantido
pela associação de funcionários da instituição e pela colaboração dos próprios
coralistas, foi pro saco.
Nananina. Coralista também é bom de briga, e o grupo se
reinventou, agora se chama Coral da Vila e está firme e forte cantando pelas
esquinas do mundo, becos e bares e onde o povo quiser ouvir (encontre mais
informações sobre os cantos da turma CLICANDO AQUI).
Na época, porém, era Coral da Fundap. Quando chegava o
final do ano, éramos convidados a cantar em um monte de lugares, fazer aquele
espetáculo de músicas natalinas, anunciar o Ano Novo, a paz na terra e a boa
vontade entre os homens.
Cantávamos em estações do metrô, shoppings, lares de
cuidado de velhinhos, clubes, onde nos quisessem. O maior impacto, porém, em
mim e acredito que em todos os companheiros do coral, foi quando cantamos no
Instituto do Câncer.
Na primeira vez, foi num fim de tarde de chuva forte, aquelas
enxurradas de verão. Tínhamos cantado na estação Clínicas do metrô, recebendo
muita energia, aplausos carinhosos (até entusiasmados, quero crer) do povo que
passava. Seguimos direto, correndo pela avenida Doutor Arnaldo – a mesma que
hoje foi palco de minha caminhada fraturada—até o prédio do hospital.
Lá chegando havia um aspecto meio secretivo para nossa
entrada. Não de proibição ou rebeldia –ao contrário, fomos muito bem recebidos
pelo pessoal do IC--, mas de respeito ao mundo em que entrávamos. Quanto
poderíamos cantar, em que volume, com qual energia e com quê de alegria em um
ambiente em que imperava a dor?
Poderíamos nos
apresentar apenas nas enfermarias; nelas, em andares do alto, os pacientes já
vinham recebendo tratamento, muitos apresentavam melhoras, eram alas de
esperança e recuperação.
Aos primeiros acordes dos vocalizes –aqueles cantarolares
que fazemos para dar uma acertada na voz--, já sentimos uma espécie de comunhão
com o público que ali chegava, aos poucos, alguns em cadeiras de rodas, outras
caminhando por suas próprias pernas, outros ainda carregando consigo
instalações para que continuassem a receber sempre medicação intravenosa.
Os aplausos que recebemos transformei, em mim, por
dentro, em lágrimas de alegria e de solidariedade com aquele pessoal. Mas não
dava tempo para me entregar –nos entregarmos—a ter sentimentos ou a permitir
que sentimentos embaçassem, embaralhassem o que estávamos fazendo, cantando
contra o câncer.
As emoções eram de todos nós, como demonstra um texto
que, mais tarde, uma companheira coralista escreveu. Coordenadora do coral,
Eloisa Pires apontou essa memória daquele dia:
“O mais legal de cantar é quando você sente o efeito
que a música tem sobre as pessoas. Um ato tão simples provoca uma cadeia de
emoções das mais variadas. É uma troca de energia muito boa! Ontem foi um dia
especial pra mim e acredito também pros meus amigos do coro. Foi uma maratona
musical. Primeiro na Fundap, depois no metrô Clínicas e à noite no Instituto do
Câncer de São Paulo (um lugar muito especial). Cinco horas de cantoria!
Antes de dormir, deitada em minha cama, corpo destruído de cansaço, lembrei vários
rostos sorridentes, abraços, acenos, olhos marejados, agradecimentos
sinceros... E, na memória, o que disse um dos pacientes do Icesp: ‘Obrigado,
vocês trouxeram a vida pra cá’. Que bom que a música tem esse poder!”
Talvez pelo poder da música, fomos convidados, de surpresa,
a descer ao setor de quimioterapia, a ala mais dolorida do hospital, segundo
nos disseram. Seria a primeira vez que um coral se apresentaria para aqueles
pacientes, muitos deles entrevados já não pela doença, mas pelo tratamento, dolorido
e quase destruidor, em muitos casos.
Ali cantamos para muitas portas fechadas ou apenas
entreabertas, protegendo e respeitando a privacidade de cada um. De vez em quando,
dava para perceber alguém que metia a cabeça por fresta da porta; havia mesmo
quem chegasse ao corredor. Gente magra, esmaecida, lutadores pela vida que de
repente víamos cantarolando nossos cantares, estalando dedos, treinando palmas,
dizendo sem palavras: “Estamos juntos!”.
O cara que nos convidou, Guilherme Bena Vieira,
assistente de diretoria do Centro Integrado de Humanização do Icesp, ainda hoje
lembra de nossa apresentações e comenta:
“O ato de cantar é uma das formas mais singelas e
acolhedoras que pode existir em qualquer setor da sociedade. Mas um coral
cantar para os pacientes do Icesp (Instituto do Câncer de São Paulo) é um ato
único de amor, onde a ressonância está estampada nos momentos de paz, esperança
acolhimento e gratidão ao receber tal ação humanizador. Cada olhar recebido,
cada lágrima de felicidade de um paciente, realmente, não tem preço, nos
tornando mais humanos a cada dia. E o Coral Fundap, hoje Coro da Vila, sempre
nos trouxe, com seu canto, essa mensagem de esperança e amor. Somos gratos por
isso."
A gente é que saía agradecido de cada apresentação –eu participei
de duas, maravilhosas. Nos faz acreditar na voz do povo, que diz “quem canta
seus males espanta”.
Quem corre
também. Ou quem caminha, quando não dá para correr.
Vamos que vamo!
600 aos 60 – etapa 3 –
2016 nov 16
3,5 km caminhados em 40min36
Quilometragem acumulada: 10,95
km
Tempo acumulado: 2h06min56
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