Não é segredo, mas costuma ficar à boca pequena, nunca é
muito falado, pois ela é tratada como algo simples, que sai por si mesmo, que
se autocura: a fratura por estresse dói. A dor é aguda, pontual, pontuda, que
pode limitar movimentos e prejudicar o bom desempenho de atividades
corriqueiras do cotidiano.
Estou sentindo isso da pior maneira possível, ao longo desta
empreitada para debater questões de saúde, qualidade de vida e inserção social
dos maiores de sessenta anos ao mesmo tempo em que percorro, no ano em que faço
sessenta anos, distância equivalente à de sessenta maratonas, 2.532
quilômetros.
Tem mais: pretendia fazer os primeiros seiscentos
quilômetros numa talagada só, desde o dia primeiro de janeiro de 2017 até o dia
de meu aniversário, 14 de fevereiro, uma empreitada que exigiria perto de 15
quilômetros por dia, todos –ou quase todos --os dias.
A recente descoberta de uma fratura por estresse na região
do joelho esquerdo jogaria meus planos por terra, inviabilizando esse sonho de
meados de verão. Mas não desisti: meu médico disse que eu poderia fazer breves
caminhadas. Tomei então a decisão de começar já o projeto, iniciando então a
jornada no dia 14 de novembro, três meses antes do aniversário.
Vamos ver o que dá.
Os primeiros dias foram bons, em terreno plano e com as
tarefas realizadas de forma consciente e produtiva. Tirar o estresse é a melhor
forma de combater a fratura por estresse, dando tempo ao corpo para regenerar
os tecidos fraturados.
Para alguns, a fratura por estresse pode ser mimimi do
paciente, porque o osso não está quebrado. Ele está exatamente fratura, cindido,
machucado internamente.
Um estudo publicado no início deste ano na “Revista
Brasileira de Ortopedia” explica: “A
fratura por estresse foi descrita inicialmente em soldados prussianos por
Breithaupt em 1855 e ocorre como o resultado de um número repetitivo de
movimentos em determinada região que pode levar a fadiga e desbalanço da
atuação dos osteoblastos e osteoclastos e favorecer a ruptura óssea. Além
disso, quando usamos uma determinada região do corpo de maneira errônea, a
fratura por estresse pode ocorrer mesmo sem que ocorra um número excessivo de
ciclos funcionais”.
Ou seja: a fratura ocorre por causa de movimentos
repetitivos em excesso ou sem o devido descanso entre as cargas, mas não apenas
e não necessariamente por isso; pode ocorrer por causa de uma única ação em que
o corpo foi mal empregado.
Isso eu já sabia pela minha própria experiência, veterano
que sou de fraturas por estresse: esta é minha quarta –a primeira, eu conto
como duas, pois uma perna foi atingida por fratura por estresse e a outra por síndrome
de estresse, que é um pentesilhésimo a menos, mas exige cuidados assemelhados.
A primeira foi típica de corredor iniciante, mal orientado
ou com orientação insuficiente.
Eu comecei a correr aos 41 anos, depois de mais de 25 anos
de quase completo sedentarismo. Um ano depois fiz minha primeira maratona, no
ano seguinte corri para baixar o tempo na maratona e fiz meu recorde –3h53min22.
Cerca de vinte dias depois da segunda prova já estava
fazendo longões de mais de 25 quilômetros; em um deles, senti uma dor forte no
pé, que me deixou mancando.
Na época, no início deste milênio, era muito mais difícil
encontrar médicos especializados em esporte e conhecedores do mundo dos
corredores. Levei mais de um mês sendo empurrado de médico a médico até
encontrar um que me olhasse como gente, examinasse meus pés, desconfiasse que o
problema não tinha origem ali e pedisse uma ressonância magnética das pernas –que
também era muito mais cara e menos utilizada do que hoje.
A fratura era no meio da tíbia, ponto clássico de lesão por
esforço repetitivo e mal administrado.
Essa lesão marcou o início de uma jornada de busca de
informação e de conhecimento sobre o funcionamento do corpo em movimento.
Conheci médicos e fisioterapeutas sensacionais, treinadores dedicados a
proteger a saúde e o lazer de seus alunos, pesquisei, fiz entrevistas, sofri
outras lesões, caí e me levantei.
Festejando, em 2001, minha primeira maratona depois de minha primeira (e segunda) fratura por estresse - Foto Eleonora de Lucena
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Alguma coisa aprendi, pois a minha seguinte lesão por estresse
–a segunda que é terceira por aquela já explicada contabilidade corporal—só foi
ocorrer mais de dez anos mais tarde depois da primeira. E foi do outro tipo,
aquele de um esforço único, mal aplicado, que detonou a cabeça da tíbia
direita.
Agora, mais velho, com o corpo tendo menos defesas e menor capacidade
de recomposição, a fratura que me atinge provavelmente foi provocada por uma
combinação das duas grandes razões: volume e esforço concentrado.
De todos, esta surge num local mais complicado, que sofre
tensões o tempo todo durante a caminhada. E, que eu me lembra, é a que me
provoca mais dores.
Aliás, que eu faço provocar mais dores. Pois aqui há outra
característica perversa da fratura por estresse: a gente é responsável pelo mal
e também pela cura. É necessário se policiar e cuidar o tempo todo.
Entusiasmo e autoconfiança exagerados contribuem para que a
gente erre, como eu errei na última sexta-feira. Estava caminhando bem por
volta de três quilômetros a cada dia, dei naquele dia uma estilingada de cinco
quilômetros. Parece pouco para quem já correu cem quilômetros de uma talagada
só, mas é um incremento de volume superiro a 50% de um dia para o outro.
Isso não se faz. O resultado é a dor.
Trata-se de uma “experiência sensitiva e emocional
desagradável associada ou relacionada a lesão real ou potencial dos tecidos. Cada
indivíduo aprende a utilizar esse termo através das suas experiências
anteriores”, segundo define a IASP, sigla em inglês para Associação
Internacional para o Estudo da Dor.
O neurocirurgião Manoel Jacobsen Teixeira, professor da USP,
dá o cenário: “A dor continua sendo uma das grandes preocupações da Humanidade.
Desde os primórdios do ser humano, sempre procuramos esclarecer as razões que
justificassem a ocorrência de dor e os procedimentos destinados a seu controle.
A expressão da dor varia não somente de um indivíduo para outro, mas também de
acordo com as diferentes culturas”.
Diz ele que a ocorrência de dor na humanidade é crescente.
Algumas razões que o médico cita são: novos hábitos de vida; maior longevidade
do indivíduo; prolongamento de sobrevida dos doentes com afecções clínicas
naturalmente fatais; modificações do ambiente em que vivemos; e, provavelmente,
do reconhecimento de novos quadros dolorosos e da aplicação de novos conceitos
que traduzam seu significado.
O que eu posso dizer é que a dor é uma merda. Por causa
daqueles quilômetros extras que eu saudei inicialmente com tanta alegria, e de
mais uma subidas e descidas de escada, voltei a mancar.
“Você não pode caminhar com dor”, me xinga o fisioterapeuta
Marcelo Semiatzh, explicando que a dor significa eventual aumento de lesão.
Posso caminhar, mas não devo açular o ferimento, que precisa de paz, e não de
bagunça, para se regenerar.
Devo subir escadas apoiado, colocando o esforço inicial na
perna boa; descer fazendo o contrário, indo primeiro com a podre. E devo
caminhar nos limites da responsabilidade.
Hoje fiz um pouquinho mais de três quilômetros num circuito
quase plano, com alguma dorzinha, mas nenhuma pontada limitante. O circuito é
muito especial, voltarei a circular por ele e trarei histórias do trajeto.
Por enquanto, encerro aqui essas reflexões sobre a dor: é
ruim, não é bom, mas dá para encarar. Não podemos ceder a ela, nos prostrarmos
frente ao sofrimento. O objetivo é controlar a dor, minorar a dor, acabar com a
dor e mandar ver na vida com saúde e alegria.
Vamo que vamo!
600
aos 60 – etapa 7 – 2016 nov 21
3,41 km caminhados em 41min29
Quilometragem acumulada: 25,59 km
Tempo acumulado: 5h07min58
Muito bom o seu artigo, ainda mais que se trata de sua história real. Tenho catorze anos de corrida, e neste tempo já senti inúmeras dores, inclusive uma fratura por estresse do quadril, sei muito bem quando você fala em dor. Mas agora depois de todo esse tempo, arrumei um desgaste nos dois joelhos de grau três. Fui proibida de correr pelo médico, e ontem finalizei a minha décima maratona em último lugar, pois depois de mim, vinham inúmeras pessoas que passaram , mas o relógio havia sido desligado. Sei muito bem como se sente, pois a nossa vontade de correr é muito grande e supera a própria lógica, que é , você precisa parar... Abraços,
ReplyDeleteDiscordo totalmente com sua conclusão Lucena! A gente não deve lutar contra dor! Quem faz isso são os lesionados de hoje e de amanhã. Precisamos escutar mais todos os sinais, fazer físico fazer gelo e descansar mais. Além de tudo isso, tomar vit.D (sua deficiência é epidemia mundial e é fundamental para composição óssea), entre outros cuidados com a alimentação que deve ser focada no esporte_desgaste físico! Sobretudo, para nós já com uma certa idade. Embora a causa seja estresse, muitos outros elementos estão em jogo!
ReplyDeleteÓtima recuperação e caminho nesse seu objetivo!
(...quando me aposentei de maratona após feita a quarta, foi justamente por tudo isso...eu me coloquei em meu lugar...aquele desgaste não podia continuar...)